Um século após a morte de Rui Barbosa (1849-1923), completado nesta quarta, 1.º de março, as influências, ainda que difusas, do pensamento do jurista, jornalista e político continuam presentes no Brasil atual desse baiano, conforme reportagem de Wilson Tosta e Rayanderson Guerra, no Estadão. A ideia do Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião da Constituição, a disputa entre a Corte e os militares pelo papel de Poder Moderador, a campanha eleitoral como conhecemos hoje e até ações como a da Operação Lava Jato estariam nesse rol, diz a publicação. Mesmo a cobertura da política pela imprensa mudou pós-Rui, sobretudo depois da campanha eleitoral de 1909/1910, chamada de Civilista, quando foi apoiado por intelectuais, entre eles, Julio Mesquita, fundador do Estadão.
“Metade do que está acontecendo é Rui Barbosa”, diz o cientista político Christian Lynch, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, à qual retornou após o governo de Jair Bolsonaro, período em que ficou afastado por questões políticas. “STF, Poder Moderador, essa brigalhada toda começa com Rui.”
O político que teve cinco mandatos no Senado pela Bahia talvez não se surpreendesse se pudesse saber que um busto que o representa foi vandalizado pelos golpistas de 8 de janeiro de 2023. A testa de metal tem um afundamento, provavelmente produzido pela pancada violenta de uma ferramenta. Virou uma espécie de símbolo da brutalidade na política que exalta o militarismo e o uso da força que o baiano, na retórica e na prática, combateu. Mesmo imerso em contradições – como pregar contra as elites sendo parte delas em meio a um sistema eleitoral sabidamente fraudado do qual participava -, Rui defendeu democracia e direitos para todos, ainda que para um eleitorado que era uma fração muito pequena da população. A legislação daquele tempo excluía do voto as mulheres e os analfabetos – a maioria dos brasileiros. Mesmo assim, Rui parece ter aberto caminhos que chegam ao Brasil de 2023.
“A Campanha Civilista foi a primeira campanha eleitoral para valer no Brasil, com apoio da opinião pública liberal, e a primeira campanha eleitoral razoavelmente competitiva”, explica Lynch, para quem Rui queria dar um “choque elétrico” na opinião pública brasileira. “A ideia de democracia de Rui era democracia à americana. Ele achava que o Brasil não virava uma democracia porque a oligarquia pervertia a Constituição.”
Campanha inédita
Até a campanha de 1909/1910, os presidentes eram candidatos únicos e protagonizavam um roteiro pró-forma e previsível. Escolhidos em um conchavo da oligarquia, iam a um banquete, liam um discurso vago e eram aclamados. Depois vinha a farsa eleitoral, que os consagrava com mais de 90% dos votos. As elites políticas faziam a eleição presidencial com o resultado já decidido previamente.
Superada a República da Espada (a ditadura militar de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto que inaugurou o regime instaurado em 1889), foi assim que os políticos civis montaram o seu domínio. Prudente de Moraes (1894-1898), Campos Sales (1898-1902), Rodrigues Alves (1902-1906) e Afonso Pena (1906-1909) seguiram esse padrão e esses rituais. Nilo Peçanha foi um vice empossado com a morte de Pena. O próximo na fila era o marechal Hermes da Fonseca, que contava com o apoio da maioria das elites. Rui resolveu enfrentá-lo com uma novidade no País: a campanha eleitoral “à americana”. Foi às ruas falar com eleitores.
Campanha Civilista de Rui Barbosa à Presidência
“Rejeito doutrinas de poder arbitrário. Abomino ditaduras de todo o tipo, militares ou científicas, coroadas ou populares. Detesto estados de sítio, suspensões de garantias, razões de Estado e leis de segurança pública”, discursou Rui, ao ler sua plataforma no Teatro Baiano Politeama, em 15 de janeiro de 1910.
Rui poderia até ter razões pessoais para sair candidato, mas viu na candidatura Hermes o espectro da volta do florianismo. Era uma corrente autoritária que espancava opositores na rua e fuzilava sumariamente quem se rebelasse. Nessa disposição para destruir os adversários, vistos como inimigos não apenas da facção no poder mas do País, também é possível identificar semelhanças com o Brasil atual.
