Com o sistema contra enchentes de Porto Alegre em parte colapsado, equipes começaram a instalar bombas drenantes emprestadas desde o domingo (19). A força-tarefa é voltada a recuperar o escoamento em bairros que seguem parcialmente submersos pela água, especialmente na zona norte – o que inclui o entorno do Aeroporto Salgado Filho e da Arena do Grêmio. Os trabalhos envolvem agentes locais e de companhias de saneamento, guardas civis e mais reforços de outros Estados.
O Lago Guaíba tem reduzido lentamente de nível em meio a oscilações e um repique no início da semana passada, com prognóstico atual de que siga acima da cota de inundação – na qual está desde o dia 2 – até o início de junho, a depender das chuvas e do vento. Na zona norte da capital do Rio Grande do Sul, alguns bairros também são afetados pela cheia do Rio Gravataí, enquanto as ilhas e a parte dos bairros ribeirinhos da região sul não têm diques de proteção.
Com problemas nas casas de bombas e comportas, a maior parte do sistema que drenaria a água para fora da área urbana não está funcionando, assim como os diques de proteção dificultam o escoamento. No pico da crise, quatro das 23 casas de bombas estavam operando. Hoje, são cerca de nove após uma força-tarefa.
Essa gradual retomada exigiu a troca de equipamentos elétricos e motores, além de intervenções improvisadas para permitir a drenagem das estações de bombeamento inundadas – com o isolamento do entorno com pedregulhos e sacos de areia e cimento, por exemplo. A enchente é a maior da história da cidade, com pico de 5,35 metros, enquanto a cota de inundação é de 3 metros. Às 18h de segunda-feira, 20, estava em 4,23 metros.
Especialistas apontam diversos problemas no sistema, parte deles conhecidos há anos na cidade, alguns evidentes ainda mais após as duas cheias do ano passado – quando o Guaíba chegou a até 3,46 metros, com a retirada de 2 mil pessoas de casa. A gestão do prefeito Sebastião Melo (MDB) admite falhas e “fragilidades”, mas nega a falta de manutenção.
Em nota ao Estadão, a gestão defendeu que o sistema precisa ser reavaliado, corrigido e repensado em âmbitos municipal, regional e estadual. Também afirmou ter feito “melhorias significativas”, as quais teriam impedido a enchente de ser ainda maior. Além disso, afirmou que foram investidos R$ 592 milhões em obras de prevenção de cheias e mitigação de alagamentos.
No próprio Plano de Metas, a prefeitura reconhece que o sistema opera abaixo da capacidade, com a meta de apenas mantê-lo no padrão do início da gestão, de 85%. “A ampliação dessa meta representaria esforços antieconômicos de baixa repercussão na eficiência”, justificou a gestão Melo no documento.
O motivo seria as más condições e dita defasagem do sistema. “Grande parte destes equipamentos são antigos e frequentemente exigem manutenções”, diz o documento. “Além disto, os gargalos mais restritivos para melhor eficiência dos sistemas de drenagem residem nas más condições das redes, condutos e galerias que têm excesso de obstrução por assoreamento”, conclui.
Dos anos 1970, o sistema porto-alegrense era até então visto como uma defesa para cheias de até 6 m. A rede de diques, casas de bombas, condutos de pressão e muro teve, contudo, diversos extravasamentos e problemas, de modo que a falta de bombeamento permitiu que a água invadisse os bairros por meio de bueiros e bocas de lobo, que transbordavam.
Além disso, sem proteção adequada e localizadas a níveis abaixo de 6 m, as estações de água, energia e bombeamento foram impactadas e até inundadas, deixando de funcionar ou exigindo o desligamento para evitar ocorrências de choque. A enchente que afeta a cidade desde o começo do mês é a maior da história, com pico de 5,35 metros, enquanto a cota de inundação é de 3 metros.
No domingo, 19, foi instalada a primeira das nove bombas flutuantes de alta capacidade emprestadas pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) para Porto Alegre. Uma outra também começou, no fim de semana, em Canoas, cidade que também começou a utilizar bombas móveis de menor capacidade. Ao todo, a companhia anunciou o envio de 18 bombas para a região metropolitana gaúcha.
