Guaracy Silveira é considerado o primeiro deputado evangélico do Brasil.
O pastor da Igreja Metodista foi eleito para a Assembleia Nacional Constituinte que fez a Carta de 1934, a primeira depois da revolução que acabou com Getúlio Vargas no poder.
Mas ele defendeu posições um pouco diferentes do que se vê atualmente em Brasília, onde a Bancada Evangélica está cada vez mais forte no Congresso e um ministro “terrivelmente evangélico” chega ao Supremo Tribunal Federal.
Guaracy Silveira foi a favor do divórcio, por exemplo — 40 anos antes de ele ser legalizado — e tentou impedir que as escolas públicas pudessem ter aulas de religião.
Também não queria mencionar Deus na nova Constituição e, eleito por um partido socialista, saiu em defesa dos trabalhadores.
Mas defendeu sobretudo que os protestantes poderiam e deveriam se envolver na política.
“Ele pregava uma Igreja que atua em favor da população em geral e não em causa própria, que não tenta impor seus valores na sociedade, mas garantir o bem público”, diz Cilas Ferraz de Oliveira, autor de Guaracy Silveira: um protestante na política (Novos Diálogos, 2013).
Oliveira é pastor metodista, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação — e pesquisou sobre a vida política e religiosa do primeiro nome protestante de peso na cena política nacional brasileira.
É importante fazer a ressalva de que ao menos outros dois fazendeiros protestantes já tinham sido eleitos antes de Guaracy Silveira. “Ainda na Primeira República”, explica Oliveira.
Mas com o pastor foi diferente. Ele foi um candidato da igreja. Sua base eleitoral eram os protestantes, e ele chegou à Constituinte para defender os interesses dos crentes do país, que na época eram uma pequena minoria.
A Igreja Católica estava se mobilizando para eleger deputados e inscrever seus valores e interesses na nova Carta, e os evangélicos tentaram fazer o mesmo.
“Havia uma desconfiança dos evangélicos de que o catolicismo estava se organizando para recuperar espaços perdidos com a Proclamação da República”, diz Oliveira.
A Constituição de 1891 havia decretado o Estado laico e impedido o ensino religioso nas escolas públicas.
A Constituição de 1934 foi vista pelos católicos como uma oportunidade de eles voltarem às salas de aula.
Guaracy Silveira e outros deputados sabiam que as aulas de religião seriam na verdade aulas de catolicismo.
O pastor, único protestante da Constituinte, tentou mudar o artigo sobre o assunto e articulou com os parlamentares socialistas, liberais e maçons, mas acabou derrotado.
A Carta de 1934 autorizou o ensino religioso nas escolas públicas, mas disse que ninguém seria obrigado a assistir às aulas.
Para Guaracy Silveira, isso seria uma “uma forma de opressão à consciência das crianças”.
Ele também não conseguiu impedir que colocassem Deus na Constituição.
O texto final dizia: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”.
O pastor foi contra o requerimento que pediu para incluir esse trecho por achar “perfeitamente desnecessária qualquer declaração da confiança íntima em Deus”.
“A confiança em Deus é uma questão íntima e somente o próprio Deus sabe se os que elaboraram a Constituição confiaram ou não confiaram n’Ele”, disse na época.
“Ele não era contra a gratidão a Deus, mas à menção a Deus”, explica Cilas Oliveira.
“Ele defendia a separação entre a Igreja e o Estado e entendia que em toda aquela discussão estavam envolvidas pessoas que não acreditavam em Deus, tinham outras religiões, então, a Constituição não deveria falar em Deus, como se Deus estivesse assinando embaixo.”
Também falava que era muito bem casado, mas era a favor do divórcio. “Ele dizia que a proibição muitas vezes levava a um divórcio a bala, com o assassinato da mulher”, diz Oliveira.
Vida política intensa dentro e fora da Igreja
Guaracy Silveira dizia ser descendente de bandeirantes e liberais. Mas não era de uma família especialmente religiosa.
O pai era fazendeiro no interior de São Paulo, e a mãe, dona-de-casa.
O dinheiro da família foi embora com a derrocada do café quando o pastor ainda era criança. Ele parou de estudar cedo por falta de dinheiro e foi trabalhar.
Trabalhou em uma empresa telefônica e uma padaria. Foi ajudante de escritório, lavador de vidros e prático de farmácia.
Só voltou para a escola no final da adolescência, quando entrou para o seminário. Foi ser padre para conseguir terminar os estudos.
Ele contava que tinha se decepcionado com a Igreja Católica e por isso havia decidido abandonar a carreira eclesiástica.
Guaracy Silveira entrou pouco depois para a Igreja Metodista e, alguns anos depois, havia se tornado uma das suas principais lideranças.
O pastor teve uma vida política intensa dentro e fora da igreja.
Dentro da igreja, trabalhou pela autonomia dos metodistas brasileiros em relação aos Estados Unidos, de onde tinham vindo parte dos missionários que trouxeram essa igreja para cá.
A autonomia foi conseguida em 1930. Ele se aposentou como pastor sete anos depois. Também trabalhou como editor da revista Expositor Cristão.
Fora da igreja, ele foi membro não só da Constituinte de 1934, mas também a de 1946, promulgada depois da queda do Estado Novo.
Foi deputado federal na primeira legislatura da redemocratização, até 1951.
Ainda na primeira Constituinte, ele foi expulso do Partido Socialista Brasileiro pela ala marxista da legenda, com quem compartilhava a luta por direitos trabalhistas mas não os ideais liberais.
Na segunda Constituinte, elegeu-se pelo Partido Trabalhista Brasileiro. Depois, criou e presidiu o Partido Republicano Trabalhista.
O pastor Cilas Oliveira diz que Guaracy Silveira defendia que os crentes podiam fazer política e ajudar a determinar os rumos da sociedade.
“Ele não concordava com quem falava que não participar da política era uma forma de manter a Igreja pura, porque ele dizia que isso acontecia de qualquer forma, por debaixo dos panos. Ele defendia que era melhor fazer isso com clareza e honestidade”, diz Oliveira.
Ao mesmo tempo, defendia a laicidade. “Ele acreditava que o Estado não pode servir a uma religião, e o Estado não tem que mandar na Igreja. Que os religiosos podem se envolver na política, mas sem impor sua religiosidade a quem quer que seja.”
Também sabia que isso era importante para garantir a liberdade do exercício de outras fés como a sua em um país de maioria católica.
Guaracy Silveira morreu em 1953, aos 60 anos. Deixou uma mulher, cinco filhos e dois romances escritos.