Na manhã de 13 de agosto de 2008, o então juiz federal Benedito Gonçalves foi à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Ele seria sabatinado para o cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), após indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em um dado momento, a sabatina se tornou um debate sobre cotas raciais, protagonizado pelos então senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Demóstenes Torres (DEM-GO).
Naquele momento, Benedito evitou tomar lado: disse apenas que o debate sobre as cotas era “fundamental”. No fim, obteve o apoio da CCJ e do Plenário do Senado, e é hoje o único ministro negro entre os 33 integrantes do STJ.
Aos 69 anos, o carioca Benedito Gonçalves vive um momento de protagonismo por conta de sua atuação em outra corte, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em maio, foi o relator do julgamento que resultou na cassação do ex-deputado e ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol (Podemos-PR).
Nesta quinta-feira (22/6), o TSE examinará outro caso relatado por ele: uma ação movida pelo PDT contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O caso foi liberado para julgamento por Gonçalves em 1º de junho e é apenas uma das 16 ações contra Bolsonaro no TSE.
Se condenado em qualquer uma delas, o ex-presidente se torna inelegível, isto é, perde os direitos políticos por oito anos – as possíveis penas, no entanto, não se acumulam neste sentido; caso haja mais de uma condenação, o período permanece de oito anos.
Nesta quarta-feira (21), em visita ao Senado, Bolsonaro enviou um recado diretamente a Gonçalves, pedindo que ele “mude” seu voto — indicando uma expectativa negativa sobre seu caso, já que o ministro ainda não tornou público seu voto.
“Tenho certeza que até o Benedito, o senhor Benedito, ministro do STJ, agora integrante como relator do TSE, vai mudar o seu voto. Senhor Benedito, é questão de coerência”, disse o ex-presidente a jornalistas, defendendo que seu julgamento tenha um caminho parecido com o da chapa Dilma-Temer, cujo pedido de cassação por abuso de poder político e econômico em campanha foi negado pelo TSE em 2017.
O processo movido pelo PDT e que será julgado pelo STJ acusa Bolsonaro de ter abusado do cargo de presidente ao promover uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em 18 de julho do ano passado, para repetir acusações de fraude não comprovadas contra o sistema eleitoral brasileiro.
Além de usar a estrutura física do Palácio do Planalto, o ex-presidente também teria usado indevidamente os serviços da TV Brasil, uma emissora estatal, para transmitir o encontro, argumenta o partido.
“Bolsonaro fez três ‘lives’ atacando o sistema eleitoral, usou aviões da FAB para levar especialistas na calada da noite ao Palácio para ratificar (a tese da fraude nas urnas). Então, veja que não foi apenas a reunião com embaixadores (…). Se essas provas autoevidentes não servirem para condenar Bolsonaro, o que servirá?”, questiona o advogado do PDT Walber Agra, um dos autores da petição.
A defesa de Bolsonaro nega irregularidades e sustenta que a reunião foi um “ato de governo”, sem finalidade eleitoral. O assunto também não seria da alçada do TSE, alega a defesa.
A ação do PDT chegou às mãos de Gonçalves pelo fato de ele ser o corregedor-geral da Justiça Eleitoral – posto que é sempre ocupado pelo ministro do TSE mais antigo proveniente do STJ.
Benedito assumiu o cargo em setembro do ano passado, depois da saída do ex-ministro Mauro Campbell Marques do TSE.
Benedito é considerado próximo ao presidente do TSE, Alexandre de Moraes, a quem costuma acompanhar nas decisões para remover notícias falsas da internet.
Como relator do caso, Benedito deu decisões que garantiram a chegada da ação do PDT ao plenário do TSE.
Ainda em 2022, o ministro rejeitou dois questionamentos feitos pelo advogado de Bolsonaro, Tarcísio Vieira de Carvalho.
