O Senado Federal recebeu, em abril, o anteprojeto do Código Civil elaborado por uma comissão de juristas. Entre as mudanças está a exclusão do cônjuge do direito à herança. Isto é: apenas descendentes, como filhos e netos, e ascendentes, como pais e avós, passam a ser os herdeiros necessários do ente falecido. A mudança gerou polêmica e tem sido criticada principalmente por ter potencial para desamparar mulheres que vivem do trabalho doméstico ou o cônjuge que optou por cuidar integralmente de um filho com deficiência, por exemplo.
De acordo com a especialista em Direito de Família e Sucessões Isa Gabriela Stefano, sócia do escritório Fonseca Moreti Advogados, trata-se de uma alteração que seria benéfica para uma parcela específica da população: os casais que se casaram em separação total de bens – o que representa uma minoria no Brasil.
Entenda a mudança
Imagine um casal casado em comunhão parcial de bens e que construiu, junto, um patrimônio de R$ 500 mil. O cônjuge falecido havia recebido ainda uma herança de R$ 400 mil. Pela regra atual, do patrimônio construído pelo casal, R$ 250 mil já é de direito do viúvo ou viúva – e seria dele em qualquer situação, como em uma separação judicial, por exemplo. Essa divisão se chama meação.
Os outros R$ 250 mil entram como herança do falecido que será recebida pelos herdeiros necessários. Se não houver filhos, o cônjuge entra como herdeiro junto com os ascendentes. Já aqueles R$ 400 mil são divididos em concorrência entre cônjuge (independentemente do regime do casamento) e herdeiros (se forem, por exemplo, outros quatro herdeiros, divide-se para cinco pessoas). Pela redação atual do artigo 1.845 do Código Civil, os herdeiros necessários são os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges.
Com a nova regra, o cônjuge deixaria de ser herdeiro necessário e só teria o que é seu por direito segundo o regime de bens do casamento, ou seja, aqueles R$ 250 mil, garantidos pelo processo de meação. Ele não entra na divisão da herança. E, na falta de filhos e netos, quem fica com essa herança (os R$ 250 mil e os R$ 400) são os ascendentes – pais e avós.
Qual o problema dessa mudança?
De acordo com a advogada Isa Gabriela Stefano, a mudança afetaria principalmente mulheres que optaram por serem donas de casa, mães ou pais de filhos com deficiência (que decidiram se dedicar integralmente aos filhos), pessoas que abdicaram da própria carreira pela carreira do cônjuge (que muitas vezes precisa se mudar de cidade ou estado com frequência, por exemplo), entre outros. “Se a pessoa tiver filhos pequenos, fica muito complicado ela conseguir fazer a administração patrimonial e não ser herdeira de nada”, diz.
“É um princípio do Direito de Família a comunhão plena de vida, o auxílio mútuo, essa ajuda que um dá ao outro para conseguir passar pelos momentos felizes e tristes. Não é justo que eu retire essa pessoa com quem eu divido a vida e a coloque atrás dos meus pais, atrás dos meus avós”, opina. “Isso é muito prejudicial, principalmente tirar o cônjuge da concorrência dos ascendentes. Porque quando esse pai do falecido morrer, a herança vai toda para irmãos e sabe-se lá quem mais. E o cônjuge, que esteve ali ao lado durante todo o processo, ficou sem nada”, critica.
Quem se beneficiaria?
Na visão de Isa Gabriela Stefano, em casos de casais que se uniram sob o regime de separação total de bens, a regra seria muito benéfica para a proteção patrimonial, afinal, no momento do casamento, o próprio casal deixou claro o que queria em relação aos patrimônios de cada um.
A sugestão, segundo a especialista, seria adequar a regra somente a esse regime de bens. “Para que fique de uma forma mais econômica e que atenda a sociedade como um todo, ao meu ver, deveria retirar o cônjuge da sucessão somente quando o casal optar pelo regime da separação total”, sugere.
Outro exemplo de benefício da mudança seria em casos de famílias em que o falecido se casou mais uma vez e teve filhos em cada um dos casamentos. Para os filhos, principalmente aqueles que não se dão bem com padrastos/madrastas, a regra seria muito benéfica e reduziria boa parte das brigas judiciais por herança. No entanto, isso não quer dizer que seja justo do ponto de vista do Direito de Família. “Se eu for olhar individualmente, dependendo para quem se aplica a regra, é muito bom, mas, num olhar geral, eu acho que é necessário [mudar a lei], mas poderiam repensar um pouquinho e fazer alguns ajustes nessa mudança”, pondera.
Quando essa regra entra em vigor?
O projeto aceito pelo Senado ainda tem um longo caminho pela frente. A questão da herança é apenas um dos pontos de mudança sugeridos pelos juristas. O texto ainda precisa ser analisado pelas comissões de Constituição e Justiça e afins, depois, passar pelas comissões na Câmara dos Deputados, para aí sim entrar nos trâmites finais para aprovação.
Para se ter uma ideia, o Código Civil atual foi aprovado e passou a vigorar em 2002, mas seus artigos vinham sendo discutidos desde 1972. “Pode demorar muitos anos, pode ser que nunca seja aprovado, assim como pode ser que seja aprovado em meses. Tudo depende da vontade do legislador, do quanto eles entendem que isso é urgente ou não para a sociedade. Esse é um ponto que a gente não consegue prever”, explica Stefano.