Poucas coisas parecem mais naturais do que os quatro pontos cardeais.
Onde quer que você esteja no planeta, você pode ver o Sol nascendo no leste e se pondo no oeste. O zênite do sol identifica o sul, enquanto outra estrela, a estrela polar, lhe dirá onde está o norte.
Conforme a BBC News, sem os pontos cardeais estaríamos perdidos. Mais do que pontos em um mapa ou bússola, são ideias poderosas com significados políticos, morais e culturais.
Mas por que o norte acabou no topo da maioria dos mapas do mundo?
Embora as quatro direções cardeais de uma bússola sejam definidas pelas realidades físicas do pólo norte magnético (norte-sul) e do nascer e pôr do sol (leste-oeste), não há razão para o norte automaticamente receber essa “distinção”.
O sul e o leste poderiam muito bem ocupar esse lugar, e o fizeram no passado.
O oeste no mapa
Embora tenha dado origem a um dos conceitos mais poderosos e intangíveis – o Ocidente ou o mundo ocidental – as sociedades antigas recusavam-se a privilegiar o Ocidente como lugar onde o sol se punha.
O pôr do sol personificava o fim da jornada da vida, antecipando a escuridão e o reino da morte, de modo que quase nenhuma cultura o escolheu como orientação sagrada para a oração, e menos ainda o colocou no topo de seus mapas.
Ele era colocado na área inferior dos mapas, como no mapa-múndi de Hereford, um dos grandes mapas medievais, no qual ao olhar para baixo você chega ao oeste, onde o julgamento final espera por você.
Essa posição está associada a uma sensação de fim, de prenúncio, de escuridão e decadência. E nas bordas do mapa estão as letras MORS, a palavra latina para “morte”.
Mas se o oeste estiver na parte de baixo dos mapas, o leste estará na parte de cima.
O leste e o nascer do sol
Na história dos pontos cardeais, tudo começa no leste com o nascer do sol.
O oriente tem sido desde tempos imemoriais um símbolo de nascimento, do início da jornada da vida. Oriente vem do latim oriens, aparecer, nascer. É a raiz do termo “orientação”, a principal forma de nos localizarmos no espaço.
O leste foi definido em oposição ao oeste ao longo do eixo horizontal que precedia o norte-sul. No cristianismo primitivo, o leste é a localização do paraíso, uma razão poderosa pela qual ele é posicionado no topo de muitos mapas-múndi.
No mapa mundi de Hereford, abaixo de Cristo, sentado em um arco-íris, está o Jardim do Éden. Abaixo, a Torre de Babel e no centro, Jerusalém. Na parte inferior, a oeste, estão os pilares de Hércules, que podem ser interpretados como o fim dos tempos.
Fora do mundo terrestre, nas bordas do mapa, o tempo terrestre termina e é substituído pelo eterno presente do céu, onde não há necessidade de pontos cardeais. E no canto inferior do mapa há uma figura saindo do quadro, olhando para o mundo que ele está deixando. A inscrição acima diz: “continue”.
A figura parece sair desta vida, mas olha ansiosamente para o topo do mapa, para o leste, aquele lugar de renascimento, onde toda a vida começa.
Este mapa-múndi foi feito em couro de bezerro por volta de 1300.
Coberto por mais de 1.000 inscrições, ilustrações de labirintos e monstros, é uma vasta enciclopédia visual do conhecimento cristão e retrata a criação bíblica da humanidade. Por que foi criado permanece um mistério.
Embora não seja um mapa convencional, pois ao invés de mostrar um caminho físico traça um caminho espiritual, é a prova de que os mapas poderiam ter o leste como norte.
É que “a morada também tem a ver com identidade, que é uma declaração espiritual e teológica, não geográfica”, sublinha o historiador dos mapas islâmicos Yossef Rappaort.
O sul nos mapas do mundo islâmico
A direção geográfica tem sido extremamente importante para o ritual na vida diária desde o início do Islã.
A “qibla” ou “quibla” é a direção sagrada da oração para Meca.
À medida que mais tribos ao norte de Medina, a cidade onde o profeta Maomé viveu e ensinou, se converteram ao islamismo, o quibla se estabeleceu ao sul.
“Isso impactou a maneira como eles viam o mundo, então fazia sentido que, escolhendo uma direção cardinal sobre as outras, eles escolhessem essa.”
É por isso que a maioria dos mapas-múndi islâmicos posicionam o sul na parte superior.
Um dos mapas mais famosos posicionando o sul na parte superior foi feito em 1154 por Al-Idrisi, que viveu na corte do rei normando cristão Roger 2º da Sicília, embora fosse muçulmano.
“Nesses mapas, a Europa está na parte inferior e muitas vezes é muito menor do que estamos acostumados”, observa Rappaort.
Embora não seja o foco desses mapas, o continente europeu tem um belo nome: “‘A diversão de quem anseia por viajar pelos horizontes’. Essa é a tradução literal”, diz o historiador.