No principal deles, o advogado argumentou que a Justiça eleitoral não deveria julgar o tema, uma vez que Bolsonaro não pediu votos durante a reunião.
A defesa também queria que a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, se tornasse ré junto com Bolsonaro. As decisões de Benedito foram depois confirmadas pelo plenário do TSE.
No comando da ação, o ministro também permitiu que os advogados do PDT incluíssem no processo a “minuta do golpe” – um documento encontrado pela Polícia Federal na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, e que consistia no rascunho de um decreto de intervenção no TSE, após as eleições de 2022.
Para tentar diminuir as chances de um provável pedido de vista – isto é, algum outro ministro pedir mais tempo para analisar o caso – Benedito também disponibilizou seu relatório com antecedência, em 1º de junho.
Mesmo assim, caso haja pedido de vista, agora há prazo para que a ação seja devolvida: são trinta dias, prorrogáveis por mais trinta.
Nascido no Rio em janeiro de 1954, Benedito Gonçalves é de origem popular, segundo pessoas que o conhecem. Antes de concluir o curso de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aos 24 anos, trabalhou como inspetor em escolas públicas.
Foi também papiloscopista na Polícia Federal por alguns anos e delegado da Polícia Civil do DF, já em Brasília, entre 1982 e 1988 – naquele ano, foi empossado juiz federal após concurso público. O ministro é casado com a advogada Santina Gonçalves e pai de dois filhos: Felipe e Fernanda.
Benedito Gonçalves começou a atuação como magistrado em Santa Maria (RS), e também foi titular de uma Vara da Justiça Federal no Paraná.
Transferido para o Rio de Janeiro, alcançou em 1998 o posto de desembargador no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que abrange os Estados do Rio e do Espírito Santo.
O ministro é também pós-graduado em direito processual civil e mestre em direito pela Universidade Estácio de Sá, onde chegou a lecionar algumas disciplinas.
Como magistrado, Benedito é conhecido pela habilidade administrativa e por buscar incorporar a tecnologia no cotidiano da Justiça.
Também tem bom trânsito com os advogados, e é membro honorário de associações como o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), apesar de nunca ter exercido a advocacia.
“Ele era um desembargador, e depois ministro, verdadeiramente adorado pelos advogados, porque sempre tratou os advogados com uma generosidade que pouca gente trata. Sempre foi muito querido pela advocacia como um todo”, diz Vânia Aieta, que é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Ela conviveu com o ministro na época em que ele atuou no Rio.
Apesar de não ter entrado no debate sobre cotas raciais durante a sabatina no Senado em 2008, Benedito costuma se posicionar em defesa de pautas da igualdade racial, e é próximo ao movimento negro.
Em janeiro deste ano, por exemplo, esteve na posse do ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida.
E, em 2021, presidiu uma comissão de juristas convocada pela Câmara dos Deputados para fazer uma revisão ampla da legislação contra o racismo no Brasil – o trabalho resultou num relatório de 610 páginas, com propostas para diversas áreas.
Ao contrário de alguns outros ministros de tribunais superiores, Benedito Gonçalves é avesso a entrevistas. Raramente fala em público fora dos tribunais e, quando o faz, geralmente é em eventos jurídicos ou acadêmicos.
Nesses eventos, geralmente comenta temas da sua área de atuação, e evita expor pontos de vista políticos, por exemplo.
A reportagem da BBC News Brasil procurou Benedito Gonçalves por meio de seus assessores, mas o ministro informou que não faria comentários.
Cassação de Deltan Dallagnol
Em maio deste ano, Benedito Gonçalves ganhou os holofotes ao relatar um processo no TSE que resultou na cassação do ex-deputado federal e ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol.
A decisão atendeu a um pedido do PMN e da federação formada por PCdoB, PT e PV.
No processo, os partidos alegam que Deltan estaria inelegível na disputa de 2022 por ter renunciado ao cargo de procurador da República meses antes da disputa, para evitar possíveis punições.