Os adeptos de Floriano Peixoto também empastelavam e fechavam jornais que contestavam o seu chefe. Foi o que fizeram com o Jornal do Brasil, que então tinha em Rui um de seus controladores e seu redator-chefe. Quando em 1893, na Segunda Revolta da Armada, Rui divulgou no diário o manifesto do contra-almirante Custódio de Mello e um artigo que escreveu contra o “Marechal de Ferro”, os seguidores do presidente começaram a caçá-lo. O jornal foi fechado temporariamente. Rui se abrigou na Embaixada do Chile e depois deixou o Brasil. Só voltaria em 26 de junho de 1895, com Prudente de Moraes na Presidência. Três dias depois, Floriano morreu. O florianismo, porém, vivia. Rui sabia disso.
Para o historiador e acadêmico José Murilo de Carvalho, o civilismo de Rui surgiu após relações conflituosas do jurista com militares do Exército. Antes, durante a Monarquia, relata, o jurista e político teve proximidade com os quartéis. No fim do Império, o baiano defendeu a ideia – que o pesquisador classifica de “infeliz” – do cidadão-soldado, lançada pelos positivistas. Seria o direito dado aos fardados de se meterem na política.
“Deodoro deu a Rui o título honorífico, para ele já constrangedor, de general de Brigada”, conta José Murilo. “A Constituição de 1891, de que Rui foi redator, já abriu o caminho da participação militar ao dizer que sua obediência estava restrita às medidas tomadas dentro da lei. Logo depois, com a subida de Floriano, teve de fugir do País para não ser preso.”
A partir daí, segundo José Murilo, a relação de Rui com os militares foi de permanente conflito. Em 1892, conta, em petição ao STF de habeas-corpus, Rui escreveu: “Livrai-nos da escravidão militar”. Quando o senador deixou o País, Floriano, furioso, cassou-lhe a patente honorífica e o expulsou do Exército.
O historiador destaca que quem mandava na política na Primeira República eram as oligarquias estaduais, e os fardados ainda eram atores secundários. “A entrada de militares diretamente na política foi o movimento tenentista iniciado em 1922 sob o impacto das Cartas Falsas, que chamavam Hermes de sargentão sem compostura”, lembra. “O alto oficialato não participou. A entrada dos militares como corporação só se daria após a decretação do Estado Novo (com Getúlio Vargas, em 1930).”
Revolução nas urnas
Para enfrentar Hermes, que tinha o apoio da maior parte da elite, Rui imitou os presidenciáveis americanos. A partir do fim de 1909, fez duas longas viagens de trem, por São Paulo e Minas Gerais. Parava nas estações, onde discursava para os eleitores, além de participar de comícios, sobretudo em teatros. Andava nas ruas, apertava mãos, fazia promessas, distribuía material de propaganda. Para visitar a Bahia, foi de navio. O resto do País ficou de fora – não havia estrutura, nem tempo, para ir mais adiante. Também novidade foi a cobertura da imprensa, que mandava textos e fotos sobre a pregação de Rui. Baseados na classe média urbana, muitos jornais, inclusive o Estadão, apoiavam o candidato da oposição.
“Rui era acompanhado por uma equipe de jornalistas”, diz Soraia Farias Reolon, pesquisadora do Setor Ruiano da Fundação Casa de Rui Barbosa. “A Campanha Civilista foi o início do fotojornalismo como narrativa no Brasil.”
Campanha Civilista nas páginas do ‘Estadão’
Hermes também fez alguma campanha, mas priorizou encontros fechados. Houve alguns choques violentos entre adeptos das duas candidaturas. Rui foi até acusado de, com sua ação, desunir os brasileiros. Mas foi acolhido nas ruas dos centros urbanos, aclamado como um campeão das liberdades. Venceu no Distrito Federal, Bahia, São Paulo e Minas Gerais, mas nos demais Estados a vitória foi do hermismo, apoiado nos coronéis do interior. Em 3 de março de 1910, Hermes da Fonseca teve 403.867 votos, contra 222.822 de Rui – aproximadamente 64% a 36%.
Mesmo assim, o resultado foi uma revolução se comparado aos pleitos anteriores. Em 1894, Prudente de Moraes vencera Afonso Pena por 276.583 a 38.291. Campos Sales derrotara Lauro Sodré por 420.286 a 38.929 em 1898. Em 1902, Rodrigues Alves prevalecera por 592.039 a 42.542 sobre Quintino Bocaiúva. A vitória de Afonso Pena foi de 288.285 a 4.865, sobre Lauro Sodré.
O nome de Rui seria votado em outros pleitos (não havia inscrição eleitoral), mas só em 1919 o jurista voltou a concorrer a sério. Com 116.414 votos (uns 30%), perdeu para Epitácio Pessoa (286.373) na disputa suplementar após a morte do presidente Rodrigues Alves, eleito e falecido antes da posse.
