O Programa de Cisternas, que já forneceu mais de 1 milhão de unidades para acesso à água a famílias que convivem com a seca, viu seu orçamento despencar nos últimos anos, principalmente na gestão Jair Bolsonaro (PL). A redução de orçamento foi de 96% na comparação com 2014.
No primeiro ano de mandato de Bolsonaro, em 2019, o programa não chegou a entregar 9.000 cisternas, marcando redução de 74% em relação ao ano anterior.
Para se ter uma ideia, a quantidade de unidades entregues em 2022 foi menor do que o volume de construções feitas em 2004, quando o projeto ainda engatinhava sob a gestão do primeiro mandato de Lula (PT). A construção de cisternas foi incorporada como política pública em 2003 após mobilização da sociedade civil.
O auge ocorreu em 2014, quando 149 mil reservatórios foram entregues no mandato de Dilma Rousseff.
O levantamento feito pela Folha a partir de dados do governo federal leva em conta a 1ª água —que corresponde às cisternas de 16 mil litros construídas para consumo humano—, a 2ª água —cujas tecnologias armazenam 52 mil litros de água para produção de alimentos— e as cisternas escolares.
A queda das verbas destinadas a essa política pública vinha desde antes do governo Bolsonaro, mas se acentuou na gestão do ex-presidente.
A retomada do projeto Água para Todos, que inclui o Programa de Cisternas, esteve entre as promessas de campanha de Lula em 2022. A ampliação de iniciativas de autogestão e convivência com o semiárido também.
“Além da fome, Bolsonaro deixa famílias inteiras com sede”, dizia o site do PT durante a campanha presidencial do ano passado.
O tema era especialmente sensível na disputa eleitoral devido à dificuldade de Bolsonaro de engajar o eleitorado do Nordeste, principal foco do programa federal.
Com a posse de Lula na Presidência, em janeiro, o novo governo passou a falar em promover uma auditoria nos gastos do antecessor nesse item do Orçamento federal.
Após a publicação de reportagem da Folha mostrando que famílias beneficiárias do programa foram enganadas e tiveram que pagar parte das construções das tecnologias sob a gestão de Bolsonaro, no fim de janeiro, o Ministério do Desenvolvimento Social anunciou que iria investigar a aplicação de recursos no Programa de Cisternas no governo anterior.
Disse em nota que iria rever contratos e apurar suspeitas de mau uso do dinheiro público. Também questionou, sem citar nomes, a contratação das entidades executoras.
Antes, a nova gestão já havia dito que suspenderia o contrato com a entidade que cobrou indevidamente de moradores pela construção das unidades, no interior de Minas Gerais, conforme revelou a reportagem. A responsável pelo contrato era a Ceapa (Central das Associações de Agricultura Familiar), com sede em Alagoas.
“No total são 45 instrumentos, ao custo de R$ 1,4 bilhão, sendo 30 considerados prioritários em análise pelo Tribunal de Contas da União”, diz o ministério, que fala em “enorme passivo”.
Segundo o coordenador do programa Um Milhão de Cisternas, da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Rafael Neves, instituição que influenciou a criação de políticas públicas voltadas para o acesso à água, houve perseguição sob a gestão Bolsonaro.
“Eles veem o PT na gente e isso não é verdade. Nós já fizemos ato público contra um tipo de política da Dilma, por exemplo, quando ela começou a fazer cisternas de plástico. Quem propôs o programa fomos nós. O que o governo Lula fez [nos anos 2000] foi reconhecer que era uma boa ação e o tornou parte do governo como política”, disse Neves.
Essa tecnologia se tornou de grande importância em regiões do país como o semiárido mineiro, onde a estiagem pode durar até nove meses ao ano. Quem convive com a seca precisa estocar comida e, principalmente, água.
O armazenamento de água é importante não apenas para o consumo humano, mas para a criação de animais e o cultivo de alimentos. Por isso, políticas de acesso à água influem no combate à fome no país, especialmente em comunidades isoladas.
Em localidades visitadas pela reportagem em Minas Gerais, os moradores desenvolveram, como alternativa, um sistema de captação de água de poço. No sertão nordestino, os moradores não conseguem beber a água encontrada nos poços artesianos porque é salobra.
Sem acesso a sistema de água encanada, as famílias são obrigadas a percorrer quilômetros em busca de abastecimento nas cabeceiras dos rios.
Em Coração de Jesus (a 450 km de Belo Horizonte), moradores precisam dividir com vizinhos a água captada da chuva e armazenada com essa tecnologia.
“No tempo da seca, a água vai diminuindo e a vizinha fica com medo de dividir. A gente fica com vergonha de pedir e vai procurar outro [vizinho], ou vai buscar na cabeceira [do rio]”, contou José Antônio Pereira da Silva, 27, quando a reportagem esteve na localidade, em novembro.
O mesmo ocorre com Tatiane Dias Gonçalves, 26 anos, que vive com o esposo, José Eduardo Gonçalves, 33, e duas filhas na comunidade Santa Bárbara. A água que ela pega na cisterna da vizinha serve para beber e cozinhar.
“Não dá para cozinhar com a água do poço. É igual o ovo, quanto mais ferve, mais endurece, fica uma pedra no fundo da panela”, disse.
A água da cisterna é captada através de uma calha colocada nos telhados da casa. Quando chove, a água escorre pelo telhado até a calha e é direcionada ao reservatório por meio de canos.
OUTRO LADO
O ex-ministro da Cidadania João Roma, que ficou no cargo entre 2021 e 2022, disse à Folha que o programa na gestão Bolsonaro foi afetado pela averiguação de supostas irregularidades em antigos contratos federais.
Roma, porém, relativizou o impacto desse tipo de tecnologia nas áreas atingidas pela estiagem da maneira como é pregado pelo atual governo.
Diz que é um meio complementar de acesso à água para essa população, sendo necessário um modo permanente de acesso, o que envolve ação conjunta com ministérios como o da Agricultura e Desenvolvimento Regional. Ele mencionou, então, os resultados de Bolsonaro nas obras de transposição do rio São Francisco, que teve trechos inaugurados nos últimos anos pelo Nordeste.
À Folha o ex-ministro Ronaldo Vieira Bento, também da pasta da Cidadania na gestão Bolsonaro, disse que “a fiscalização dos contratos firmados foi executada de maneira constante e acompanhada pela equipe técnica do ministério”.
Sobre as irregularidades apontadas pela reportagem da Folha, como as havidas em Minas, Bento disse que “tudo tem que ser apurado”.