Com cerca de 10 toneladas, essas bombas da Sabesp são as mesmas utilizadas para a extração de água quando o Sistema Cantareira estava no volume morto, durante a crise hídrica em São Paulo, há uma década. Segundo a Sabesp, os equipamentos teriam capacidade de drenar mil litros por segundo.
Ministro-Chefe da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta também declarou que o governo federal contatou Alagoas e Ceará para o empréstimo de nove bombas de alta capacidade. Parte desses equipamentos teriam sido utilizada na transposição do Rio São Francisco. “Basicamente, serão utilizadas em Porto Alegre e Canoas. Parte delas está vindo por meio rodoviário e parte delas está vindo por avião (da Força Aérea Nacional)”, afirmou.
A força-tarefa para o escoamento da água e retomada do funcionamento das casas de bombas e do fornecimento de água tem envolvido equipes de diversos Estados, desde forças de segurança até técnicos, como da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) e da Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), dentre outras.
Segundo a Defesa Civil, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pelas enchentes, a chuva extrema e os deslizamentos em 464 dos 497 municípios gaúchos. Ao menos 581,6 mil estão desalojados (na casa de amigos, familiares etc) e outras 72,5 mil em abrigos. Em parte da região sul, há o temor que a Lagoa dos Patos se eleve ainda mais ao receber as águas da Grande Porto Alegre.
Sistema deveria suportar Guaíba a 6 metros, mas teve sucessão de falhas e opera abaixo da capacidade
O sistema anti cheias de Porto Alegre apresentou diversas falhas nas últimas semanas. A água acabou invadindo bairros por meio das redes de escoamento, extravasando por bueiros.
No dia 3, por exemplo, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), de Porto Alegre, confirmou o rompimento de uma comporta, cuja água estava seguindo em direção à região central. “Com a força da água, o portão de ferro, que estava chumbado e isolado com sacos de areia, não aguentou e acabou abrindo”, apontou em comunicado. Na mesma data, a casa de bombas da Avenida Mauá, no centro, começou a transbordar.
Por outro lado, como quase todas as casas de bombas pararam, o nível da água chegou a ficar mais alto nos bairros do que no lago em si. No centro, o Dmae chegou a reconhecer 40 cm de diferença entre a parte de fora e a de dentro do muro, por exemplo.
Essa situação motivou a abertura de parte das comportas, porém com dificuldades. No centro histórico, por estar emperrada, uma das comportas foi retirada com o uso de maquinário e o auxílio de um rebocador da Capitania dos Portos.
Mais recentemente, no sábado, 18, outra comporta foi aberta pela própria força da água, em direção ao Guaíba, visto que o nível estava mais alto dentro da cidade. Segundo o Dmae, a estrutura estava “fragilizada” há alguns dias.
Problemas no sistema são conhecidos e ficaram mais evidentes em cheias recentes
O sistema anti-enchentes abrange cerca de 68 quilômetros de diques (alguns externos, em vias elevadas), comportas, muro e casas de bombas. Criada pelo extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento, passou para responsabilidade do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) da cidade nos anos 1990, o qual foi extinto (sob críticas) em 2019. Hoje, é de responsabilidade do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae).
Antes da atual, Porto Alegre havia passado pelas três grandes enchentes: em 2015 (com 2,94 metros), em setembro de 2023 (com 3,17 metros) e em novembro de 2023 (com 3,46 metros). Todas demonstraram problemas nos sistemas contra enchentes, especialmente para o fechamento das comportas (falta de trilhos e asfaltamento, por exemplo) e nas casas de bombas (transbordamento pelos bueiros e falhas no bombeamento).
Problemas também são apontados no diagnóstico do Plano Municipal de Saneamento Básico, de 2015. No documento, fala-se de “insuficiência hidráulica” e bombas “sem condições operacionais, em estado “bastante precário”.
Também é mencionado um inventário que identificou problemas diversos no muro, tanto na estrutura de concreto quanto nas comportas. À época, o plano dizia que apenas três das então 21 casas de bombas operavam em 100%, enquanto a maioria também necessitava de ampliação.
