Apelidado de “loup de mer” (lobo do mar) – ou, segundo alguns historiadores, de “El Diablo“, em espanhol – por Napoleão Bonaparte, devido as suas façanhas em batalhas navais, durante as chamadas Guerras Napoleônicas (1803-1815), quando o imperador francês atacou várias nações europeias, o almirante escocês Thomas Cochrane entrou para a história como uma das figuras mais controvertidas do seu tempo – e continua sendo até hoje.
Ele é tido por alguns como herói, por sua competência, astúcia e vitórias espetaculares no mar a serviço, primeiro, da Grã-Bretanha e, depois, de Chile, Peru, Brasil e Grécia (onde sua atuação foi insignificante).
Há também, no entanto, os que o tratam de vilão, acusando-o de ser um corsário, pirata e até um ladrão dos mares, porque seria “louco por dinheiro”.
No caso do Império brasileiro, Cochrane foi contratado pelo imperador D. Pedro I para organizar e comandar a marinha brasileira, e se tornou um dos principais responsáveis por garantir a independência e a unidade do país.
Cochrane, 10º Conde de Dundonald e Marquês do Maranhão, nasceu na Escócia, em 14 de dezembro de 1775 e morreu em 31 de outubro de 1860. Ele foi um oficial naval e político do Império Britânico e figura com personalidade de destaque nas histórias militares dos países a que serviu.
“Para os ingleses, um homem extraordinário, militar excepcional e herói nacional”, diz o médico Natalino Salgado Filho, reitor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que organizou e fez a apresentação da nova edição brasileira do livro A Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa, do próprio lorde, que deve ser lançado nos próximos meses.
Segundo Salgado Filho, tanto é assim, que seus restos mortais descansam na Abadia de Westminster, lugar sagrado em que se realizam as principais cerimônias do Império britânico.
“Suas espetaculares façanhas militares vêm alimentando obras de diversos ficcionistas ao longo do tempo, da literatura ao cinema”, acrescenta.
O ex-presidente da empresa aérea Rio Sul e do Sindicato Nacional de Empresas Aeroviárias (SNEA), George Ermakoff, hoje escritor e dono de editora, conhece bem a história do almirante britânico.
Ele revirou arquivos no Brasil, especialmente na Marinha, e na Inglaterra e Escócia, além de ter entrevistado o atual 15º conde de Dundonald, para escrever o livro Lorde Thomas Cochrane – um guerreiro escocês a serviço da Independência do Brasil – biografia, lançado em setembro do ano passado.
De acordo com o autor, inicialmente o seu biografado se notabilizou como oficial da Marinha de guerra britânica nas Guerras Napoleônicas, e tantos foram os seus feitos, vitórias e navios inimigos apreendidos ou destruídos, que na época sua fama ultrapassou as fronteiras de seu país, convertendo-o em celebridade mundial em pleno século XIX.
“O maior dos inimigos dos britânicos, o próprio Napoleão Bonaparte, admirava-o pelos seus feitos, tendo lhe atribuído a ele o epíteto de lobo do mar (loup de mer)”, conta.
Sua carreira naval começou em 1793 e sua primeira façanha em batalhas no mar ocorreu sete anos depois, quando ele, com apenas 25 anos, já era oficial da Marinha britânica.
Em 1800, conforme relatado no livro 1822, de Laurentino Gomes, Cochrane, comandando o brigue – um tipo de embarcação, com dois mastros com velas quadradas transversais – “Speedy”, equipado com apenas 14 pequenos canhões e 84 marinheiros, conseguiu derrotar e capturar o navio espanhol “El Gamo”, muito maior, armado com 32 canhões de grosso calibre e uma tripulação de 300 homens.
Para Salgado Filho, Cochrane foi um grande mestre do combate naval, um estrategista de primeira.
“À frente de naus britânicas, protagonizou eventos espetaculares, que lhe deram a admiração popular e a inveja dos desafetos, dentro e fora da Armada”, diz.
“Subjugou seus adversários com inteligência ímpar e os levou muitas vezes à derrota usando de artifícios simples e sem destruir vidas. Mostrou-se soberano nas batalhas, e conquistou a simpatia e a fidelidade de seus comandados, porque nele reconheceram a grandeza do capitão e seu conhecimento naval.”
Nessa mesma época, início do Século XIX, Lorde Cochrane entrou para a carreira política.
