Sistemas presidencialistas costumam estar dotados de anticorpos contra chefes de estado que, embora legitimamente eleitos para um mandato fixo, incorrem em condutas reputadas graves e que colocam em risco a ordem constitucional. O uso do impeachment é a reação mais importante desse sistema imunológico da democracia.
No Brasil, as hipóteses de “crime de responsabilidade” — condutas que podem ensejar a deposição do presidente da República e de outros agentes, como ministros de estado e do STF — são previstas pela Constituição de 1988, que delega a uma “lei especial” a função de definir quais são essas condutas.
Conforme o ConJur, trata-se da Lei 1.079, promulgada em 1950. O projeto de lei do qual se originou, no entanto, foi proposto por políticos declaradamente parlamentaristas. Muito provavelmente por isso, os crimes de responsabilidade não são condutas nítida e especialmente graves, mas hipóteses bastante abertas — o que não está em plena harmonia com uma Constituição presidencialista. Imaginar um possível abuso do instituto — para remover do poder um presidente legitimamente eleito que não agrada a maioria parlamentar — não é exagero. Ou, ao menos, enquadrar uma conduta em crime de responsabilidade não é tarefa que exigiria grandes esforços argumentativos.
No entanto, a hipótese oposta — o não uso do instituto para deposição de um agente político que coloca em risco a ordem constitucional — seria contraintuitiva, já que em tese o enquadramento legal de seus comportamentos não seria empecilho.
No cenário atual, Jair Bolsonaro já é o presidente mais questionado em um único mandato. Ao todo, são 62 pedidos de impeachment contra o mandatário — oficialmente, a Câmara contabiliza 61 denúncias, mas há notícia de ao menos mais uma. Dilma Roussef contabilizou 68 petições contra si, mas em dois mandatos: 14 no primeiro e 54 no segundo.
A competência para dar seguimento às denúncias é, em última instância, do plenário da Câmara dos Deputados. No entanto, antes disso, há outra instituição importante no gatilho de impeachments: a presidência da Câmara dos Deputados. É ela que inicialmente defere ou indefere os pedidos. Contra a decisão de eventual indeferimento, cabe recurso ao Plenário.
Mas em quais parâmetros essas decisões devem se basear? Segundo a Constituição, a lei do impeachment e o regimento interno da Câmara, o presidente da Casa deve proceder a uma análise meramente formal dos requisitos da peça acusatória, como assinatura do denunciante com firma reconhecida, documentos que comprovem a acusação e, caso tais documentos não possam ser apresentados, rol de testemunhas arroladas. Presentes tais elementos, o presidente deve despachar a denúncia a uma comissão especial, composta por representantes de todos os partidos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ampliou esses poderes, de modo que o presidente da Câmara também pode rejeitar denúncias patentemente ineptas ou desprovidas de justa causa (materialidade delitiva e indícios de autoria).
Ainda assim, de acordo com especialistas ouvidos pela ConJur, o presidente da Câmara não pode fazer um juízo político, de conveniência e oportunidade, sobre o mérito da denúncia. “Não existe, juridicamente, margem para que o presidente de Câmara faça essa análise política sobre se é conveniente ou não aceitar ou rejeitar uma denúncia”, afirma o constitucionalista Luiz Fernando Gomes Esteves. “Uma vez que a denúncia apresente todas as formalidades, o presidente da Câmara deveria, sim, aceitá-la, e consequentemente formar a comissão para analisá-la”, conclui.