A experiência de reconstrução de uma cidade costeira espremida entre rios e lagos e devastada por uma tragédia climática mostra que o processo de reerguer Porto Alegre será longo e penoso. Há quase 20 anos, Nova Orleans, na Louisiana (EUA), foi inundada pelas chuvas do furacão Katrina e apesar de investimentos pesados na recuperação, problemas urbanos decorrentes da tragédia persistem.
A ONG The Data Center, que reuniu dados sobre a reconstrução da cidade, estima segundo Rafael Garcia, do O Globo, que US$ 120 bilhões (R$ 612,9 bi na cotação atual) foram aplicados para remendar danos estimados em US$ 135 bilhões (R$ 689,5 bi). Foi uma mistura de verba estatal, pagamentos de seguradoras, fundos de doação, linhas especiais de empréstimo, economias pessoais e repasses de governos estrangeiros. Só o novo sistema de diques e muros de contenção para proteção custou US$ 14 bilhões (R$ 71,5 bi) em recursos federais.
Geógrafos, urbanistas e engenheiros que estudam o pós-Katrina, porém, dizem que decisões tomadas no plano de recuperação agravaram problemas de desigualdade na cidade, e a impediram de recuperar a população. A maioria daqueles que não conseguiram voltar é formada pelos mais pobres, sobretudo os negros.
— New Orleans é agora uma cidade mais branca e mais rica. E não é mais rica porque as pessoas ficaram mais ricas, mas por causa da renda per capita daqueles que puderam voltar e dos novos moradores — diz a urbanista Marla Nelson, professora da Universidade de New Orleans que passou a vida estudando a cidade.
Êxodo negro
A população é hoje quase 20% menor do que no período antes do furacão, e o êxodo negro que se seguiu ao Katrina é uma ferida cultural numa das cidades mais importantes da história afro-americana. Se antes dois terços da cidade, considerada o berço do jazz, eram negros, hoje essa parcela é ligeiramente maior do que a metade.
Um dos pontos mais importantes no desenho de projetos para resolver a crise habitacional que se desenha em Porto Alegre, diz Marla, é olhar para problemas que possam agravar desigualdades. Houve muita controvérsia dentro do Road Home, o programa criado para recuperar casas em Nova Orleans.
— Um problema com o programa era que o valor do subsídio se baseava no valor da casa pré-Katrina, mas há grandes discrepâncias por bairro e não só porque algumas casas eram maiores ou feitas com materiais mais caros. Havia um viés sistêmico de raça e classe — diz. — Uma casa semelhante num bairro de maioria branca, em comparação com aquela casa num bairro negro, era muito mais valorizada. A subvenção para os proprietários deveria ter sido baseada no custo da reconstrução.
Muita gente que não tinha casa própria desistiu da cidade, porque o preço dos alugueis disparou. Parte da população de baixa renda com filhos acabou tendo que sair da cidade, porque escolas públicas demoraram quase um ano para reabrir. Uma vez assentados fora, preferiram não voltar. O Road Home dava aos donos a opção de vender suas casas ou terrenos ao Estado.
No setor de comércio e serviços, o cenário de recuperação é variado. O bairro de French Quarter, no centro turístico, foi pouco afetado pelo Katrina, e após a economia voltar a funcionar, rapidamente começou a receber visitantes. Outros lugares emblemáticos, porém, não se recuperaram. O Charity Hospital, maior complexo médico, ainda não reabriu, e o parque de diversões Six Flags, também importante para a economia do turismo na região, continua abandonado.
Um ponto de otimismo é que o sistema de proteção contra enchente, que apresentou falhas, recebe mais manutenção agora. O órgão responsável pela manutenção é o Corpo de Engenheiros do Exército, que desde a Guerra de Independência no século XVIII administra a infraestrutura.
Com as verbas federais, diques foram elevados em 4,5 metros. Construídos de terra e reforçadas com muros de contenção no topo, essas estruturas falharam em 2005 por causa de erosão, brechas na estrutura e subsidência (afundamento do terreno). Este último é um problema crônico e histórico da cidade, provocado por perturbações geológicas da exploração de petróleo por perda de pântanos. A redução dessas áreas naturais de várzea, que existem também no Guaíba e na Lagoa dos Patos, é algo que pode colocar Porto Alegre mais sob risco também.
— Uma conta aproximada mostra que cada quilômetro de várzea tem o poder de reduzir em 25 cm as cheias estuário adentro — diz o geógrafo Craig Colten, professor emérito da Universidade da Louisiana.
Outra diferença entre Lousiana e Rio Grande do Sul é que capital gaúcha não tinha diques urbanos no modelo daqueles de Nova Orleans. Ambas usavam, porém, paredes de contenção (no caso de Porto Alegre, o Muro da Mauá). E ambas as estruturas falharam por falta de manutenção.
Furacão em 1965
Para Colten, o desafio político de financiar a manutenção dessas grandes estruturas no longo prazo é tão grande quanto o desafio de construí-las. Porto Alegre, ele diz, precisa levar isso em conta quando se planejar para o futuro.
— O sistema de diques que temos foi em grande parte projetado após o furacão Betsy em 1965. Naquela época tivemos financiamento federal e o trabalho de construção começou quase que imediatamente às inundações — conta. — Acontece que, em 2005, quando o Katrina chegou, ele ainda não estava totalmente pronto.
Colten diz que mesmo com o sistema atual pós-Katrina já pronto, há dúvidas sobre seu grau de proteção.
— Quando o furacão Ida passou em 2021, muita gente comemorou o fato de os diques terem funcionado, porque New Orleans não foi devastada. Mas o Ida foi um furacão muito diferente — explica.
O Katrina, ele afirma, causou muito mais devastação pelas chuvas do que pelos ventos, e a Louisiana agora está preocupada não só com furacões, mas com a oscilação de vazão do rio Mississippi.