Nascido de incompreensão e intolerância, conflito sangrento deixou 17 mortos, inclusive a líder Jacobina Mentz Maurer. Para especialista, foi sintomático do fracasso do projeto oficial de imigração do Império. Em 2 de agosto de 1874, tropas do Exército executaram 13 homens e quatro mulheres numa vila de São Leopoldo, cidade pioneira da imigração alemã no sul do país. Era o fim do movimento mucker: comumente chamado de “Revolta dos Muckers” – embora o termo seja controvertido –, esse conflito armado marcou o Rio Grande do Sul.
O local da chacina, o Morro Ferrabrás, hoje faz parte de Sapiranga, município independente de São Leopoldo. Embora a história tenha fundo religioso, ela revela facetas das primeiras décadas das famílias germanófonas em território brasileiro. “Foi um movimento sociorreligioso”, define o historiador Daniel Luciano Gevehr, professor das Faculdades Integradas de Taquara e diretor de patrimônio cultural da Secretaria de Turismo, Cultura e Desporto da prefeitura de Sapiranga.
Isso porque, se no centro da questão estava uma líder religiosa, Jacobina Mentz Maurer (1841-1874), o pano de fundo era que os adeptos da seita eram colonos empobrecidos e sem assistência médica, religiosa e educacional. Assim, o movimento cristão era o que supria suas necessidades.
O estopim para a formação do grupo foi uma cisão religiosa no meio luterano dominante naquelas comunidades. Conforme conta o teólogo e historiador Martin Norberto Dreher, autor do livro A religião de Jacobina e professor emérito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, o grupo dos muckers do sul do Brasil descendia de religiosos da Turíngia que resistiram à introdução do novo catecismo luterano, de inspiração iluminista.
“Como se negassem a aceitar a nova orientação teológico-filosófica, levassem seus filhos para serem batizados fora do território e não participassem da Santa Ceia, foram declarados ‘separatistas’ e obrigados a renunciar à ‘velha doutrina’ ou a emigrar”, contextualiza. Uma dessas famílias veio ao Brasil, a bordo do veleiro Germania, em 1824.
“Na colônia alemã de São Leopoldo, obtiveram o lote número 1 da localidade de picada da Piedade, hoje Novo Hamburgo. Tornaram-se fundadores da comunidade evangélica-luterana da localidade”, conta Dreher
Jacobina Mentz Maurer
Jacobina era neta desses fundadores. Casou-se com o carpinteiro João Jorge Maurer (? -1874) e com ele se mudou para Ferrabrás, onde trabalhavam como carpinteiros. Lá, ela começou a receber outros moradores em sua casa, para rezas ao estilo mucker. Esse é o ponto religioso da questão.
“Ela fazia leituras e pregações, lia a Bíblia em alemão e organizava cultos domésticos na sala de sua casa”, relata Gevehr. O marido, conhecedor de ervas medicinais, acabou ficando famoso como “Wunderdoktor” (Doutor Milagroso). E, na falta de médicos à disposição, fazia as vezes de curandeiro da comunidade.
“Diversos fatores estavam presentes”, comenta o historiador. “Religiosos, porque pastores e padres [da região] ficam descontentes por conta das práticas. Havia descontentamento dos próprios médicos em função das práticas de João Jorge Maurer. E também questão de terra e de fundo político.”
Explica-se: em 1850 o Império publicou a primeira Lei de Terras. E esses colonos passaram a temer perder suas propriedades. “Muitos que aderem ao movimento mucker não tinham a posse legal da terra. E tinham medo de ser expropriados”, conta Gevehr.
A motivação política era mais trivial: um primo de Jacobina tinha intenção de se tornar vereador e foi até ela pedir sua intermediação na campanha, em busca de votos dos seus seguidores. Ela negou. Seu parente se tornou delegado e passou, nas palavras do historiador, “a deflagrar uma verdadeira luta no Ferrabrás”.
