Eleita para presidir o Superior Tribunal Militar (STM) com oito de 15 votos dos ministros da corte, a ministra Elizabeth Rocha é a primeira mulher à frente de um tribunal militar. Ela foi eleita em outro momento de ineditismo: pela primeira vez desde a redemocratização, um general quatro estrelas foi preso e será julgado por tentativa de golpe de estado no Supremo Tribunal Federal (STF).
A partir de março, a nova presidenta também participa do julgamento de militares que, como Braga Netto, foram investigados durante a Operação Contragolpe da Polícia Federal. Em relatório da PF, foram reveladas conversas em que Braga Netto critica a cúpula das Forças Armadas, sobretudo os comandantes do Exército e da Aeronáutica. Ele chegou a chamar o comandante Freire Gomes de “cagão” e pediu “a cabeça dele”. Situações como essa podem ser julgadas pela corte militar, que a partir de março será presidida por Elizabeth Rocha.
Para ela, a participação de militares na política é problemática e deturpa o papel dos militares. “Militar só sobe em palanque no 7 de Setembro, e não é um palanque político”, defende.
A lista de indiciados pela PF tem 24 militares e três deles foram ministros durante o governo Bolsonaro.
Elizabeth prefere não emitir opiniões sobre esses julgamentos. “Se eu me antecipar, ou fizer algum comentário, vou ser suspeita e impedida de julgar esses casos. Não posso comentar exatamente porque posso vir a julgar crimes conexos e, se houver condenação superior a dois anos, existem como consequência os chamados conselhos de justificação e tribunais de honra”, diz a ministra conforme o portal Uol.
Tanto os Tribunais de Honra quanto os conselhos de justificação são órgãos militares e temporários, com um prazo de 30 dias para ouvir militares e acusadores, formar um conselho e montar um relatório com o julgamento sobre a atuação desses pares.
“Quando militares da ativa participaram do governo passado, o papel deles foi completamente deturpado”, diz Elizabeth Rocha.
Militares investigados na operação Contragolpe
O grupo de militares indiciados poderia ser julgado apenas pelo STM, já que usam farda. Mas, a depredação do STF no dia 8 de janeiro e a atuação do ministro Alexandre de Moraes como juiz prevento — o que primeiro tomou decisões sobre a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito — dão prioridade ao STF nesses julgamentos.
“Esses crimes são comuns, não são crimes militares. O STM até poderia julgar, pois a qualidade do agente determina o foro, mas existe uma qualidade chamada prevenção. (…) Nesse caso, Alexandre de Moraes se tornou o juiz prevento. Existe correlação entre os processos. Processos que foram agregados ao do 8 de Janeiro. E a depredação do STF —se um órgão é vítima, ele sempre tem o direito de julgar. (…) Houve desacato de militares ao alto comando do Exército, [diretamente] ao comandante do Exército. No caso do desacato militar, principalmente quando há uma quebra à cadeia de comando, cabe a nós, que somos a Corte competente para julgar.”
Contra militares na política
Elizabeth deixa evidente que é contra a participação de militares na política.
“Eu sempre defendi que os militares devem se subordinar ao poder civil. A importância do poder civil submeter o poder militar —e a criação do ministério da defesa é uma consequência disso— é justamente para que os militares que detêm as armas da nação, que são investidos no monopólio da força pelo estado, sofram uma série de constrições que estão constitucionalmente previstas.
Não é um estado autoritário que as está impondo [essas restrições de envolvimento, inclusive com a política], é a Constituição da República. É o Estado Democrático de Direito, justamente para que a sociedade civil, que é vulnerável e desarmada, não sofra nenhum tipo de lesão.
O militar não deve ocupar cargos políticos, como aconteceu no governo anterior. E [se o militar] ainda está na ativa, a situação se torna ainda mais complicada. Porque leva a política para dentro dos quartéis. E quando a política adentra aos quartéis, a hierarquia e a disciplina sofrem rachaduras.
Um general de quatro estrelas, por mais reconhecida que seja a sua atuação dentro das Forças Armadas, não pode atacar o seu comandante. É importante que haja um respeito irrestrito à cadeia de comando.
Os militares são soldados investidos das armas da nação e por isso não submetidos a uma série de restrições. Não podem se sindicalizar, fazer greve, pertencer à agremiação da política partidária, se ainda estiverem na ativa. É diferente do militar da reserva ou reformado, que tem todos os seus direitos civis plenos. Enquanto ele estiver servindo as armas da nação, não pode haver esse imbricamento, para não comprometer o estado civil de direito. Os próprios dirigentes estão de acordo com isso.”
Como funciona o STM
O tribunal julga crimes específicos cometidos por militares como deserção, motim e desacato a seus pares ou superiores. No STM, que faz parte da Justiça Militar federal, apenas militares do Exército são julgados —diferentemente dos tribunais estaduais, que julgam crimes das suas respectivas PMs (Policias Militares).
“Nós julgamos os civis e militares das Forças Armadas e a nossa justiça só é criminal. Em primeira instância eles passam por auditorias militares e os recursos apresentados podem ser levados para o STF.
O processo é distribuído para um relator e um revisor. Quando o relator é militar, o revisor é civil, e vice-versa. Nossas sessões são plenárias [os 15 ministros votam], não existe turma no STM [como existe no STF].
O ministro presidente só vota em caso de empate, ele é o voto de minerva — pelo regimento o voto de minerva é sempre a favor do réu.”
Primeira, mas não única
Ela foi eleita presidenta em uma votação apertada —8 de 15 votos dos ministros da Corte militar— e faz questão de destacar que foi eleita também pelo seu próprio voto. “Meu voto representa o de todas as magistradas”, diz ela.
“O que eu busco é justamente trilhar caminhos para que mulheres e meninas jovens não passem por todas as dificuldades que eu passei. Nós, mulheres, somos uma força irresistível. Afrontamos o patriarcado constantemente.
Eu sou uma mulher, quero ser vista como uma mulher e não me rendo a heterogeneidade para me ver incluída num grupo de homens, Sou a única mulher num grupo de 15 homens.
Já foi feito um estudo estatístico que a maioria dos magistrados são homens, brancos, classe média e heterossexuais. Pessoas marcadas como diferentes, percebidas como subordinadas sempre causarão problemas e incomodaram com a sua mera presença.”