Um desentendimento que se arrasta há pelo menos dois anos entre técnicos e produtores de soja do Mato Grosso escalou e chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF).
A briga gira em torno da extensão do calendário de plantio da soja, que por lei vai de setembro a dezembro no Estado.
Um grupo de agricultores pleiteia a possibilidade de semear por mais tempo, até fevereiro. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por sua vez, alerta que a esticada pode favorecer a proliferação descontrolada de uma praga chamada ferrugem asiática (Phakopsora pachyrhizi) e, no médio prazo, colocar em risco a produtividade da soja brasileira.
Representantes da indústria de defensivos já alertaram que, caso o fungo se torne mais agressivo, não há produtos hoje no mercado ou em desenvolvimento que possam fazer frente a ele.
A questão virou uma novela, com direito a investigação pelo Ministério Público e uma oposição incomum entre a Embrapa e o Ministério da Agricultura, que algumas fontes ouvidas pela reportagem comparam aos atritos entre Anvisa e Ministério da Saúde em relação às vacinas.
A pasta chegou a publicar portaria autorizando a extensão do período de plantio – apesar de os cientistas da Embrapa desaconselharam a medida. Em dezembro, o caso chegou ao STF, que não tem prazo para emitir uma decisão.
O começo da história
Pelo menos desde 2015 a Embrapa participa de fóruns de discussão sobre a semeadura da soja em fevereiro em Mato Grosso, como ressaltou a entidade recentemente em uma nota de esclarecimento, também encaminhada à reportagem.
O posicionamento sempre foi contrário. O plantio da soja por mais tempo diminui o que os pesquisadores chamam de “vazio sanitário”, o período em que não há plantação no campo. Sem a vegetação, os ciclos reprodutivos de pragas são interrompidos e a disseminação de doenças se mantém, de certa forma, sob controle.
“Esses vazios sanitários existem de forma natural, por conta de secas ou, em outros países, da neve”, explica o professor da Faculdade de Ciências Agronômicas Unesp Ciro Rosolem, vice-presidente de comunicação do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), entidade que se posicionou contra a extensão do calendário.
“Mas o desenvolvimento fantástico da agricultura no Brasil nos últimos anos permitiu que o produtor fizesse mais de uma lavoura por ano, e acabamos ficando sem esse vazio – daí a necessidade de regulamentar [e a criação do calendário].”
Isso porque a extensão do período para semeadura cria uma “ponte verde” (ou seja, uma sequência ininterrupta com plantas vivas no campo) que permite que algumas pragas, entre elas a ferrugem asiática, que chegou ao Brasil em 2001, consigam continuar se proliferando.
“Isso resulta na aceleração do processo natural de seleção de resistência do fungo aos fungicidas”, diz a Embrapa.
Esse posicionamento, segundo o professor Rosolem, hoje é consenso na comunidade científica.
“A briga é essa, é ciência versus mercado. O que não quer dizer que o mercado é bandido e a ciência é boazinha, é complicado”, ele afirma. “Mas temos dados suficientes para ficar com a ciência.”
Plantio ilegal e investigação do MP
No início de 2020, antes da explosão da pandemia de covid-19, o Ministério Público em Mato Grosso (MP-MT) começou a receber diversas denúncias de que um grupo de produtores no Estado vinha descumprindo a legislação e plantando soja após a data permitida.
Os promotores pediram então esclarecimentos aos produtores, que responderam que se tratava de um experimento científico realizado no âmbito de uma entidade representativa, a Aprosoja, e não de cultivo comercial propriamente dito.
Para se configurar como experimento, contudo, a prática agrícola deveria seguir uma série de padrões científicos que não foram observados, entre eles contar com a aprovação da comissão de ética de algum órgão científico, diz o promotor Joelson de Campos Maciel, que atuou no caso.
“Nós conversamos com a Embrapa e entendemos por bem fazer uma notificação recomendatória para fiscalizar [o cumprimento do vazio sanitário].”