“Além de ter sido oficial da Marinha Britânica, ele também foi deputado pela Câmara dos Comuns”, conta Roni César Andrade de Araújo, coordenador do Laboratório de Estudos do Maranhão Imperial (LEMI), que vem estudando o almirante desde que escreveu sua monografia de graduação, em 2004.
“Ele foi eleito pela primeira vez, em 1806, pelo distrito de Honiton, e reeleito em 1807, dessa vez pelo de Westminster. Seria eleito de novo em 1814, após ter sido condenado pelo caso da Bolsa de Valores.”
Esse caso é uma mancha na imagem histórica de Cochrane e gera debates e controvérsias até hoje. Naquele ano, ele foi acusado de inventar a morte de Napoleão Bonaparte, para especular na Bolsa de Valores londrina.
“A economia inglesa, estrangulada pelo Bloqueio Continental estabelecido por Napoleão, viu os papéis negociáveis dispararem com a notícia do falecimento do imperador francês”, conta Salgado Filho.
“A verdade – de que Napoleão não havia morrido – só foi restabelecida um mês depois. Após investigações, em 20 de junho, oito investidores, que lucraram muito com a venda dos seus títulos, foram condenados, entre eles Cochrane.”
Hoje, no entanto, há muitas dúvidas quanto à veracidade das informações, especialmente em função dos severos choques entre ele e o Almirantado inglês.
Seja como for, Cochrane foi condenado ao flagelo por chicoteamento em praça pública, à prisão por um ano em King’s Bench, e a pagar multa no valor de 1.000 libras.
Além disso, no dia 5 de julho, ele foi cassado por seus pares do Parlamento e expulso da Marinha e perdeu seus títulos de nobreza, que só viria a recuperar em 1831, quando o então rei William IV o perdoou.
O primeiro ano do seu mandado conquistado em 1814 ele o exerceu da cadeia. Depois de solto, continuou no parlamento até 1818, quando embarcou para o Chile.
“Ele chegou ao país em novembro daquele e logo foi nomeado vice-almirante e comandante em chefe da Esquadra Chilena”, informa Araújo.
“No período em que esteve no país andino, atuou também nas lutas do Peru, destacando-se nos conflitos em torno da conquista do porto de Callao, em Lima.”
De acordo Ermakoff, a participação de Cochrane na Independência do Peru, foi contratada pelo governo do Chile para consolidar a sua própria, permanentemente ameaçada pelas forças espanholas do vice-reinado peruano.
Ou seja, a missão do Lorde escocês era derrotar aquele vice-reinado e acabar com o seu poder naval na costa do Pacífico.
“A esquadra chilena comandada por ele transportou as tropas que tomaram Lima sob a liderança do general José de San Martin, o qual, após tomar o poder proclamou a Independência, se investindo com o título de ‘Protetor do Peru’.”
Cochrane permaneceu no Chile até o final de 1822, quando recebeu o convite do Brasil, para onde partiu em janeiro de 1823.
De acordo com Salgado Filho, ele foi contratado pelo recém-constituído Império brasileiro para assumir o posto de Primeiro Almirante da Marinha, criado especialmente para ele, e liderar a esquadra nacional a fim de enfrentar grupos e tropas portuguesas contrários à Independência em províncias do Nordeste e do Norte.
“Era também atribuição sua restituir a ordem política e administrativa nas províncias sublevadas, e fazer o que fosse preciso para manter a unidade do estado brasileiro”, acrescenta.
“E assim agiu. Combateu na Bahia, onde se concentravam as forças navais lusitanas, e as expulsou. O mesmo ocorreu no Pará e no Maranhão.”
Táticas distintas
Nos três países em que ajudou a consolidar o processo de independência, Cochrane obteve grandes conquistas e vitórias em batalhas, em muitas delas com truques, blefes e estratagemas.
Exemplos não faltam. Um deles foi a tomada da cidade de Valdívia, um enclave fortificado ainda dominado pelos espanhóis, supostamente inexpugnável, dentro do território da nação chilena então libertada do domínio espanhol.
Segundo Ermakoff, ao invés de atacar pelo mar, Cochrane vislumbrou que a melhor tática seria desembarcar seus fuzileiros numa praia, escalando em seguida a colina onde ficava o Forte do Inglês, que foi imediatamente subjugado pelos seus homens.
“Em seguida, tomaram outros nove fortes ou baterias costeiras, silenciando seus canhões, e entraram em Valdívia por via marítima”, diz.
O segundo episódio foi a tomada da fragata espanhola Esmeralda, ancorada em Callao, fato que marcou a expulsão definitiva da Marinha de guerra do país ibérico da costa do Pacífico na América do Sul.
