Laurentino Gomes, autor de trilogia sobre a escravidão, afirma em entrevista a Deutsche Welle, que o extermínio de negros e indígenas tem consequências reais até hoje e que o gesto do país europeu seria um passo essencial para enfrentar essa herança. Agraciado sete vezes com o Jabuti, mais prestigiosa honraria literária no Brasil, o jornalista e escritor paranaense Laurentino Gomes afirma que Portugal deve desculpas ao Brasil pelo seu passado colonial.
Autor de uma trilogia sobre a escravidão – o último volume foi lançado em julho –, Gomes argumenta que a exploração de negros e o extermínio de indígenas têm consequências concretas nos dias atuais, deixaram “feridas abertas” e, portanto, não são comparáveis a “curiosidades históricas” como as injustiças cometidas pelos faraós do Egito ou reis da Pérsia.
Pedir perdão, segundo Gomes, demonstra “uma atitude de reflexão e estudo, de ajudar as gerações atuais a observar esse passado e perceber como ele afeta o presente”. Decidir quais outras ações virão a partir daí, contudo, é assunto que compete à sociedade portuguesa discutir democraticamente.
“Quando eu aponto o dedo para Portugal, estou apontando para o Estado brasileiro também”, diz o escritor. Para ele, o Brasil pós-Independência foi cúmplice da escravidão e continua a prestar serviços ao sistema escravocrata até hoje ao não oferecer à população negra condições dignas de vida.
Ele chama de “projeto de esquecimento” o fato de a escravidão não ocupar um lugar de destaque na memória nacional dos dois países, o que permite distorcer fatos históricos para “fugir de responsabilidades”.
Para Gomes, a ideia do Brasil como democracia racial “é uma premissa errada, que complica a construção do futuro”. “Se você acredita nisso, não vai votar em candidatos que se comprometam a enfrentar o legado da escravidão. (…) Vamos continuar nos enganando. E isso só vai complicar as futuras gerações, que vão continuar tomando decisões políticas com base em premissas erradas”, adverte.
DW Brasil: Por que você defende que Portugal deve perdão a africanos e negros escravizados?
Laurentino Gomes: Os países, as empresas, as instituições – como a Igreja – são pactos que se perpetuam no tempo. Se uma geração não fez o que deveria ter feito, a outra vai ter que fazer. Se essa ferida continua aberta na forma de racismo, desigualdade social, em que uns têm acesso a determinados privilégios, riquezas, oportunidades, e outros não – e essa é a herança da escravidão –, todo mundo que teve a ver com a escravidão deveria pedir perdão. É o primeiro passo para a construção de um futuro melhor. É fugir do negacionismo e enfrentar o problema.
Há quem argumente que essas coisas aconteceram há muitos anos e diga, como o fizeram alguns intelectuais portugueses à imprensa de lá, que “a maioria não tem qualquer responsabilidade no processo colonial”.
Ouço muito essa conversa em Portugal. “Ah, isso passou… Por que eu vou me preocupar com a escravidão? O número de negros em Portugal é muito pequeno comparado com o Brasil”. É a mesma lógica que Bolsonaro usa hoje para não enfrentar o legado da escravidão e adotar políticas públicas adequadas – quando ele diz que eram os próprios africanos que escravizavam, os portugueses nem entravam na África. Ou seja: “É culpa deles, eles que se virem, eu não tenho nada a ver com isso”. São argumentos históricos que são distorcidos, de forma proposital, para fugir de responsabilidades.
Não adianta a gente se esconder no passado. Não é [como] o exílio de Israel na Babilônia, os faraós do Egito, os reis da Pérsia… Não é uma curiosidade histórica. Claro que [esses eventos] têm consequências hoje. O problema é que [no caso da escravidão] a ferida continua aberta. Milhões de pessoas continuam sofrendo pelas consequências do que aconteceu.
Portugueses e brasileiros juntos foram responsáveis por mais da metade das viagens de navios negreiros, traficaram 5,8 milhões de seres humanos ao longo de 350 anos – mais da metade dos 10,8 milhões que chegaram à América. Os principais traficantes no Brasil, mesmo depois da Independência, até 1850, eram portugueses – muitos são homenageados em ruas e estátuas no Rio de Janeiro e em Salvador.
Existe uma responsabilidade por uma tragédia humanitária que foi a escravidão, e que não é uma nota de rodapé nos livros de história. O Brasil é um país pobre e subdesenvolvido, tanto quanto os países africanos de língua portuguesa, por causa da escravidão. Existe um mar de pessoas que foram traficadas, açoitadas, que não tiveram o direito de construir as suas famílias de forma digna.
Acha que Portugal deve desculpas por outras coisas?
O colonialismo destruiu a África no século 19 – e as consequências estão lá até hoje. O massacre dos indígenas, que começou em 1500, com a chegada dos portugueses, continua acontecendo no Brasil. A primeira carga de pessoas escravizadas que cruzou o Atlântico não veio da África para o Brasil; saiu da Bahia, em 1511, levando indígenas que foram leiloados em Lisboa. Nos três primeiros séculos da colonização, Brasil e Portugal mataram cerca de 3 milhões de indígenas – com doenças, invasões de território e guerras. E há consequências hoje. Está aí mais uma frente importante para um pedido de desculpas – até porque outros países têm feito isso.
Esse pedido de desculpas deveria se restringir a uma declaração, ou incluir atos concretos de reparação?
