O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, ficou emocionado ao se deparar com escombros da Corte após os atos golpistas de 8 de janeiro. “Foi como se tivessem invadido a minha própria casa”, disse o ministro que há mais de duas décadas integra a cúpula do Judiciário. O magistrado afirma conforme entrevista a Mariana Muniz, Daniel Gullino e Thiago Bronzatto, do O Globo, que o STF saiu mais forte dos ataques antidemocráticos. Critica o processo de desinstitucionalização do país sob o governo Bolsonaro e diz que é inegável a responsabilidade política do ex-presidente. Afirma ainda que a proposta debatida no Senado de fixar mandatos para novos membros da Corte é um “Cavalo de Troia para discutir outras questões” e que seria bom ter “nomes como o de Rodrigo Pacheco (presidente do Senado) no Supremo”. A seguir, os principais trechos da entrevista:
O que mudou para o STF após o ato golpista de 8 janeiro?
O tribunal sai mais forte, mais unido, mais consciente do seu papel na nossa democracia. Isso tem sido demonstrado. Também acho que faz justiça dar uma palavra de reconhecimento à liderança da ministra Rosa Weber (presidente do STF), que enfrentou essa situação totalmente atípica e heterodoxa. Ela soube, com firmeza e sem nenhum estardalhaço, conduzir o tribunal neste momento. Não pude deixar de me sensibilizar com tudo que tinha ocorrido. Eu frequentava o Supremo como estudante e profissional. De fato, (é como) chegar à sua casa e ela estar arrombada, destruída. Foi a pergunta que eu fiz: o que fizemos de errado para chegarmos a isso? E o que fazer para não permitir que isso se repita?
E o que é preciso fazer para que isso não se repita?
Devemos estar atentos para que as instituições funcionem normalmente e que não permitam ímpetos populistas que levam à destruição como nós vimos. Não foi só a destruição física do plenário do STF, do Palácio do Planalto e de parte do Legislativo. Quando olhamos o que está acontecendo com os ianomâmis, vimos aquelas crianças, subnutridas, que estão praticamente condenadas à morte. O que acaba sendo de fato, parece, um genocídio planejado. Vimos na Praça dos Três Poderes soldados desfilando, voo de helicóptero, planejamento eventual de fazer aviões sobrevoarem o Supremo para quebrar vidros. Mas isso é leve diante de tudo que estava ocorrendo país afora: a desinstitucionalização, a falta de funcionários na Funai, ou a colocação de funcionários inadequados, para não cumprirem o mister ou permitir que índios morram.
Qual a responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro nesse processo?
A responsabilidade política é inegável. Isso é óbvio. Quanto à responsabilidade pessoal, no campo penal e da improbidade, são questões que têm que ser investigadas. Mas de fato a responsabilidade política é evidente, porque havia uma diretriz, como nós vimos na área da saúde. Uma tragédia de erros, que está associada, inclusive, a toda essa questão das fake news, das manipulações das pessoas. O 7 de Setembro anterior e o 7 de Setembro do ano passado tinham uma conotação de colocar gente na rua, sempre com um discurso voltado contra o Supremo. Quanto a isso, não há nenhuma dúvida de que tem responsabilidade. E tem um dado que não podemos relativizar, que parece organizado: a tal da manifestação depois das eleições nos quarteis para pedir intervenção militar, um aforismo para pedir instalação de uma ditadura militar. Quer dizer que a eleição é boa desde que eu a ganhe? Se eu perder, eu chamo o Papai do Céu, que, no caso, eram os militares? Acho que foi um grave erro ter admitido os acampamentos desde o primeiro dia. Tentou se impor um constrangimento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Aquelas notas, aquelas cartinhas todo dia, que nem eram tão amorosas, do ministro da Defesa, que cumpriu um papel lamentável, a todos os títulos. Isso era um tipo de bullying institucional.
O senhor foi um dos poucos integrantes do STF que tinham contato com Bolsonaro. Qual era a sua impressão sobre o ex-presidente?
Todas as vezes em que conversávamos, eu sempre percebia, por parte dele, uma certa teoria conspiratória de que todos estavam armando contra a Presidência. Eu sempre procurava demonstrar que não era nada disso. Depois, houve aquela operação mambembe eleitoral, que eles queriam anular as urnas que lhes eram desfavoráveis. Conversando com o Valdemar Costa Neto (presidente do PL, partido de Bolsonaro), eu dizia: “Poxa, poderia ter um enredo melhor, chamar um carnavalesco mais inspirado para isso”. Ninguém levou a sério aquilo.
E o que o Valdemar respondeu?
Os políticos sempre explicam: “Somos alvo de pressão” e “temos que manter o partido unido”. Coisas assim, espirituais.
Como o senhor avalia as discussões no Senado sobre limitar mandatos de ministros do STF?
Eu sou contra porque imagino que isso, embora não seja a intenção do presidente (do Senado) Rodrigo Pacheco, acaba sendo um Cavalo de Troia para discutir outras questões como, por exemplo, a forma de divisão da indicação do presidente com Câmara e Senado. Eu não acho que valha a pena reproduzir o modelo das indicações para o Tribunal de Contas da União (TCU). E acho curioso também, do ponto de vista de momento, que se escolha logo o STF como alvo da primeira reforma. Já falei isso para o próprio Pacheco. Na verdade, eu acho até que seria bom que tivéssemos nomes como o de Rodrigo Pacheco no Supremo.
Serão abertas duas vagas no Supremo neste ano. De que modo elas podem mudar o perfil da Corte?
Qualquer indicação pode alterar o perfil, dependendo do seu viés. Um exemplo disso são as mudanças que ocorreram com a vinda do Kassio (Nunes Marques) e do André (Mendonça). Podem ser pontuais, mas já percebemos. Tanto é que o presidente Bolsonaro, que nem jurista de Realengo seria, disse que tinha 20% do Supremo e que, se reeleito, teria mais duas vagas.
Qual a expectativa da indicação do presidente Lula?
O presidente já fez indicações no passado. Certamente ele vai levar em conta todas as suas experiências. Nesse contexto, inclusive, os quase 600 dias de prisão que ele passou tem a ver também com decisões do Supremo. Certamente, tudo isso vai estar presente nesse processo decisório.
O senhor acha importante que a vaga da ministra Rosa Weber seja ocupada por outra mulher?
Não vou dar palpite sobre isso. Fico feliz que, em geral, são grandes nomes que estão sendo cogitados, pessoas experimentadas, que já conhecemos.
O senhor vê algum impedimento se Lula resolver indicar o seu advogado Cristiano Zanin?
Não vejo impedimento algum. Todos nós, com raríssimas exceções, não fomos buscados em casa. Estávamos em algum lugar e tínhamos conexões com a vida política. Isso está dentro de um certo contexto político e ideológico. O fundamental é que saiba Direito e que seja honesto.