Tensões crescentes em torno dos muckers
Mas os conflitos não começaram da noite para o dia, evidentemente. Os muckers eram uma comunidade de cerca de 150 integrantes, colonos estabelecidos aos pés do Morro Ferrabrás. Mas, como frisa a historiadora Janaína Amado no livro Conflito social no Brasil: A Revolta dos Mucker, o número de simpatizantes pode ter chegado a mil – numa colônia que não contava mais do que 14 mil habitantes.
Os muckers tinham regras rígidas que passaram a incomodar quem não era adepto: não fumavam, não bebiam, não participavam de festas e confraternizações. Também excluíam seus filhos das escolas comunitárias.
Para os demais imigrantes, eles eram “separatistas” e não estavam alinhados ao luteranismo. Conforme conta o antropólogo João Guilherme Biehl no artigo A guerra dos imigrantes: O espírito alemão e o estranho mucker no Sul do Brasil, todos os muckers eram de origem alemã, mas 64% eram descendentes nascidos no Brasil. A maioria deles só falava alemão, sendo que 57,3% eram analfabetos e 23,5%, semianalfabetos, inclusive a líder Jacobina. A maioria, 69%, era formada por lavradores.
Quanto à religião declarada, 85% dos muckers eram protestantes. Para efeitos de comparação, na época 55% dos moradores de São Leopoldo professavam a fé protestante. Vale ressaltar que Jacobina não se considerava fundadora de uma nova crença. Para ela, o que era realizado em sua casa eram cultos protestantes luteranos.
Os conflitos com os demais moradores começaram em 1873, quando colonos passaram a prestar queixas policiais sobre a conduta dos muckers. A partir de então, crimes começaram a ser atribuídos a eles, de assassinatos e estupros a incêndios de casas e paióis. Nada foi comprovado.
No fim de junho de 1874, ordens militares determinaram a perseguição dos líderes do movimento. Ao longo de julho, houve alguns combates e, em 2 de agosto, 35 dias depois do início das operações, o último reduto mucker foi atacado. Entre as 17 vítimas resultantes, estava a líder Jacobina.
Nomenclaturas polêmicas
De acordo com estudiosos, o nome “mucker” pode ter duas explicações: por um lado, conota fanatismo religioso. “Significa embusteiro, santarrão”, explica Gevehr, tendo a ver com o som emitido por grupos repetindo juntos as mesmas orações, semelhante ao zumbido de abelhas ou moscas.
“O verbo mucken faz parte do idioma alemão”, confirma Dreher. “Pode estar relacionado a ‘mosquito’ e dizer do zumbido que teriam as pessoas religiosas em seu ouvido. Também pode ser referência a pessoas religiosas reunidas em oração simultânea […]. O som que produzem se assemelha ao zumbido do enxame de abelhas. Daí alguns traduzem mucker por beato, santarrão, colocando-os no rol dos movimentos messiânicos”, acrescenta o teólogo.
Gevehr ressalta que hoje em dia classificar o evento como “revolta” ou chamá-lo de Revolta dos Mucker não é adequado. “Não se utiliza mais, porque não foi uma revolta de colonos. Foi um conflito, efetivamente. Os muckers jamais atacaram alguém. Eles se defenderam dos ataques. Em nenhum momento eles se revoltaram.”
“Ninguém foi considerado culpado no processo, e nos autos do processo ainda existentes os muckers negam que Jacobina tenha sido dissoluta e pregadora da violência”, conta Dreher. “Mesmo assim, por causa das acusações dos opositores, passam à história como facínoras.”
Compreensões contemporâneas
Para o historiador, o episódio é emblemático daquele momento. “É fundamental para compreender a dinâmica migratória do sul do Brasil, porque o movimento mucker foi o maior exemplo para dizer que o projeto implementado pelo Império no século 19 para ocupar as regiões fronteiriças a partir de um projeto oficial de imigração não deu certo. São Leopoldo foi pioneiro e deveria servir de modelo para outras áreas. E foi exatamente ali que aconteceu esse movimento.”
Dreher enfatiza que o caso mucker revelou como as tradições alemãs e seus conflitos acabaram trazidos ao Brasil – e reproduzidos em solo nacional.