Não estou numa campanha para que Portugal peça perdão. Acho que esse é um assunto do governo e dos cidadãos portugueses. A consequência disso aí [um pedido de desculpas] é uma discussão que se dá num ambiente democrático. Portugal poderia adotar um tratamento preferencial em relação às vítimas da escravidão – como deu aos sefarditas o direito de cidadania até recentemente? Pode ser, mas aí não é mais meu campo. Vai ter que pagar indenização? Não necessariamente. Eu não estou impondo uma carga de responsabilidade financeira, porque realmente é um país que tem dificuldades orçamentárias. O que estou dizendo é que [pedir perdão] é uma atitude de respeito em relação ao passado, de reconciliação e enfrentamento da herança escravista que continua presente entre nós. É um passo fundamental para um diálogo mais maduro, entre pessoas que realmente se tratam como iguais.
Agora, acho que não dá para fugir do pedido de perdão alegando, por exemplo, que Portugal não tem dinheiro para pagar indenização. Ninguém está falando que Portugal agora vai ter que indenizar a África inteira, toda a população negra do Brasil. Nem o Brasil fez isso até agora.
Passados 200 anos da Independência brasileira, qual é a parcela de responsabilidade brasileira pela história que se desenrolou de lá para cá?
Quando eu aponto o dedo para Portugal, estou apontando para o Estado brasileiro também, que nunca teve a dignidade de pedir desculpas pelo papel que desempenhou em relação às pessoas escravizadas e aos seus descendentes do século 19 até agora. Depois da Independência, o Império brasileiro foi cúmplice com o tráfico de mais de 1 milhão de pessoas e prestou serviços ao sistema escravocrata até a Lei Áurea, em 1888. E eu diria que continua prestando os serviços até hoje quando não dá à população descendente de escravos boas oportunidades de educação, moradia e segurança.
Eu sei que o Lula foi à Ilha de Goreia [no Senegal, em 2005] e pediu desculpas pelo tráfico negreiro. Achei louvável, mas só isso não basta. O Estado brasileiro, formalmente, não fez esse pedido de desculpas. Isso ajudaria muito na hora de discutir as políticas afirmativas e de compensação.
Acha que a cultura da memória sobre o período colonial é falha em Portugal?
Recentemente houve na Holanda uma exposição de arte da época da ocupação holandesa no Brasil. Lá no meio tinha uma placa: “É sempre bom lembrar que tudo isso foi construído com sangue e sofrimento e suor de pessoas escravizadas”. É um detalhe, mas que mostra uma atitude de busca de reconciliação.
Portugal inaugurou recentemente um belíssimo museu do ouro e do diamante em Lisboa sem uma única menção à escravidão. Acho indigno isso. Lá tem uma pepita de ouro de 20 quilos e uma quantidade inacreditável de diamantes – quando quem garimpava ouro e diamante no Brasil eram pessoas escravizadas. O auge da escravidão no Brasil se deu durante o ciclo do ouro e do diamante em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
Essa mitologia de Portugal – navegador, explorador – é tão forte na formação da identidade portuguesa que as pessoas acham que não cabe a escravidão. É a mesma razão pela qual o Brasil nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura afro-brasileira. É um projeto de esquecimento. Mais do que isso: é um projeto de fingimento.
Não estou propondo que alguém comece a se chicotear e se punir agora pelos erros do passado. Põe lá: “Tudo o que você está vendo foi construído com mão de obra cativa”. É um gesto aparentemente banal, mas que mostra uma atitude de reflexão e estudo, de ajudar as gerações atuais a observar esse passado e perceber como ele afeta o presente. É isso que estou propondo.
É muito comum você encontrar em Portugal pessoas muito bem intencionadas, simpáticas, que dizem: “Que bom que você vai ter a oportunidade de falar a verdadeira língua portuguesa aqui”. Como se as ex-colônias fossem um subproduto da civilização portuguesa – na língua, nos costumes, na culinária, no jeito de se expressar, nas relações políticas. É uma atitude de arrogância colonialista que complica um pedido de desculpas.
Você acredita que, com esse pedido de desculpas, Brasil e Portugal terão consciência históricas diferentes?
A história constrói a identidade. Mas essa identidade é, às vezes, usada para fins políticos, de manipulação, opressão. Por isso que a história é tão manipulada por governos, partidos políticos. Existe esse revisionismo histórico que não acontece por acaso, que produz dividendos políticos. Está acontecendo hoje nos Estados Unidos sob o trumpismo, acontece sob o bolsonarismo no Brasil. A Rússia usou o revisionismo histórico como desculpa para invadir a Ucrânia.
A história tem um poder político grande na construção do futuro. Por isso que a gente tem que ser honesto em relação ao estudo e à reflexão da história. Porque se a gente manipula o passado ou subestima ele, nós entramos num processo de autoengano e passamos a construir o futuro com premissas erradas. Isso é grave numa democracia.
Essa ideia de que o Brasil teve uma escravidão melhor do que em outras regiões do planeta é uma herança [da ideia] do português que se misturava muito facilmente com outras culturas – o resultado seria uma grande democracia racial, exemplar. É uma premissa errada, que complica a construção do futuro. Porque se você acredita nisso, não vai votar em candidatos que se comprometam a enfrentar o legado da escravidão.
A história tem consequências hoje. E se a consequência é um pedido de desculpas, vamos fazer já, ou vamos continuar nos enganando. E isso só vai complicar as futuras gerações, que vão continuar tomando decisões políticas com base em premissas erradas.