Todos sabemos que a língua portuguesa é uma vertente da língua espanhola. Pois estamos todos errados. Em seu “Assim nasceu uma língua”, que acaba de chegar ao Brasil, o linguista português Fernando Venâncio, ex-professor da Universidade de Amsterdã, garante que nosso idioma veio do latim através do galego, e não diretamente do espanhol. Nesta entrevista via e-mail, Venâncio, de 79 anos, esclarece a origem da nossa língua, fala sobre as diferenças linguísticas entre os dois países e como as novelas brasileiras têm influenciado os portugueses.
Por que é errado pensar que o português veio do espanhol?
As gêneses de um e de outro são nitidamente diferentes. O português proveio do latim através do galego. Esse processo já é nítido por volta do ano 600d.C. Mais tarde, o português surge como reação contra o galego, do qual vai afastar-se. Além disso, entre o português e o espanhol vigorou durante bastante tempo um terceiro, o leonês, de que hoje sobram restos, como o mirandês, língua minoritária falada em território português. É, contudo, verdade que, nos séculos XV e XVI, o nosso idioma sofreu uma forte influência do espanhol, culturalmente mais desenvolvido e politicamente dominante.
Podemos falar em “língua brasileira”? E em “língua angolana” ou “moçambicana”?
Considero ainda precoce falar em “língua brasileira”. Tanto a gramática como o léxico continuam fundamentalmente os mesmos em Portugal e no Brasil. No entanto, e isso já desde há séculos, constatamos um processo de afastamento entre as duas normas, a brasileira e a europeia. É um processo muito gradual, mas irreversível. Isto é, não se vislumbram vias de um retrocesso. O mesmo fenômeno, todavia mais lento, se dá em Angola e em Moçambique.
Questão filosófica: para onde vamos? Chegaremos um dia a ter de traduzir obras lusitanas para serem compreendidas por brasileiros? E vice-versa?
Interessante questão. Até certo ponto, essa já é a realidade. Enquanto a linguagem culta ainda é largamente a mesma nos dois lados do Atlântico, a expressão diária começa a diferenciar-se de tal modo que gera a dúvida e mesmo a incompreensão. Isso leva a que obras literárias de outras línguas sejam traduzidas no Brasil e em Portugal separadamente, como se de idiomas diferentes se tratasse. Sim, neste terreno, existem duas políticas praticamente sem contato entre si. Poderia pensar-se que a decisão de traduzir um determinado romance estrangeiro para um público brasileiro conduziria a traduzi-lo também para um público português e vice-versa. Pois bem, não é o caso. Estamos perante decisões inteiramente autônomas.
Já podemos perceber influências da internet na mudança da nossa língua?
A internet veio criar novos hábitos de escrita e já condiciona o nosso desempenho. Vamo-nos acostumando a uma expressão mais ligeira, mais solta, digamos. Mas são processos lentos e de difícil previsão. Pode, mesmo, dar-se o caso de a nossa escrita se tornar também mais cuidada e exigente. Vale a pena irmos observando essa complexidade, tirando dela o melhor proveito para hoje e para um sempre intrigante futuro.
É comum dizer que as telenovelas brasileiras andaram influenciando muito a sociedade portuguesa. O senhor percebe isso também no idioma?
Sim, a partir de 1978 e durante bem 20 anos, as televisões portuguesas transmitiram massivamente telenovelas brasileiras. O grande interesse por esses novos produtos foi acompanhado pela difusão de modismos linguísticos próprios da expressão brasileira. Com o andar do tempo, e sobretudo entre as gerações mais novas, a própria origem brasileira de bastantes desses materiais foi sendo esquecida e eles são hoje usados como se fossem originalmente autóctones.
Qual é, em geral, o caminho de mudança de uma língua: é da “elite para baixo” ou o contrário?
A mudança na língua opera-se nos dois sentidos. Mas mais vastamente no sentido do cidadão comum para a elite, tendo o setor mais culto maior disponibilidade para adotar novidades vindas “de baixo”. Deste modo, a mudança, como diz, “descomplica”.
Assim como ocorreu com o latim, hoje o inglês é a língua franca. O senhor vê chance de o mandarim — graças à fúria expansionista chinesa — também se tornar uma referência para o mundo?
O latim foi uma língua franca na cultura europeia até o século XVIII. Artigos científicos e correspondência entre intelectuais serviam-se do latim com genérico proveito. Nessa altura o francês tomou esse papel, que hoje cabe ao inglês sobretudo americano. O futuro não é claro. O mandarim é, de fato, apontado como possível sucessor, com algumas vantagens no domínio gramatical.