“Cochrane e seus comandados, embarcados em escaleres a remo com abafadores de ruído, invadiram a embarcação com a ajuda de cordas, acobertados pela escuridão da noite”, conta Ermakoff.
“O almirante foi ferido por um tiro de mosquete na coxa direita logo no início do combate. Ele mesmo estancou a hemorragia com um lenço, e continuou na luta corpo a corpo até a capitulação da tripulação inimiga.”
No Brasil, onde chegou em 13 de março de 1823, há pelo menos três casos que revelam sua inteligência e astúcia em combate.
Apesar disso, Cochrane foi derrotado em sua primeira batalha no país. Ele saiu do Rio de Janeiro, no dia 1º, para enfrentar a frota portuguesa ancorada em Salvador, mas foi surpreendida pelo tamanho dela, 14 navios armados com 380 canhões. Quase três vezes maior do que a sua, que tinha apenas cinco embarcações e 234 canhões, segundo o livro 1822.
Na verdade, com o risco de sofrer uma derrota humilhante e até ser capturado, o Lorde preferiu fugir. Mas aprendeu a lição. Na segunda vez que enfrentou a frota portuguesa na Bahia, ele não partiu para confronto direto. Ele decidiu bloqueá-la no porto de Salvador, impedindo-a de receber suprimentos – os portugueses já estavam cercados por terra, pelo Exército Imperial.
Ainda conforme “1822”, no dia 2 de julho de 1823, a frota portuguesa, agora composta de 17 navios de guerra e 75 mercantes, resolveu partir para Portugal. Cochrane foi atrás e conseguiu capturar 16 barcos e fazer cerca de 2.000 prisioneiros.
No Maranhão ele nem se deu ao trabalho de lutar. Venceu com um blefe.
“Ele aportou em São Luís com dois navios, e avisou ao governo local que a frota imperial, que se aproximava, bombardearia a cidade, caso as autoridades não se rendessem”, conta Salgado Filho.
“Nem um tiro foi disparado, e a Província do Maranhão aderiu à Independência, graças à astúcia de Cochrane.”
Blefe semelhante ele usou contra o Pará, então ainda aliado a Portugal. Nesse caso, ele nem precisou ir até lá, tendo ficado em São Luís mesmo.
“No dia 10 de agosto de 1823, chegava à barra de Belém, um único brigue, sob o comando do jovem inglês, de 23 anos, John Pascoe Grenfell”, conta Araújo.
“Havia partido de São Luís, sob ordens de Cochrane, levando ofícios assinados, mas com datas em branco, a serem encaminhados à Junta do Governo do Pará, fazendo-os crer que o lorde se encontrava ali, aguardando, junto à sua esquadra, a certa distância, os desdobramentos das negociações com o governo da Província do Pará sobre a adesão ou não ao Império do Brasil.”
Esse blefe, conhecido como “esquadra imaginária”, fez com que a junta, temendo o ataque iminente, cedesse à pressão e aderisse ao Império sem resistência.
“Ora, os ofícios assinados por Cochrane, datados daquele dia exato, não deixavam dúvidas de que o próprio estava ali comandando as negociações”, diz Araújo.
No ano seguinte, Cochrane foi para Pernambuco a fim de cumprir mais uma missão militar, dessa vez para enfrentar os revoltosos da Confederação do Equador, um movimento revolucionário de caráter republicano e separatista que eclodiu no dia 2 de julho em Pernambuco, se alastrando para outras províncias do Nordeste, como Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
De volta ao Maranhão
Depois de contida a insurreição, ele navegou para outras províncias da região com a mesma finalidade, até aportar em São Luís, pela segunda vez.
“Chegou, desta vez, à capital maranhense para sufocar focos de descontentamento com o governo imperial”, conta Salgado Filho.
“Graças as suas ações militares e medidas de controle, Cochrane garantiu a Independência do Brasil e a unidade do Império.”
Esse é um lado da história. O outro, mais controverso, é a fama que ele deixou e ainda o persegue de ser avarento. Para alguns, no entanto, ele só cobrava o que lhe era devido. Há vários episódios que contribuíram para forjar sua imagem de louco por dinheiro. Um dos primeiro ocorreu no Peru. “Depois da tomada de Lima, San Martin foi designado como chefe de governo do Peru”, informa Ermakoff
Tanto os oficiais como os praças da esquadra de Cochrane ficaram mais de um ano sem receber seus respectivos soldos, e então começaram a exigi-los, inclusive ameaçando abandonar o serviço. Para piorar o cenário, a esquadra também estava ficando sem suprimentos.”
