Para atender às metas do arcabouço fiscal, arrecadação do governo terá que ser quatro vezes a média histórica, calculam especialistas. De onde sairá essa arrecadação e o que ainda falta definir? As próximas semanas serão decisivas para o sucesso do arcabouço fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no penúltimo dia de março. Embora tenha apresentado as linhas gerais da nova regra, não foram apresentados detalhes, o que deverá ocorrer ainda nesta semana. Quem estuda o assunto calcula que, para atender às metas do arcabouço, a arrecadação federal precisará de crescimento real de 5,8% ao ano até 2026, taxa quatro vezes e meia superior à média dos últimos dez anos (1,3%). A velocidade da expansão das receitas não chega a ser considerada absurda por economistas, mas no mínimo bastante ambiciosa.
O arcabouço fiscal estabelece regras e limites para as finanças públicas. Pretende, na prática, dar alguma previsibilidade e estabilidade ao ambiente econômico, essencial para a tomada de decisão de agentes econômicos públicos e privados. Essa previsibilidade é importante em várias dimensões, como, por exemplo, para a política monetária, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), realização de políticas públicas e sustentabilidade da dívida, entre outros.
Em resumo, essas regras impactam a política monetária conforme o patamar da inflação. Tem relevância para o PIB, na medida em que mais estabilidade nas contas públicas dá mais segurança para investimentos e expansão de negócios. No caso das políticas públicas, com as finanças em ordem, tende a haver mais recursos disponíveis para investir em áreas importantes. Elas também são importantes para a sustentabilidade da dívida, gerando capacidade de o governo honrar seus compromissos financeiros de longo prazo.
Mas por que o Brasil discute neste momento seu arcabouço fiscal? O assunto emerge porque a regra anterior, chamada teto de gastos, gerava certa previsibilidade, mas perdeu credibilidade nos últimos dois anos. “A regra do teto de gastos ficou muito fragilizada por conta de ter sido alterada inúmeras vezes nos últimos dois anos”, explica o economista da LCA Consultores e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre) Bráulio Borges, acrescentando que no fundo a regra era mal desenhada.
Metas de superávit
Uma das principais metas do arcabouço é zerar o atual déficit fiscal e transformá-lo em superávit até 2026. Projeções colhidas pelo Banco Central (BC) junto ao mercado indicam que o déficit primário esperado para 2023 está em -1,1% do PIB. A proposta fiscal apresentada pelo governo prevê os seguintes resultados primários: -0,5 (2023), 0 (2024), 0,5% (2025) e 1% (2026). Define, ainda, crescimento anual de gastos dentro da banda de 0,6% a 2,5% nos próximos anos e limita o avanço das despesas em 70% das receitas.
As projeções geraram dúvidas. A regra permitiria a sustentabilidade da dívida pública? O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, aponta que, se o governo quisesse estabilizar a dívida neste ano em 73% do PIB, seria necessário um superávit de 4,4% do PIB no ano. “Ou seja, pensar em estabilizar a dívida nos próximos anos demandaria esforço muito maior do (resultado) primário”, afirma Vale. Enquanto o governo prevê um máximo de até 77% para a dívida pública sobre o PIB em 2026, a consultoria projeta 81% – a média dos países emergentes gira ao redor de 64%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Mais ainda, para gerar os superávits requeridos que, novamente, já são baixos, o governo terá de ter uma forte expansão da arrecadação”, analisa Valle. O cenário traçado pelo economista indica que arrecadação real precisaria crescer 5,8% ao ano. Outros economistas ouvidos concordam sobre este patamar. O crescimento de receita dependeria ainda de fatores imprevisíveis, prossegue o economista, diferente da regra de gasto, que pode ser controlada: “Depende do crescimento do país e medidas de aumento de impostos”.
