A estreia da peça “Prima Facie” em Brasília foi aclamada e aplaudida segundo a coluna de Mônica Bergamo, da Folha, por ministros, juízes, promotores, defensores públicos e integrantes do governo federal que se reuniram no Teatro Unip, na noite de quarta-feira (28), para assistir ao monólogo protagonizado por Débora Falabella.
Ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge foi celebrada como uma espécie de “produtora” informal do evento —o espetáculo chegou à capital federal graças a uma mobilização dela, que se sensibilizou após ver uma apresentação no Rio de Janeiro.
“Está sendo muito engraçado esse elogio”, diz ela à coluna ao falar sobre o apelido recebido durante a noite.
A ex-PGR afirma que Brasília é o local em que são tomadas grandes decisões que interferem na vida de todos os brasileiros e que, por isso, se dedicou à empreitada junto à produção da obra.
“Essa era uma peça necessária para Brasília e para a sociedade civil. Nós temos uma tradição grande entre juristas e acadêmicos de discutir a lei que falta, a lei que precisa ser emendada ou corrigida, mas a gente discute pouco como a prática [da aplicação da lei] também causa injustiças”, diz ela.
No enredo, Falabella vive uma advogada bem-sucedida que tem entre seus clientes acusados de violência sexual. Ela passa a questionar o sistema de Justiça, porém, depois de se tornar vítima de um estupro.
A peça dirigida por Yara de Novaes é uma adaptação de texto homônimo da dramaturga Suzie Miller, que estreou em Londres em 2022 e provocou debates por mudanças nas leis britânicas sobre o tema.
Dodge se encarregou de disparar convites para lideranças e integrantes do Poder Judiciário, incluindo a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Cármen Lúcia, e o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, que se juntaram a ela ao final da apresentação para um debate.
Durante a conversa, Ayres Britto defendeu que se discuta uma alteração na Constituição para que se ofereça maior proteção a mulheres vítimas de violência sexual.
Uma hipótese levantada pelo magistrado aposentado é a de que homens denunciados tenham que provar sua inocência em vez de serem considerados inocentes até que se prove o contrário.
“A mulher não tem que fazer a prova de que foi violentada. Quando ela acusa alguém e tem alguma consistência, o ônus da prova se inverte. Talvez devamos refletir sobre isso. Seria uma alteração, me parece, substantivamente robusta para iniciar a mudança das coisas”, disse ele.
Em uma de suas intervenções, Cármen Lúcia afirmou que, perante a lei, homens e mulheres são iguais, mas que a interpretação e a aplicação das normas estão condicionadas ao olhar de quem está por trás dessas decisões —muitas vezes, homens.
“Drummond tinha razão, né, Carlos?”, disse a magistrada, se dirigindo a Ayres Britto. “Os lírios não nascem das leis. É preciso que quem faz a lei seja homem e mulher.”
“Se nós temos, como temos no Brasil, a mais baixa representatividade de mulheres fazendo leis, para a gente começar a falar o que é pobreza menstrual para um homem é complicado. Ele nem quer escutar essa história. E não deve saber mesmo [sobre o que se trata]. Não sabe a cor da rosa, a não ser para os seus passeios”, completou Cármen.
Os ingressos para a breve temporada de “Prima Facie”, que se encerra nesta quinta (29), se esgotaram em menos de 48 horas. Duas das poltronas do teatro foram ocupadas pela cantora Daniela Mercury e por sua mulher, a empresária Malu Verçosa, que esticaram a duração de uma viagem a Brasília para assisti-la.
Mercury afirma à coluna que, durante a apresentação, refletiu sobre a importância de discutir a temática do abuso sexual não apenas a partir da perspectiva das vítimas, mas também abordar a responsabilidade dos homens envolvidos nos atos criminosos.
“Ali na plateia, quando Débora chama a atenção e fala: ‘Olhe para o seu lado direito, olhe para o seu lado esquerdo. Uma em cada três mulheres no Brasil sofreu violência sexual’. E os homens? Cadê os homens dessa plateia? As estatísticas mostram que somos vítimas, mas cadê os agressores?”, diz.
“Como mulher, me sinto impactadíssima, indignada, comovida, revoltada e com vontade realmente de levantar da cadeira e fortalecer mais e mais mulheres”, acrescenta a Rainha do Axé, que diz ser importante haver solidariedade entre pessoas do gênero feminino.
“As mulheres precisam, definitivamente, lutar por outras mulheres. Por que nós somos tão duras e agressivas e nos tornamos algozes de outras mulheres que sofrem tanto quanto nós? Por que a gente quando vê uma peça dessa sai indignada, com vontade de chorar por todas que sofrem agressão, mas, no outro dia, somos capazes de olhar para uma mulher com a mesma dureza que os homens olham?”
Depois das apresentações em Brasília, “Prima Facie” desembarcará em São Paulo para uma temporada mais extensa, com início marcado para 20 de setembro. Yara de Novaes, que desde o início da produção da peça tinha o desejo de mostrá-la a autoridades do sistema de Justiça, diz sair realizada da capital.
“Nós, que somos artistas e imaginamos muito, nunca imaginamos estar com essas três pessoas que são referência ética e jurídica [Cármen, Dodge e Ayres Britto]”, afirma a diretora. “Esse espetáculo não se isenta da teatralidade e da linguagem teatral, mas ele é um tipo de luta”, completa.