Nessa disputa, o enfoque de Rui foi outro. Pregou a necessidade de leis sociais. Desta vez, não teve apoio de ninguém. Foi um anticandidato, com uma plataforma “à esquerda” para o País na época. Dois anos antes, o Brasil vivera sua primeira greve geral operária, e a Revolução de 1917 derrubara o czarismo.
Rui propôs um amplo programa de reformas envolvendo: habitação para operários, o trabalho de menores de idade, as horas de trabalho, um auxílio a operárias mães, os acidentes de trabalho, um seguro para os trabalhadores, igualdade entre homens e mulheres no trabalho, criar um salário mínimo para os menores, redução ou veto ao trabalho noturno, trabalho em casa, salários para mães durante parte da gravidez e após o parto, armazéns especiais para os trabalhadores. Apesar da derrota, Rui venceu em todas as capitais, menos Manaus e na atual João Pessoa. Ganhou nas maiores cidades paulistas e baianas.
“Foi a primeira vez que alguém do establishment falou da questão social no Brasil”, destaca Lynch. “Em 1919, com seu discurso, Rui abre as portas para certa esquerda cosmopolita no País.”
STF e judiciarismo
Defensor de uma República democrática talvez idealizada, Rui nunca militou no Partido Republicano e mudou de posição algumas vezes em sua trajetória. Foi liberal e monarquista. Conselheiro do Império desde os 35 anos, em 1884, acabou, no primeiro governo republicano do Brasil, chefiado por Deodoro, como ministro da Fazenda. Mais tarde, diria ter aceitado o cargo para conter o autoritarismo.
Depois de aprovar, no Conselho de Ministros, o projeto de separação da Igreja do Estado, Rui foi eleito senador constituinte pela Bahia. Sua ação foi crítica na redação da primeira Constituição republicana, na qual optou pelo regime presidencialista e federalista – uma exigência das oligarquias locais. E apesar de ter integrado um governo chefiado por um marechal e com tendências autoritárias, ou talvez por isso mesmo, fortaleceu no texto constitucional o Poder Judiciário e o STF. O objetivo era conter arroubos de outros poderes – embora haja quem, como José Murilo de Carvalho, lembre que, na Constituição dos EUA, o STF já ocupava papel central. No Brasil, mesmo algumas Constituições depois, a ideia do Judiciário forte, retomada no texto constitucional de 1988, marcou, nos últimos anos, os embates entre o Supremo e o governo Jair Bolsonaro, até 2022.
“Para Rui, os Estados Unidos eram uma versão americana da Inglaterra”, analisa Lynch. “Ao mesmo tempo, ele constatava que a República presidencialista existia em toda a América Latina. E eram ditaduras. Então, defendeu o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal, a centralidade do STF como guardião da Constituição.”
Lynch explica que, durante o Império havia duas interpretações do papel do Poder Moderador. Uma era liberal: por ela, o imperador reinava, não governava e deveria agir apenas como árbitro das crises. Outra era conservadora: pregava que o monarca deveria tutelar o sistema político (um papel que os militares postulam desde a Proclamação da República). “A concepção liberal vai para o Supremo por meio de Rui”, descreve ele. “Assim como a crença em direitos, eleições limpas, voto secreto, respeito às leis, o combate à corrupção (no sentido amplo, de degeneração das instituições). O militarismo é o Poder Moderador ao contrário.”
Para Vera Lúcia Bogéa Borges, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e autora de A Batalha Eleitoral de 1910 – Imprensa e cultura política na Primeira República (Rio de Janeiro, Apicuri, 2011), Rui Barbosa defendia um modelo de República muito próximo do norte-americano. “Um regime presidencialista e pensando o papel do Poder Judiciário”, descreve. “Hoje em dia conhecemos o Supremo Tribunal Federal (forte). Nada disso era uma realidade naquele momento.”
O fortalecimento do Supremo por proposta de Rui deu espaço, na visão de alguns pesquisadores, ao “judiciarismo” – outro nome para o “ativismo judicial”. Seus objetivos seriam garantir a Constituição e o estado democrático de direito contra as oligarquias e o autoritarismo. Repercussões dessa concepção inoculada por Rui Barbosa na Constituição de 1891 chegaram até a Operação Lava Jato tocada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) sob o comando de Rodrigo Janot, com a chancela do STF.