Gastos e receitas públicas
O economista da LCA Consultores avalia que o arcabouço anunciado, da forma como desenhado, estabiliza o gasto público do governo federal em torno de 19% do PIB. “A ideia geral é essa. Manter mais ou menos o tamanho do Estado nessa métrica, estável nos próximos quatro anos, incluindo 2023”, calcula Borges. Em 2016, ano anterior à regra do teto de gastos, o patamar da despesa foi de 19,9% do PIB – maior taxa da série histórica iniciada em 1985. Em 2022, o indicador fechou em 18,4%.
“A calibragem numérica do arcabouço vai manter essa despesa em 19% do PIB”, detalha o economista. De alguma forma, essa perspectiva de manutenção do tamanho do Estado gerou reações à esquerda e à direita. A esquerda, indicando que não se pode fixar o tamanho do Estado e que há várias demandas da sociedade a serem atendidas pelo poder público. A direita, defendendo mais corte de despesas e busca de eficiência.
Outra forma de ver o peso do volume de arrecadação exigido pelo arcabouço é sua proporção no PIB. Borges explica que a arrecadação federal com impostos precisará subir de 1% a 1,5% acima das despesas para alcançar o superávit primário de 1% em 2026: teria de saltar dos 18,8% do ano passado para 20%. “E tem que ser um aumento de carga tributária recorrente. Não é só num ano”, complementa. Para contextualizar, a carga tributária brasileira é de 32% do PIB. Desse total, a carga federal equivale a 23%, dos quais 4% são repassados pela União para estados e municípios – restando perto de 19% líquidos.
Borges projeta que o país precisaria de um superávit primário entre 1% e 1,5%, todos os anos, para estabilizar a relação dívida pública/PIB. “Nossa dívida cresceu muito entre 2015 e 2020. É uma dívida pública alta e as expectativas já eram de que ela cresceria muito até o fim da década”, afirma ele. Para sinalizar compromisso com a sustentabilidade fiscal, explica o economista, a primeira ação seria gerar resultado fiscal capaz de pelo menos estabilizar a dívida. “Idealmente, a gente deveria reduzir a nossa dívida. Mas estabilizar já é ótimo começo”, afirma.
Alternativas para aumentar arrecadação
Haddad indicou que, com entre R$ 110 bilhões e R$ 150 bilhões, o déficit poderia ser zerado ano que vem. Na expectativa ministerial, a proposta do arcabouço foi anunciada como “flexível e crível”. Como objetivos, o governo listou equilibrar as contas públicas, reduzir o déficit e aumentar o superávit. O conjunto de regras permitiria manter a economia com responsabilidade fiscal e social, e favorecer redução da inflação e retomar investimentos. Segundo a Fazenda, a medida busca “corrigir as deficiências das regras fiscais vigentes até agora e garantir a sustentabilidade financeira do país”.
Desde antes da posse, o atual governo acena com agenda positiva de iniciativas, que implica aumento de gastos. “Como é que vai haver mais gastos e melhora fiscal? Isso só fecha com aumento de receitas. Cadê os números? Quero dar o benefício da dúvida. Isso pode ser esclarecido quando sair a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), até 15 de abril”, pondera o pesquisador do FGV Ibre Fabio Giambiagi. Até esta data, o governo tem de enviar ao Congresso a LDO, espécie de “pré-orçamento”, que dá as linhas gerais para o orçamento a ser enviado apenas em agosto ao Congresso. Na LDO é preciso apresentar em detalhes como será o comportamento das despesas nos anos seguintes.
O governo federal busca alternativas para aumentar a arrecadação e fortalecer o arcabouço fiscal. Assegura que não se trataria de aumentar alíquotas de impostos existentes ou da criação de novos tributos. Entre as medidas em discussão estão a taxação de apostas eletrônicas, a tributação de e-commerces que importam produtos sem recolher impostos devidos e a taxação de fundos exclusivos.
Além disso, o governo admite corrigir o que considera uma distorção, que é o abatimento de créditos do Imposto sobre a Circulação e Mercadoria (ICMS) da base de cálculo de impostos federais, reduzindo a arrecadação do governo central.
Não se sabe quanto dessas medidas será aprovado no Congresso e efetivamente arrecadado.