A situação e necessidade de preservação do sistema também foi defendida por especialistas, especialmente diante de debates públicos pela supressão do muro de contenção do centro. Em 2021, nove organizações do meio publicaram uma carta aberta em resposta à possibilidade de supressão da construção, em meio à proposta de concessão do antigo cais.
No texto, destacam que “as características que proporcionaram as cheias de 1941 e de 1967 ainda estão presentes, sendo possível que eventos de ordem de grandeza semelhante venham a se repetir”.
Entre os signatários, estão o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba e o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA/RS), dentre outros.
Neste ano, com a atuação situação. Organizações voltaram a se manifestar. O programa de pós-graduação em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos da UFRGS (ProÁgua) emitiu uma nota na qual cita “anos sem manutenção adequada levaram o sistema a falhar, levando a inundação da capital gaúcha novamente esse ano, sendo que sua magnitude foi a maior já registrada.
Também fala na necessidade de novos mecanismos de monitoramento e prevenção, como ocorreu após os rompimentos de barragens em Brumadinho e Mariana. São citadas “ações que envolvam monitoramento e alerta antecipado”, planejamento urbano sustentável, preservação ambiental, investimentos em infraestrutura resiliente, educação ambiental e acesso à informação”.
Já o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) destacou que a capital gaúcha não estava preparada. “Estruturas hidráulicas que protegem a cidade de Porto Alegre não resistiram às ondas de inundações e romperam, o que sugere que foram subdimensionadas ou que não se consideraram que os volumes de chuvas poderiam aumentar com o tempo” disse.
“A falta de resiliência de Porto Alegre frente aos extremos de clima e mudança climáticas foi detectada em 2023, e este é o caso de outras grandes cidades que podem não estar preparadas para extremos climáticos como os ocorridos em 2023 ou nas próximas décadas”, destacou.
Guaíba vai sair da cota de inundação apenas em junho; entenda
O prognóstico do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS divulgado na tarde de segunda-feira, 20, aponta que o Lago Guaíba ficará abaixo da cota de inundação (3 metros) por volta das primeiras semanas de junho. Segundo os cientistas, pode chegar a menos de 4 metros ao longo da semana, mas deve voltar a subir para cerca de 4 metros com a previsão de vento sul forte a partir de sexta-feira, 24, e chuva elevada a partir de quarta-feira, 22.
Não é previsto, contudo, que tenha um repique tão acentuado quanto o da última semana, embora também tenha previsão de chuva no centro do Estado, cujos principais rios desaguam no Guaíba. Além disso, com vento sul forte, há represamento das águas e dificuldade para que escoem para a Lagoa dos Patos e, por fim, no mar.
“Os cenários de previsão indicam cheia duradoura, com redução lenta dos níveis”, aponta o boletim.
“Considerando a elevada duração prevista e possibilidade de novas elevações, recomenda-se: atenção à possibilidade de retorno das águas em regiões recentemente drenadas; atenção especial à população afetada; e ações imediatas para a manutenção das infraestruturas e serviços essenciais, como o saneamento básico”, completa.
Como a posição geográfica de Porto Alegre explica parte da enchente
A capital gaúcha se desenvolveu ao longo do Lago Guaíba, que recebe as águas de alguns dos principais rios do Estado (como Jacuí, Taquari, Caí e dos Sinos). Também é parcialmente cercada pelo Rio Gravataí (a norte) e a Lagoa dos Patos (a sul). O território mais próximo da orla é composto de áreas planas, com nível semelhante ao do lago, protegido pelo sistema anti enchentes (que falhou na atual cheia).
Outros bairros localizados entre morros não foram afetados diretamente, embora tenham sofrido reflexos pela falta de água e luz, bloqueios nas ruas e escassez de itens básicos. Além disso, as ilhas porto-alegrense têm cota de inundação entre 2 metros e 3 metros.
A rede de diques e muro não abarca as ilhas e grande parte dos bairros ribeirinhos da zona sul. Além disso, no centro, as águas dos outros rios chegam ao Guaíba em um estreito de cerca de 900 metros, enquanto pode ter um represamento ainda maior por influência do vento sul. Isto é, a cidade enfrenta não só o volume de precipitação local, mas também de outras partes do Estado, e afunilado na entrada do centro.