O Partido dos Trabalhadores (PT) será o principal beneficiado caso o Senado aprove a proposta de emenda à Constituição (PEC) 9/2023, conhecida como PEC da Anistia. Até março deste ano, diretórios do partido tinham segundo reportagem de André Shalders, do Estadão, pelo menos R$ 22,2 milhões em dívidas na lista de devedores da União, mantida pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), braço jurídico do Ministério da Fazenda.
A maior parte (R$ 18,2) é com a Previdência – pela PEC, este tipo de débito não será perdoado, mas poderá ser parcelado em 60 vezes por meio de um “Refis” exclusivo para os partidos. A legenda deve até mesmo FGTS de trabalhadores, que mensalmente são descontados dos salários dos empregados. A reportagem do Estadão procurou o PT por meio da assessoria de imprensa, mas não houve resposta.
Ao todo, os partidos brasileiros têm hoje pelo menos R$ 54,1 milhões em débitos na Dívida Ativa da União.
Aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados na última quinta-feira (11), a PEC teve 338 votos favoráveis, 83 contrários e 4 abstenções no segundo turno. O texto atual é de autoria do relator na Câmara, Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP), e determina a anulação de todas as dívidas dos partidos, com exceção dos débitos previdenciários.
Todas as demais dívidas atuais serão perdoadas, inclusive as decorrentes de multas da Justiça eleitoral e do não pagamento de taxas e impostos – de acordo com a Constituição, as legendas já têm imunidade tributária, a ser ampliada com a PEC. A proposta está agora no Senado e está prevista para ser votada em agosto.
Pelo texto atual da PEC, a União deverá criar um programa de recuperação fiscal (Refis) para os partidos. Neste caso, o PT seria beneficiado com o parcelamento de pelo menos R$ 18,2 milhões em dívidas previdenciárias com a União (outros R$ 2,4 milhões já foram renegociados pela sigla antes). O prazo para pagar é de cinco anos (60 meses). Multas e dívidas futuras dos partidos também poderão ser incluídas no Refis a qualquer tempo, com prazo de 15 anos (180 meses). Pela PEC, os partidos ficam isentos de juros e multas acumulados nestas dívidas, devendo pagar só o montante original acrescido de correção monetária.
No caso do PT, mais da metade da dívida previdenciária está vinculada ao Diretório Estadual da legenda no Rio Grande do Sul (R$ 9,7 milhões), seguida do Diretório Estadual de São Paulo (R$ 4,2 milhões). A legenda também está devendo atualmente pelo menos R$ 266 mil em contribuições atrasadas para o FGTS dos empregados. Após o PT, os maiores devedores são o União Brasil (R$ 5,2 milhões), o PSDB (R$ 5,1 milhões) e o MDB (R$ 4,5 milhões).
O valor total a ser perdoado aos partidos inclui também multas aplicadas pela Justiça Eleitoral e que não foram ainda incluídos na Dívida Ativa da União – ou seja, é bem maior que os R$ 54,1 milhões já inscritos. Segundo apurou o Estadão, a Justiça Eleitoral não possui hoje um cálculo de quanto seria o valor total a ser perdoado. A organização Transparência Partidária estimou em R$ 23 bilhões o montante das contas partidárias pendentes de julgamento pela Justiça Eleitoral entre 2018 e 2023, em valores corrigidos. Se aprovada, esta será a quarta anistia do tipo na história.
Segundo o relator da proposta na Câmara, o deputado Antônio Carlos (PL-SP), o “Refis” ainda pode ser modificado no Senado, para onde a proposta irá agora. Segundo o deputado paulista, o texto será relatado na Casa pelo ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (União-AP). “É como um Refis normal de todas as dívidas”, disse ele. Questionado sobre o porquê de votar agora a PEC, o deputado disse que “qualquer hora é hora”. “Você tem que perguntar ao presidente Lira porque ele decidiu votar agora”, disse. Recentemente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) disse que a PEC só será votada na Casa em agosto.
Além da anistia às dívidas, o texto também inscreve na Constituição a reserva de 30% dos recursos dos Fundos Eleitoral (FEFC) e Partidário para as candidaturas de pessoas pretas e pardas, a partir das eleições deste ano. Hoje, esta cota é determinada por uma resolução do TSE. A proposta também considera cumpridas as cotas de recursos para mulheres e candidatos negros nas eleições anteriores, desde que os partidos apliquem o valor “faltante” nas próximas quatro eleições, a partir de 2026.
“Devo, tento negar e agora nem pagar direito preciso. É praticamente isso que aprovaram com a PEC. Um verdadeiro programa de incentivo à inadimplência para instituições que já recebem bilhões e bilhões de dinheiro do cidadão brasileiro”, diz a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), que votou contra a proposta. “Partidos políticos, enquanto entidades que almejam representar os cidadãos e contribuir com os rumos do País, deveriam ser os primeiros a dar bom exemplo – o que decididamente não ocorre”, diz.
“Sempre que a gente aprova alguma norma, é preciso apontar as fontes de recursos para viabilizá-la. No caso dessa ‘autoanistia’, ninguém se preocupou nem em calcular quanto ela custará; o que ela significará em termos de perda para o erário. É uma irresponsabilidade total”, diz o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que também se opôs ao texto. “É uma manobra corporativista da mais estreita o possível. É uma anistia permanente. Os partidos já não prestam contas direito. Agora, teriam o aval da Constituição para fazerem o que quiserem. É um péssimo exemplo para a sociedade”, diz ele.
O advogado e coordenador acadêmico da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) Renato Ribeiro de Almeida se diz contra a anistia das multas, mas afirma que a PEC também tem pontos positivos, principalmente por incluir na Constituição a reserva de recursos para mulheres e candidatos negros.
“Tem excessos, mas por outro lado há avanços (…). Na prática, nós não conseguigmos fazer cumprir a cota. Já com a inclusão na Constituição Federal será muito mais fácil acionar o Poder Judiciário e sustentar que se partido tal não cumpriu, mandatos serão cassados. Estará no texto constitucional, não vai mudar toda hora.”, diz Almeida, que pesquisou o financiamento dos partidos políticos no doutorado.
Em junho, a presidente do TSE, a ministra Cármen Lúcia, criticou a PEC durante um evento da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp). “Agora, estamos vendo uma anistia no Congresso contra as nossas decisões, votadas, inclusive por mulheres”. “A luta não é fácil, porque a cada dia há uma nova dificuldade. Agora, se dificuldade fosse um problema para mim, eu ainda estava no berço. Dito isso, continuamos”, disse ela.
As dívidas com a União não impedem que os partidos políticos continuem recebendo recursos públicos do Fundo Partidário ou do Fundo Eleitoral (FEFC), que serão de R$ 4,9 bilhões este ano. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os débitos dos diretórios municipais e estaduais dos partidos são de responsabilidade apenas deles mesmos, e não do comando nacional das legendas.