Mesmo após a fiscalização, contudo, os produtores mantiveram as lavouras, o que motivou a abertura por parte do MP de uma série de ações civis públicas, que têm entre os réus a Aprosoja, que vinha conduzindo o plantio dito experimental, e Antônio Galvan, presidente da Aprosoja MT na época, que realizou o plantio em sua propriedade. Algumas delas, segundo o promotor, já tiveram ganho em primeira instância e seguem tramitando.
Essa não foi a única polêmica recente envolvendo a entidade. Foi na sede da Aprosoja em Brasília que, no último mês de agosto, o cantor sertanejo Sérgio Reis publicou um vídeo em que fazia convocação de manifestantes nos dias anteriores ao feriado de 7 de setembro para que acampassem em defesa do presidente Jair Bolsonaro.
Após a divulgação do vídeo, tornou-se público um áudio enviado pelo cantor a um amigo, em que se referia em tom de ameaça ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e aos ministros do STF.
Por conta do episódio e de seus desdobramentos, Reis e Galvan, desde 2021 presidente da entidade nacional, foram convocados a depor na Polícia Federal, no âmbito do inquérito que investiga a organização e financiamento de atos que defendem bandeiras antidemocráticas. Às vésperas do 7 de setembro, o Supremo chegou a determinar o bloqueio temporário de saques da conta bancária da Aprosoja.
Racha no agro
A entidade foi apontada por três fontes do agronegócio ouvidas pela reportagem como líder de um grupo pequeno que tem defendido a extensão do calendário de plantio da soja e pressionado o Ministério da Agricultura a autorizar a prática mesmo com a recomendação contrária dada por seu órgão técnico, a Embrapa. Procurada, a Aprosoja informou por meio de sua assessoria de imprensa que não comenta sobre o tema.
Um deles é o empresário Carlos Ernesto Augustin, vice-presidente da Associação dos Produtores de Sementes de Mato Grosso (Aprosmat), que se diz crítico à liberação para o plantio no início do ano pelo risco sanitário que representa. Em sua visão, uma das motivações dos produtores que têm pressionado pela medida seria aproveitar os meses de janeiro e fevereiro, mais secos, para produzir as próprias sementes (em vez de comprar de terceiros) e buscar maior lucratividade.
“A produtividade ‘normal’ da soja geralmente é de 60 sacas [por hectare], mas em fevereiro é menos da metade – a intenção aí é fazer semente”, diz ele. “Mas pra isso querem colocar em risco a disseminação do fungo.”
O empresário diz que, inicialmente, até 2014, 2015, ele mesmo tinha posição favorável à extensão do calendário de plantio. Mudou de ideia depois que a Embrapa e seu “consórcio antiferrugem” enviaram uma pesquisadora ao Estado, que, além de acompanhar de perto as lavouras, passou a se reunir com os produtores e explicar por que o vazio sanitário e o calendário era necessário.
Entre 2010 e 2014, segundo ele, a ferrugem vinha se espalhando de forma rápida no Mato Grosso. Após a normativa de 2015 que instituiu as mudanças, a produtividade da lavoura cresceu significativamente, diz Augustin.
O ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues também mencionou a questão das sementes. “É uma discussão difícil. Mas eu sou engenheiro agrônomo, então rezo a cartilha acadêmica, técnica, embora seja produtor rural e conheça os interesses dos produtores”, diz ele, que é coordenador do Núcleo de Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (FGV Agro).
Para Christian Lohbauer, presidente da Croplife, que reúne instituições e empresas que atuam na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de germoplasma, biotecnologia e defensivos químicos, apesar das possíveis motivações dos produtores, o ponto central da discussão não está nas sementes, mas na resistência dos fungos e na efetividade dos fungicidas.
“Uma dezena de instituições técnicas, além da Embrapa, já alertaram que é preciso ter um vazio sanitário, dois, três meses livre de soja, para que o fungo fique impedido de se proliferar. A indústria [de defensivos] está afirmando que não há produtos novos no pipeline [para combater o fungo caso ele se torne mais agressivo], diz.
“Combater a ferrugem é um trabalho difícil, caro e necessita de novas tecnologias – precisamos dar vida longa aos produtos que a gente tem. Uma minoria barulhenta acha que não tem perigo, mas quem vai pagar por isso no final é a agricultura brasileira”, completa.