Séculos depois, o sul ressurgiu no topo, com obras como “América Invertida” do pintor uruguaio Joaquín Torres-García (1874-1949) e o icônico Mapa Corretivo Universal do Mundo de 1979 do australiano Stuart McArthur.
MacArthur escreveu na legenda do mapa: “O sul não vai mais chafurdar em um poço de insignificância carregando o norte em seus ombros por pouco ou nenhum reconhecimento de seus esforços. Finalmente, o sul emerge por cima.”
Por que o norte começou a aparecer no topo?
O norte é o mais contraditório dos pontos cardeais.
É um lugar desolado e escuro. Um deserto congelado de exílio, punição e até morte. Monstros e demônios enchiam as regiões congeladas do norte dos mapas cristãos medievais.
Mas é também uma região de beleza austera, gerando maravilha, revelação e, com a Estrela Polar, constância, até salvação.
O norte também é único entre os quatro pontos cardeais, devido ao pólo físico do campo magnético da Terra. As correntes de convecção combinam a eletricidade com o núcleo planetário de ferro e níquel, criando um campo geomagnético que gira em torno do planeta e se espalha pelo espaço.
No entanto, como não possuímos uma bússola neurológica interna, do ponto de vista científico, não temos um sentido inato do norte magnético.
Então, por que ele acabou por padrão no topo do mapa-múndi é uma questão que ainda divide os historiadores.
Sabemos por que os chineses o tinham ali, embora as primeiras bússolas chinesas apontassem para o sul, o que era considerado mais desejável do que o norte escuro.
O imperador vivia no norte do país e sempre tinha que aparecer no topo do mapa, olhando seus súditos de cima para baixo.
E os demais mapas com o norte no topo?
“Se há algo que explica por que tendemos a colocar o norte no topo, acho que é o Polaris”, diz Felipe Fernández-Armesto, especialista em história da navegação e cartografia.
“O verdadeiro salto para o norte veio com a expansão da navegação em alto mar. Essa estrela do norte foi absolutamente crítica para os navegadores se localizarem naqueles mares desconcertantes, onde não há características físicas para dizer onde você está.”
Se for para apontarmos um momento decisivo para a fixação do norte no topo do mapa-múndi, seria 1569 e a publicação do cartógrafo flamengo Gerardus Mercator.
Seu mapa, famoso por ser o primeiro a levar em conta a curvatura da Terra (embora não seja o primeiro a colocar o norte no topo), foi projetado para ajudar os marinheiros a navegar pelo mundo, usando linhas de latitude e longitude para traçar um caminho reto .
O norte está no topo, mas não porque importasse mais, muito pelo contrário. Os Pólos Norte e Sul projetam-se ao infinito e “não importava”, segundo Mercator, pois não havia interesse em navegar até eles.
O mapa de Mercator tornou-se a cartografia padrão para fins náuticos. Na década de 1970, foi usado como base para mapear a superfície de Marte.
O norte de Mercator havia triunfado mesmo em planetas distantes. Mas, de volta à Terra, pelo menos como ponto cardeal, essa posição já não é mais tão privilegiada.
Mapas virtuais
Nas últimas décadas, a maioria das pessoas carrega seu próprio atlas virtual no telefone.
O ponto mais importante é aquele pequeno ponto azul em nossos aplicativos de mapa que seguimos sem muito cuidado com as direções da bússola ou o terreno pelo qual estamos nos movendo.
“Com o mapeamento tradicional de mapas, trata-se de ter uma visão geral da área de interesse. Você se coloca mentalmente lá e navega usando as habilidades que aprendeu na infância”, explica Ed Parsons, tecnólogo espacial-chefe do Google.
“No mapeamento online, os pontos cardeais são menos relevantes.”
“Com o Google Maps, seu telefone sabe onde você está e o mapa que você vê é orientado de forma a te colocar no centro. É autocentrado. Você é o centro do mapa e a direção em que está viajando está à sua frente.”
“A geração que cresceu com smartphones pode nunca saber como é estar perdido.”
Alguns observadores temem, no entanto, que estejamos virtualmente conectados, mas ambientalmente separados do mundo físico, habitando um reino confuso de analfabetismo espacial.
“As habilidades de orientação foram essenciais para a sobrevivência ao longo de nossa história evolutiva”, diz o jornalista científico Michael Bond.
“A relação que você tem com a paisagem pela qual está viajando não se reduz a seguir um conjunto de instruções. Obter informações do lugar ao seu redor ajuda a construir um mapa cognitivo.”
Pela primeira vez na história da humanidade, podemos estar perdendo muitas das habilidades e ferramentas espaciais que nos sustentaram por milênios.
Em outras palavras, podemos estar perdendo o norte.
* Essa reportagem é uma adaptação de um episódio da série da BBC Radio 4 “One Direction”, do historiador e autor Jerry Brotton.