Ao votar no caso, Benedito Gonçalves fez uma interpretação “ampla” da Lei da Ficha Limpa: o trecho da lei na qual Deltan foi enquadrado exige a presença de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) em aberto, o que não era o caso de Deltan no momento em que ele renunciou.
O que havia eram investigações preliminares, que poderiam depois resultar na abertura de PADs. Para o ministro, porém, Dallagnol renunciou ao cargo de procurador para escapar a punições que eram certas, numa tentativa de burlar a lei.
“É inequívoco que (Deltan) já havia sido condenado às penas de advertência e censura em dois PADs findos, e que, ainda, tinha contra si 15 procedimentos diversos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para apurar outras infrações funcionais”, diz um trecho do relatório de Benedito.
O voto, que foi seguido por todos os demais ministros do TSE, divide opiniões na comunidade jurídica.
“Existe uma questão histórica no TSE, reiterada em várias decisões, no sentido de que as regras de inelegibilidade precisam ser interpretadas restritivamente (isto é, seguindo à risca a letra da lei). São precedentes históricos. Há vinte anos de decisões do TSE nesse sentido, porque o direito de se candidatar (a cargo eletivo) é um direito fundamental”, diz o advogado e professor Horacio Neiva, que é doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Idealizador da Lei da Ficha Limpa, o advogado eleitoral Márlon Reis diz que a decisão de Benedito seguiu o espírito da norma.
“O acórdão (a decisão) é extremamente bem fundamentado no Direito. Ele demonstra como a abertura de PAD não era uma mera possibilidade. Havia uma alta probabilidade. Ele fez um estudo profundo. E outra coisa: o TSE por natureza tem uma franquia política maior que os outros tribunais”, diz Reis.
Após o resultado no TSE, o nome de Benedito chegou a ser especulado para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) aberta pela aposentadoria do ex-ministro Ricardo Lewandowski.
No entanto, a indicação de Lula acabou indo para seu advogado nos processos da Lava Jato, Cristiano Zanin.
Alguns ainda mencionam o nome de Benedito para a vaga de Rosa Weber, em outubro.
Pesa contra ele, porém, a idade: aos 69 anos, o ministro teria poucos anos na Corte (os ministros do Supremo aposentam-se obrigatoriamente aos 75).
Afastamento de Witzel e menção de Léo Pinheiro
Como ministro do STJ, coube a Benedito Gonçalves determinar o afastamento do cargo do ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), em agosto de 2020, por seis meses.
Ao fazê-lo, Benedito também proibiu Witzel de se aproximar da sede do governo fluminense.
O ministro, porém, negou um pedido adicional do Ministério Público Federal pela prisão de Witzel – outras seis pessoas tiveram a prisão preventiva (sem prazo) decretada.
No caso de Witzel, Benedito entendeu que o afastamento do cargo de governador era suficiente para interromper a eventual corrupção e lavagem de dinheiro do ex-governador.
A acusação do MPF era de corrupção na contratação de hospitais de campanha (temporários) e na aquisição de respiradores e outros itens necessários para o enfrentamento da pandemia de Covid-19.
“O grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em plena pandemia da Covid-19, sacrificando a saúde e mesmo a vida de milhares de pessoas, em total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade”, escreveu Benedito na decisão. Meses depois, Witzel sofreu impeachment e perdeu os direitos políticos por cinco anos.
No âmbito da Lava Jato, Benedito Gonçalves foi citado na delação do empreiteiro José Adelmário Pinheiro, o Léo Pinheiro, da empresa OAS.
Na delação, homologada em 2019, o empreiteiro disse que se reunia com frequência com Benedito nos anos de 2013 e 2014 para tratar de assuntos da OAS no STJ.
Em troca, o ministro teria lhe pedido apoio para uma eventual nomeação ao STF. A delação resultou em investigações contra Benedito no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas os procedimentos foram arquivados.