A China tem a atenção do mundo como nunca antes — especialmente agora que Xi Jinping foi reeleito no 20º Congresso Nacional do Partido Comunista neste domingo (23) —, mas sua política continua opaca como sempre.
As decisões são tomadas em grande parte a portas fechadas e muitas vezes divulgadas por meio de anúncios enigmáticos. Assim, o funcionamento do Partido Comunista da China e as motivações de seu líder, Xi Jinping, são difíceis de decifrar.
Mas a propaganda do partido, apesar de suas palavras secas, oferece pistas sobre os objetivos do líder mais poderoso da China em décadas.
O Congresso deu um terceiro mandato para Jinping, algo que nenhum líder desde Mao Tsé-Tung alcançou.
A BBC explorou o Diário do Povo (ou People’s Daily, em inglês), o maior jornal estatal, para identificar palavras-chave que definem os rumos do comando de Xi Jinping.
O ‘núcleo’
O conceito de um “núcleo” de liderança foi usado pela primeira vez por Mao Tsé-Tung (1893-1976), um dos fundadores do Partido Comunista Chinês e o primeiro líder da República Popular da China.
Ele o cunhou na década de 1940, antes que o partido tomasse o controle da China em 1949. Era uma época em que Mao consolidava seu poder dentro do partido, com o expurgo de opositores. Os historiadores veem esse período como o início do culto à personalidade de Mao.
O termo começou a aparecer em relação a Xi em 2016, e desde então se tornou cada vez mais comum.
Antes de assumir o cargo em 2012, três de seus quatro antecessores foram coroados como o “núcleo” do partido: Mao, indiscutivelmente o líder mais poderoso da China moderna; Deng Xiaoping, que abriu a China para o mundo; e Jiang Zemin, que supervisionou essa transição crucial entre os anos 1990 e os anos 2000.
Hu Jintao, sucessor de Jiang e antecessor imediato de Xi, nunca foi referido como parte do “núcleo” do partido. Ele era visto mais como um construtor de consensos e menos um homem forte. No seu período de poder, a concepção da liderança como algo coletivo, inaugurada por Deng Xiaoping, era considerada uma norma — ou assim as pessoas pensavam.
Dada a rápida concentração de poder de Xi Jinping, ele apresentar-se como o “núcleo” atual do partido foi o próximo passo natural, dizem os analistas.
“Xi Jinping precisava dessa consolidação retórica do poder, que também é quase equivalente a uma consolidação real do poder”, explica David Bandurski, diretor do China Media Project, um grupo de pesquisas que acompanha os meios de comunicação chineses.
O partido, acrescenta Bandurski, está agora claramente se movendo em direção a uma liderança muito mais personalizada e resgatando o culto à personalidade.
País vermelho
A Revolução Cultural, quando um paranoico Mao efetivamente estimulou a violência contra qualquer um considerado traidor da revolução, trouxe anos de revolta para a China — e o slogan “certifique-se de que o país vermelho nunca mude de cor” foi um apelo mortal à ação.
Mas a exaltação da China como um “país vermelho” arrefeceu nos anos que se seguiram à morte de Mao, quando a China embarcou em reformas econômicas que a abriram gradualmente ao mundo. A frase quase desapareceu antes que Xi chegasse ao poder, porque o partido havia a essa altura se afastado da vida cotidiana das pessoas.
Entre 1980 e 2012, o termo “país vermelho” pode ser encontrado menos de 20 vezes nas páginas do Diário do Povo. Mas certamente voltou: só no ano passado, apareceu 72 vezes.
“O ressurgimento do termo é um reflexo de como Xi quer que o Partido Comunista seja a força central na política e na sociedade chinesa”, diz Neil Thomas, analista sênior da China na consultoria Eurasia.
Xi pediu várias vezes a compatriotas que “introduzam genes vermelhos em seu sangue e coração” para que “o país vermelho possa ser transmitido por gerações”.
O partido claramente voltou a ocupar todas as esferas da vida das pessoas, e o retorno do “país vermelho” não é a única evidência disso.
As empresas privadas atuando na China são obrigadas a estabelecer sua própria filial do Partido Comunista Chinês. Até os monges budistas participaram no ano passado de um quiz sobre a história do partido, marcando seu 100º aniversário. Os cinemas são hoje dominados por filmes patrióticos.
“Xi Jinping é um verdadeiro crente na missão do partido e seu papel no rejuvenescimento nacional da China”, aponta Thomas.
Essa missão, acrescenta, inclui “recolocar a China no que ele vê como uma posição historicamente de destaque, como uma das potências mais proeminentes do mundo”.
Forças anti-China
O termo “forças anti-China”, normalmente usado para criticar o Ocidente e sua posição sobre a China, existe há décadas. Entretanto, ele foi revivido à medida que as relações da China com o Ocidente, e especialmente com os Estados Unidos, se deterioram.
Até então, a aparição do termo no Diário do Povo era incomum, mas aumentava ocasionalmente — geralmente quando Pequim tinha algum desentendimento com países ocidentais.
O conflito recente inclui uma guerra comercial em andamento com Washington, alegações de graves violações dos direitos humanos em Xinjiang, o controle autoritário de Pequim sobre Hong Kong e suas colocações cada vez mais assertivas sobre Taiwan.
O nacionalismo na China está em ascensão. Qualquer pessoa que critique o governo pode ser vista como “anti-China”, e as pessoas são encorajadas a denunciar essa postura às autoridades.
Manifestações negativas sobre a China são vistas como obstáculos a seus interesses, diz Bandurski. Por exemplo, Pequim frequentemente acusa Washington de tentar conter o poder chinês.
Rotular qualquer oposição como estrangeira é também uma maneira eficaz de atacar oponentes ou rivais.
A grande luta
A palavra “luta” remonta a Mao, que frequentemente o usava para mobilizar as pessoas. Durante a Revolução Cultural, “sessões de luta” faziam pessoas rotuladas como “inimigas” serem humilhadas e muitas vezes violentamente atacadas por multidões de partidários de Mao.
Xi se apropriou do termo a “grande luta” e o fez se tornar um chavão popular. Em 2021, o termo apareceu no Diário do Povo 22 vezes mais do que em 2012, quando Xi chegou ao poder.
É uma maneira de evocar o tempo de Mao e apelar às raízes do Partido Comunista, de acordo com Zeng Jinghan, professor especializado na China e em Estudos Internacionais da Universidade de Lancaster.
É uma expressão cada vez mais usada para abordar os desafios enfrentados pela China — tanto interna quanto externamente, seja para se referir à pandemia ou às “forças anti-China” que bloqueiam seu caminho.
A “grande luta” também é um sinal de uma “atitude de confronto” para enfrentar esses desafios, diz Thomas.
“E é uma ferramenta de mobilização para inspirar lealdade e confiança de que o partido, sob o governo de Xi, pode superar esses desafios”, completa.