Eles integram a longa lista de santos católicos que ganharam o culto popular após o martírio, naqueles primeiros séculos em que o governo romano perseguia e executava cristãos. E, justamente porque não há documentação histórica, o que se sabe sobre eles é baseado na tradição, apenas.
Contudo, esta tradição é, sim, documentada. E começou há muito tempo, no coração de Roma. “A única coisa que sabemos historicamente sobre os dois é que o culto a eles, santos e mártires, começou entre o século 4º e o 5º. Há muita evidência sobre o culto”, explica à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma.
O escritor e teólogo J. Alves, autor do livro ‘Os Santos de Cada Dia’, ressalta à reportagem que a dupla faz “parte da vasta lista de mártires cristãos da Igreja primitiva” e que “viveram provavelmente entre o primeiro e o terceiro séculos da era cristã”.
Ele acrescenta que a memória deles só chegou ao tempo presente porque sempre houve o costume, dentro da Igreja, de “assinalar os nomes dos mártires” e “celebrar seus testemunhos de fé em Jesus” nas celebrações litúrgicas e no ofício divino. “No decorrer dos séculos e de acordo com a visão de cada época, a religiosidade popular recolheu, na mesma narrativa, ficção e fatos considerados genuinamente históricos, sobre suas vidas.”
“O ‘Martirológio Romano’ [catálogo de santos e mártires organizado pela Igreja Católica] é a melhor fonte para a prova da existência deles”, defende à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Aracaú, no Ceará. No livro, eles são apresentado como “mártires que, segundo a tradição, exerceram a medicina […] sem pedir nunca remuneração e curando a muitos com os seus cuidados gratuitos”.
Eles também estão registrados na obra ‘Legenda Aurea’, conjunto de narrativas sobre a vida de santos reunidas, por volta do ano de 1260, pelo então arcebispo de Gênova, Jacopo de Varazze (1229-1298). O livro apresenta Cosme como um modelo para os outros, “ornado de virtudes”, “puro de todo vício”. E Damião como alguém que “teve comportamento manso e doutrina elevada”, além de ter sido “a mão do Senhor que cura como remédio”.
A mais antiga basílica dedicada aos santos, na região do Foro Romano, foi erguida no século 4º — há quem acredite que sua construção tenha começado no ano de 309, mas o outros a situam na primeira metade do século 6º. “É com base nisso que a gente pode voltar para trás para chegar à história deles, aí com base na tradição”, argumenta Domingues.
A maior parte dos relatos sobre eles diz que eram irmãos, e geralmente afirma-se que eram gêmeos. Acredita-se que eles tenham nascido onde hoje é a atual Turquia — ou, segundo algumas fontes, na região da Síria — e tenham atuado como médicos da época, perambulando e curando doentes. Com uma particularidade importante: não aceitavam pagamento por seus préstimos.
“É consenso, nas várias narrativas, que Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e praticavam a arte da cura, ou seja, a medicina”, pontua Alves.
“Pela tradição, eram médicos cristãos marcados pela habilidade da profissão da medicina. E não recebiam nada em troca pelo trabalho”, corrobora à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos.
Maerki explica que isso faz com que Cosme e Damião sejam integrados ao rol dos chamados “santos anárgiros”. “Anárgiro significa inimigo do dinheiro”, contextualiza. “Há uma tradição de santos que negavam o dinheiro, não aceitavam e combatiam a riqueza.”
Evangelização e perseguição
Essa atuação, em forma de caridade, era acompanhada de evangelização. “Ao cuidarem dos outros de forma gratuita, eles difundiam a fé cristã”, afirma Domingues. “Por causa disso, acabaram ficando conhecidos.”
Não necessariamente isso era uma coisa boa, naqueles tempos. A crescente popularização deles teria despertado o interesse do imperador Diocleciano (243-311), justamente o responsável pela mais sangrenta perseguição aos cristãos. Assim, Cosme e Damião teriam sido executados, como mártires, provavelmente no ano 300. Segundo o livro ‘Il Santo Del Giorno’, de Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini, a morte deles teria ocorrido na antiga cidade de Cirro, na Síria — hoje, em ruínas.
