Presidente da República propôs ‘quarentena vertical’, onde só idosos e pessoas vulneráveis seriam isoladas; assunto provocou crise entre Bolsonaro e chefes dos governos estaduais.
O presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), iniciou nos últimos dias uma queda de braço com governadores dos Estados brasileiros. Afinal, quem deve ter a última palavra sobre as medidas de isolamento social ou de “quarentena” que devem ser seguidas pelos brasileiros?
Em suas últimas falas públicas, Bolsonaro tem defendido uma estratégia chamada por ele de “isolamento vertical”: só idosos e pessoas com doenças pré-existentes deveriam ficar em casa diante do avanço do número de infecções pelo vírus Sars-CoV-2.
Segundo uma reportagem do BBC Brasil, todas as demais pessoas deveriam ser liberadas para trabalhar normalmente, pediu o presidente — o que inclui a reabertura dos estabelecimentos comerciais, fechados desde a semana passada em várias cidades brasileiras.
A ideia vai na contramão do que defendem a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), entre outras entidades.
E contraria diretamente as decisões tomadas por governadores e prefeitos em diferentes regiões do Brasil nos últimos dias. Vários Estados brasileiros limitaram o funcionamento do comércio e do transporte público, além de determinarem o fechamento de instituições de ensino.
Ao longo de quarta-feira (25), a disputa entre Bolsonaro e governadores em torno das medidas contra o coronavírus escalou: o presidente discutiu em público com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) e recebeu uma nota crítica assinada pelos governadores da região Nordeste.
Foi alvo de críticas também dos chefes dos Executivos estaduais do Espírito Santo, do Rio de Janeiro e do Pará.
Na tarde de quarta, o Ministério da Saúde registrava 2.433 casos confirmados de infecção pelo novo coronavírus. Ao menos 57 pessoas faleceram no Brasil por causa da doença.
Especialistas em direito constitucional consultadas pela BBC News Brasil dizem que a Constituição reserva ao governo federal o direito de legislar sobre algumas questões, entre elas o transporte interestadual de passageiros e o fechamento de rodovias, portos e aeroportos.
No momento, entretanto, os governadores contam com autorização para tomar atitudes em relação a esses serviços: é o que prevê uma lei sancionada pelo próprio Bolsonaro ainda no começo de fevereiro, no começo da crise do novo coronavírus, dizem os especialistas.
O assunto também foi discutido no Supremo Tribunal Federal: em decisão liminar (provisória) na terça-feira (26), o ministro Marco Aurélio Mello decidiu que a medida provisória (a MP 926 de 2020) editada por Bolsonaro no fim da semana passada não retirou dos governadores o poder de interromper momentaneamente os serviços de transporte.
Esta era a intenção inicial do governo, segundo disse o próprio Planalto na exposição de motivos da MP.
Fora isso, os governadores também podem determinar atitudes como o fechamento do comércio não essencial e o cancelamento de eventos e aulas. Estas seriam medidas atinentes à saúde pública, cuja competência é dividida entre União, Estados e municípios — este entendimento foi inclusive reafirmado pelo ministro Marco Aurélio.
Até que o plenário do STF se reúna para decidir o assunto, a decisão em vigor é a do ministro.
Por fim, no começo da noite, Bolsonaro usou sua conta no Twitter para dizer que editou um decreto classificando as lotéricas como um serviço essencial, cujo funcionamento não pode ser interrompido.
Saúde é responsabilidade de prefeitos, governadores e União
Estefânia Barboza, que é professora de direito constitucional na Universidade Federal do Paraná, diz que a Constituição brasileira trata a saúde como um assunto de competência concorrente entre União, Estados e municípios — isto é, um tema no qual as três esferas de poder possuem atribuições e devem atuar.
“A decisão do ministro Marco Aurélio parece indicar que o STF entende que estas medida de combate ao coronavírus devem ser vistas por esse prisma. Ele parece estar indicando que, no entendimento dele, este é um tema no qual União, Estados e municípios vão decidir de forma concorrente”, diz.
“Quando um governador impede a entrada de um ônibus vindo de outro Estado, por exemplo, no contexto atual, isso não é uma medida relacionada somente a transportes. É uma medida do campo da saúde também”, diz ela.
Numa situação como esta, diz Barboza, os Estados podem agir para complementar as determinações da lei federal, mas sem entrar em conflito com ela.
“Nestes casos, o que a gente tem é uma sobreposição de regimes. A gente têm competências que são de prefeitos, de governadores e da União, para dispor sobre políticas de saúde. A Constituição determina que essas políticas sejam hierarquizadas, mas não exclui a competência de governadores e prefeitos”, diz a professora de direito constitucional Eloisa Machado de Almeida, da FGV Direito SP.