“Ele foi ao palácio cobrar San Martin, que não quis pagar alegando que as despesas do Chile não eram de sua responsabilidade. Mas logo os ventos viraram a favor do lorde escocês. Poucos dias depois, as tropas espanholas que haviam saído de Lima em direção às montanhas, resolveram voltar. Receoso de que os espanhóis pudessem retomar a capital, San Martin mandou transferir parte dos recursos públicos peruanos para um navio. Quando Cochrane soube disso, não pestanejou. Foi lá e confiscou tudo, pagou a tripulações, reparou e abasteceu os navios de mantimentos e devolveu o que sobrou ao governo chileno. Junto havia dinheiro privado, que foi devolvido aos seus proprietários.”
Outro episódio ocorreu no Brasil, em 1824, quando da sua segunda passagem por São Luís.
“Depois de desbaratar a Confederação do Equador, Cochrane resolveu cobrar a dívida que a província tinha com ele”, conta Ermakoff.
“Obrigou, com ameaça das armas, que a Junta do Maranhão lhe ressarcisse 106 contos de réis, parte do que ele havia confiscado dos portugueses, e em seguida se retirou para a Inglaterra.”
Por essas e outras e outras o lorde escocês ficou com a fama de ser ávido por dinheiro.
“O ex-presidente José Sarney o chamou de ‘corsário’, o jornalista Laurentino Gomes o rotulou de ‘herói maldito da história brasileira’, enquanto o também jornalista e historiador Manoel José Gondim da Fonseca (1899-1977) chegou a se referir a ele como ‘gatuno destemido, uma espécie de Lampião do mar'”, diz Ermakoff.
Para ele, os termos corsário e pirata foram usados por seus opositores, inclusive políticos, historiadores e jornalistas, mais como um instrumento de retórica, “porquanto não lhe cabe nenhum desses figurinos”.
“Cochrane nunca foi nem uma coisa nem outra”, afirma Ermakoff “Ele sempre comandou navios de guerra britânicos, chilenos, brasileiros e gregos, diretamente subordinado aos governos desses países, o que pressupõe respeitar suas leis e regulamentos.”
Segundo Araújo, quando se estuda a história de Cochrane, é possível identificar, nas suas aventuras pelas guerras de independência na América do Sul, sua constante reclamação em relação ao desconhecimento das autoridades constituídas tanto do Chile quanto do Brasil, no que dizia respeito às leis de guerra ou mesmo àquelas que regiam, especificamente, às questões relativas aos conflitos marítimos.
“Isso, a seu ver, explicava, em grande medida, a dificuldade que tinham em agir com justiça no que dizia respeito ao pagamento do que era, no seu entendimento, direito devido aos homens do mar, o que à época se chamava ‘boas presas’ de guerra”, explica.
Salgado Filho lembra que foi firmado contrato entre o governo brasileiro e Cochrane, estipulando, entre outras coisas, que ele teria direito ao que decorresse de aprisionamento, especialmente de navios e suas cargas – como era praxe na época em acordos dessa natureza.
“Após expulsar os portugueses da Bahia, o capitão John Taylor (comandado do lorde escocês) deu perseguição à frota portuguesa, e retornou ao porto de Salvador com impressionantes 19 navios lusos aprisionados”, diz Além dessas, outras naus portuguesas foram apresadas durante as lutas pela Independência.
A maior parte desses navios foi incorporada à recém-criada Marinha brasileira. Como o governo brasileiro não efetuou o pagamento pelas presas de guerra, Cochrane passou a cobrar o que lhe era devido. “A cobrança correu anos a fio”, revela Salgado Filho.
“Depois que deixou o Brasil, ele ingressou com processos na justiça brasileira; e continuou enviando correspondências ao governo, requerendo o pagamento.”
Enquanto Cochrane viveu, não foi pago. Depois que ele faleceu, em 1860, seus herdeiros entraram com uma ação de cobrança da dívida pendente na justiça britânica.
“O caso foi resolvido por um tribunal arbitral, formado por três embaixadores de países neutros (Estados Unidos, Bélgica e Itália), e o Brasil foi condenado”, diz Ermakoff.
“O país pagou em 1875 uma quantia, que corrigida, hoje equivalente a cerca de 4,5 milhões de libras.”