“Nós temos que obedecer as regras sanitárias que foram estabelecidas pela ciência”, faz coro Eduardo Daher, diretor-executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), uma das entidades signatárias de uma carta enviada à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, em setembro do ano passado pedindo a revogação da liberação.
“Eu fico tão nervoso com desrespeito às portarias do vazio sanitário… é como encontrar alguém que fala que não vai se vacinar, o raciocínio é o mesmo”, diz ele.
O presidente da Comissão Nacional de Cereais, Fibras e Oleaginosas da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Ricardo Arioli, por sua vez, afirma que a entidade vem “discutindo com especialistas no assunto há muito tempo” e diz que seu posicionamento é o mesmo da Embrapa.
Autorização do ministério à revelia da Embrapa
Um indicativo de que a medida é defendida por uma minoria e fruto de pressão política interna, na visão de Augustin e Lohbauer, seria o fato de que, mesmo com a autorização do Ministério da Agricultura, Estados do Centro-Oeste como Mato Grosso do Sul e Goiás mantiveram o calendário até 31 de dezembro.
“O ministério, que deveria ser entidade que arbitra, sempre disse que não podia [estender o calendário], até esta vez. E jogou para as secretarias de Estado, falou que elas é que decidiriam. E aí elas foram decidindo – Mato Grosso de Sul, Goiás, Paraná disseram que não podia, Mato Grosso disse que sim. É uma questão política”, opina Lohbauer.
Segundo ele, esse tipo de arranjo é problemático porque as pragas não conhecem ou respeitam as fronteiras entre os Estados. Caso haja descontrole da reprodução da ferrugem por conta da extensão do calendário, o problema pode se alastrar geograficamente e atingir os Estados que estão respeitando a recomendação dos cientistas.
O ministério não respondeu o pedido de posicionamento feito pela reportagem.
A Embrapa não tem comentado publicamente sobre o assunto. Ao pedido de entrevista, sua assessoria de imprensa enviou o último “esclarecimento oficial”, de setembro de 2021. O posicionamento assertivo da empresa, contudo, foi reiterado por seu presidente, Celso Moretti, em outubro do ano passado em uma audiência no Senado. Questionado por um parlamentar sobre sua opinião, ele afirmou: “A posição da Embrapa é sempre balizada pela ciência. Podem não gostar, mas a ciência é nossa baliza”.
Sem resolução da contenda, em dezembro o PSB entrou com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra as portarias do Ministério da Agricultura. O texto da peça, além de expor as questões relacionadas à possível resistência da praga aos fungicidas, destacou que o uso intensivo de agrotóxicos também é um problema, já que pode prejudicar o solo e o meio ambiente de forma geral.
À BBC News Brasil, a Aprosoja afirmou não se manifestar sobre o assunto e pediu que a reportagem entrasse em contato com Erlei Melo Reis, pesquisador da Fundação Rio Verde e coautor de um estudo que vem sendo usado pela entidade para defender a extensão do calendário de cultivo.
O agrônomo afirmou que o foco do estudo conduzido por ele e outros três pesquisadores foi “comprovar” que a semeadura em fevereiro é atingida de forma menos intensa pela ferrugem do que em dezembro. Assim, o cultivo demandaria menos fungicidas, o que seria “bom para o meio ambiente e bom para o produtor”.
As entidades que têm se colocado contra a extensão argumentam que a pesquisa não avalia a questão da seleção natural de formas mais resistentes do fungo com o período maior de plantio, tida como ponto central da preocupação dos que são críticos à medida.
O pesquisador, por sua vez, afirma que a medida que estabeleceu o calendário em 2015 foi tomada “com pouca base científica” e que organizações como a Embrapa não têm uma pesquisa que comprove o risco do plantio em fevereiro.
Reis disse ainda ter se reunido com a ministra Tereza Cristina em dezembro para apresentar, junto aos demais coautores, os resultados da pesquisa. O encontro, realizado no dia 7 de dezembro, está identificado na agenda da ministra como “Audiência com a Aprosoja/MT”.