A advogada constitucionalista Vera Chemim explica que as competências da União, dos Estados e dos municípios estão discriminadas nos artigos 21, 22, 23 e 30 da Constituição — e, normalmente, assuntos como o transporte interestadual de passageiros e o funcionamento dos aeroportos só podem ser regulados por leis da União.
“Diante dessa situação excepcional (do coronavírus), os entes federados acabaram determinando medidas que aparentemente ferem essa divisão. E no entanto, nesse momento, essa decisões deles estão amparadas por uma lei sanitária (a lei de fevereiro), que trata da saúde pública”, diz ela. O mesmo ponto foi ressaltado por Eloisa Machado, da FGV.
‘Não vamos pedir autorização para quem quer que seja’
As diferenças diante da crise foram o estopim para uma disputa verbal entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, o tucano João Doria (SP), na manhã de quarta-feira.
“Inicio (a fala) na condição de cidadão, de brasileiro e de governador de São Paulo, lamentando os termos do seu pronunciamento ontem à noite à nação”, disse Doria, durante uma conferência do presidente da República com os governadores dos Estados da região Sudeste.
“Estamos aqui, os quatro governadores do Sudeste em respeito ao Brasil e aos brasileiros, e em respeito ao diálogo e ao entendimento. Mas o senhor que é o presidente da República tem que dar o exemplo, e tem que ser o mandatário a dirigir, a comandar e liderar o país e não para dividir”, disse o paulista.
Bolsonaro irritou-se ao responder Doria, chamando-o de “demagogo” e “leviano”. Ele acusou o político tucano de agir com vistas à disputa presidencial de 2022 — tanto Bolsonaro quanto Doria já manifestaram o interesse em disputar a presidência no próximo pleito. Para Bolsonaro, Doria se comporta de forma oportunista ao atacá-lo agora, depois de buscar se associar ao então candidato do PSL nas eleições de 2018.
O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), também criticou Bolsonaro por incentivar as pessoas a saírem de suas casas.
“Temos seguido a OMS (Organização Mundial de Saúde) e na hora que o presidente opina e tira o valor da pandemia, causa uma confusão e uma dúvida nas pessoas, podendo atrapalhar o trabalho dificultando nossa ação. A dúvida e incerteza é a porta do fracasso”, disse o mandatário capixaba.
No fim da tarde de quarta, João Doria disse que promoveria uma reunião (por videoconferência) com os governadores dos 26 Estados brasileiros e do Distrito Federal, para discutir medidas relacionadas ao surto do novo coronavírus.
A reação, contudo, não se restringiu a adversários do presidente. Aliados de Bolsonaro também acusaram o chefe do Executivo federal de agir contra os esforços de contenção do novo coronavírus.
“(Quero) que a população saiba que as decisões do presidente no que diz respeito à saúde e coronavírus não alcançam o estado de Goiás. As decisões de Goiás serão tomadas por mim, pela Organização Mundial de Saúde e pelos técnicos do Ministério da Saúde”, disse o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) — acrescentando que rompeu politicamente com Bolsonaro.
“Não tomamos nenhuma medida que não fosse muito discutida com a comunidade científica, pesquisadores, médicos e profissionais da saúde”, disse o governante goiano. Médico de formação, Caiado foi um dos primeiros políticos a apoiar Bolsonaro na disputa presidencial de 2018.
Outro aliado de Bolsonaro da época da campanha, o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), se disse “estarrecido” com a abordagem defendida pelo presidente.
“Venho a público informar à população de Santa Catarina que nesta quarta-feira, 25 de março, iniciamos mais uma quarentena de sete dias por determinação de decreto deste governador, mais sete dias para ficar em casa (…). É o local mais seguro”, disse ele.
O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), disse em entrevista à BBC News Brasil que não pediria “autorização” de Bolsonaro para tomar as medidas necessárias para conter o vírus. “Estamos fazendo a nossa parte aqui. Nós não vamos nos apegar ao calendário de quem quer que seja, muito menos pedir autorização a quem quer que seja para cumprir com a nossa obrigação que é defender a população paraense”, afirmou.
No fim da tarde, os governadores dos Estados da região Nordeste também divulgaram uma nota na qual criticam as ações recentes de Bolsonaro no tema.
No documento, os nove governadores da região se dizem frustrados com as posições agressivas de Bolsonaro até aqui, e argumentam que ele deveria “exercer o seu papel de liderança e coalizão em nome do Brasil”.