Alves diz que essa “grande fama” decorrente das curas “sem nada cobrar” contribuiu para atrair muitos “à fé cristã”. De acordo com sua versão, isso incomodou o governador de sua região e este haveria determinado a morte da dupla, depois de torturas.
A maneira como os dois foram mortos também conta com detalhes diferentes conforme o relato. Mas todos parecem concordar que, depois de eles sobreviverem a uma série de suplícios, acabaram sendo mortos com golpes de espada.
Descreve o ‘Il Santo Del Giorno’ que “condenados à lapidação, as pedras voltavam contra os perseguidores; foram colocados no paredão para que quatro soldados os atravessassem com setas, mas os dardos voltavam para trás e feriam a muitos, porém os santos nada sofriam”.
“Foram obrigados a recorrer à espada para decapitação, honra reservada só aos cidadãos romanos”, prossegue o livro.
Doces para crianças
Muitos conhecem São Cosme e Damião pelo hábito popular que relaciona a dupla a ideia de presentear crianças com doces, principalmente no dia a eles dedicado — anteriormente e, em alguns lugares ainda por tradição, o 27 de setembro; desde 1969, segundo a Igreja Católica, em 26 de setembro.
Domingues aponta que esse costume é tipicamente brasileiro — e uma das explicações seria pelo sincretismo deles com religiões de matriz africana. O teólogo Alves explica que os antigos escravizados no Brasil, como forma de camuflar suas crenças, passaram a asscoiar seus orixás crianças, os Ibeijis, que também são gêmeos, aos santos católicos Cosme e Damião.
“Na matriz religiosa africana, eles são filhos de Xangô e Iansã”, detalha. “Estão associados não apenas à força da natureza que faz brotar e sustenta a vida, mas também à festa, à alegria coletiva, ao divertimento e às brincadeiras infantis.”
Lira interpreta a tradição dos doces “quase como um ex-voto, ou seja, um agradecimento aos santos por um milagre”. “Como eles são venerados nas religiões, afro, nelas há um sentido de oferenda. Mas o importante é que, independentemente de religião, se oferece doces às crianças, e isso faz com que a tradição se perpetue”, acrescenta ele.
Interessante notar que se houve, no Brasil, um sincretismo dos santos católicos com os orixás do candomblé, há quem acredite que a origem mítica de Cosme e Damião tenha a ver com outro sincretismo: o dos deuses pagãos do mundo antigo com o cristianismo ainda em fase inicial.
“No século 6º havia uma forte tendência de adaptar certos cultos pagãos para o cristianismo. Segundo alguns estudos, foi nessa época que houve a transposição da veneração de algumas figuras ligadas à tradição da medicina e da cura, para os santos cristãs”, diz Maerki. “A ideia dos médicos santos e mártires teria sido uma espécie de adaptação dessa tradição pagã de veneração de divindades de cura.”
Entre as figuras que teriam inspirado tais narrativas, está o deus helenístico-egípcio Serápis e Esculápio ou Asclépio, o deus da medicina tanto na mitologia grega quanto na romana.
Cura milagrosa
Se eles realmente atuavam como médicos ancestrais, em um tempo de parcos conhecimentos, é de se imaginar como isso acabava garantindo um terreno fértil para narrativas milagrosas. E, ao longo dos séculos, esses relatos cresceram em proporção e em detalhes.
Maerki destaca um dos mais famosos, o do transplante de uma perna. Uma das versões afirma que teria ocorrido já após a morte da dupla, depois que um sacristão acometido de hanseníase havia sonhado que era curado pelos santos. Outra narrativa conta que o suposto milagre teria sido praticado pessoalmente pelos dois, em vida.
“O sacristão padecia da enfermidade e sua perna estava toda corroída”, relata Maerki. “Os irmão então teriam amputado sua perna apodrecida e transplantado no lugar o membro de um africano que havia morrido há pouco.”