Formação liberal e contradições
Nascido em Salvador em 1849, Rui Barbosa foi formado politicamente na tradição do Partido Liberal do Império. Ingressou em 1866 na Faculdade de Direito do Recife, na qual integrou uma associação abolicionista. Transferiu-se em 1868 para a Faculdade de Direito de São Paulo, militou no movimento de estudantes universitários e até participou de um Clube Radical. A entidade pregava o federalismo, o ensino livre, o Senado eleito, o fim do Poder Moderador, a Abolição e a eleições diretas. Formado em 1870, voltou a Salvador, inscreveu-se com o pai no Partido Liberal e aos 23 anos ingressou no Diário da Bahia, jornal da legenda. Era redator-chefe – de graça. Oito anos depois, iniciou a carreira parlamentar.
O mesmo Rui que criticaria, na República, a ação das elites, foi o principal redator da Lei Saraiva, editada em 1881, que reformou o sistema eleitoral, passando de dois níveis (votantes e eleitores) para apenas um. Manteve, porém, a exigência de renda mínima para votar (embora não a elevasse dos 400 mil réis, como queria inicialmente o governo), eliminou o voto dos analfabetos, quase excluiu o trabalhador das eleições, tornou o voto facultativo. Admitiu, porém, que os ex-escravizados libertos, os estrangeiros naturalizados e os não católicos votassem. Foi, segundo explicaria Rui, “o liberalismo possível”.
Críticos de Rui apontam como nociva sua ação como ministro da Fazenda, quando estimulou emissões de moeda para impulsionar a economia. O “Encilhamento”, que ganhou esse nome por causa da euforia especulativa que gerou no mercado da época, seguiu concepções que equivaleriam hoje ao desenvolvimentismo. Gerou uma crise econômica inflacionária. O problema só seria debelado por Campos Sales, com uma política restritiva – seria monetarista, se estivessem em 2023.
Outro motivo de críticas à ação do baiano no Ministério da Fazenda envolve sua ordem para destruir documentos relativos à escravidão. Militantes do movimento negro e alguns historiadores apontam uma ação para supostamente apagar a história do trabalho negro escravizado no País. Defensores de Rui, porém, lembram que proprietários rurais que tinham abandonado a defesa da Monarquia por causa da Abolição exigiam o pagamento de indenizações pelas “propriedades” perdidas – os cativos. A determinação de Rui, abolicionista desde a faculdade, foi para destruir os documentos de propriedade. O objetivo seria inviabilizar os pedidos de ressarcimento.
Até no campo jurídico há críticas a Rui, não por seu conhecimento do Direito, mas por sua atuação como advogado. O jurista é criticado por sua atuação envolvendo o monopólio das carnes verdes no Distrito Federal, no início do século 20. Advogado da empresa Salgado, Cardoso, Lemos e Cia, ele aceitou trabalhar para uma empresa rival. Rui tentou romper com o primeiro cliente – o segundo teria oferecido o dobro -, o representado se recusou a aceitar o distrato, e o caso chegou à imprensa, com ares de escândalo.
Os defensores preferem lembrar outro Rui. Falam do polímata com vasta cultura – algumas vezes motivo de acusações de pedantismo. Referem-se ao chefe da delegação brasileira na Conferência de Haia, em 1907, na qual defendeu a igualdade jurídica das nações – ainda hoje objeto de controvérsia. Lembram ainda o Rui que apresentou habeas-corpus em favor de presos sob o florianismo, com os riscos até físicos que isso implicava. Recordam ainda o chefe da oposição implacável a Hermes da Fonseca, o senador que após a Revolta da Chibata, comandada por João Cândido, apresentou o projeto de anistia aos revoltosos.
A pioneira campanha de 1910, que Rui sabia perdida antes de começar, ajudou a fixar essa imagem um tanto quixotesca do baiano. Foi assim que Carlos Drummond de Andrade – que, criança, testemunhou a campanha do jurista em Minas – o recordou, meio século após sua morte, no Jornal do Brasil, em 1.º de março de 1973. “Na derrota, ele cresceu ainda mais”, escreveu o poeta mineiro na crônica “Rui, naquele tempo”. “De 1910 a 1914, o Brasil teve dois presidentes. Um de fato e outro de consciência, entre seus livros e papéis da Rua São Clemente, e daí para a tribuna do Senado ou perante o Supremo Tribunal Federal, postulando, verberando, exigindo o cumprimento da lei, já menos como político do que como defensor dos direitos humanos.”