A coroação do rei Charles 3º no sábado (6) provavelmente mostrará o tipo de pompa real pela qual os britânicos são famosos. Mas também é uma ocasião profundamente religiosa, repleta de tradições seculares que, para alguns, podem parecer anacrônicas em 2023.
O evento mantém hoje o significado que já teve no passado e é preciso haver uma cerimônia de coroação?
Milhões de pessoas em todo o Reino Unido testemunharão um evento raro nos próximos dias. Embora os britânicos possam estar acostumados com a pompa, multidões e festas de rua que acompanham as celebrações e jubileus reais, já se passaram 70 anos desde que foi vista uma coroação.
Trata-se de um evento totalmente diferente, repleto de curiosidades: um juramento medieval, óleo sagrado derramado em uma colher do século 12 e uma cadeira de 700 anos que abriga uma pedra que supostamente rugiu quando reconheceu o monarca legítimo.
Por lei, não há necessidade da coroação, pois o monarca assume o trono automaticamente após a morte de seu antecessor. Mas as coroações são um gesto simbólico que formalizam o compromisso do monarca com o papel, explica George Gross, que lidera um projeto de pesquisa sobre coroações no Kings College London.
Ele acredita que as promessas que um monarca faz de “defender a lei e a justiça com misericórdia” em uma declaração pública são um momento único e especial.
“Em um mundo incerto onde os líderes quebram as regras internacionais da lei o tempo todo, nosso monarca tem que dizer ‘essas são as coisas fundamentais que importam’, e isso não me incomoda.”
Juntando o velho e o novo?
O que acontece em seguida talvez resuma o que é a coroação: uma ocasião fundamentalmente religiosa. Um contorno da cruz é feito na cabeça, nas mãos e no peito do monarca com um óleo consagrado, na colher medieval.
O processo de unção eleva “o monarca quase a um padre”, explica Gross, e sinaliza o papel do monarca como chefe da igreja.
“É uma cerimônia anglicana e a unção é essencial para isso como a concessão da graça de Deus ao monarca”, diz David Torrance, que escreveu um trabalho de pesquisa parlamentar sobre coroações.
“Mas também é a Igreja da Inglaterra lembrando a todos que eles são uma das igrejas estabelecidas do Reino Unido e o monarca é seu governador supremo”.
Este momento é feito em privado porque é visto como um momento íntimo e por razões de praticidade, já que o monarca usa menos roupas neste momento, diz Elena Woodacre, diretora da Royal Studies Network. É provável que as câmeras se movam como fizeram quando a rainha Elizabeth foi despojada de seu manto e joias durante sua coroação televisionada em 1953.
Em vez de usar o óleo da coroação anterior — como alguns monarcas fizeram — um novo lote foi feito este ano. Anteriormente continha produtos de origem animal como óleo de civeta e âmbar, encontrado em baleias cachalotes, mas esta versão vegana e sem crueldade é feita, em parte, de azeitonas. Em um possível aceno para outras religiões, foram cultivadas no Mosteiro de Maria Madalena em Jerusalém, onde a princesa Alice, avó do rei, está enterrada.
Mas a escolha do óleo também está de acordo com “sensibilidades modernas”, diz Woodacre, acrescentando que “mistura tradição e continuidade com adaptação e mudança” num momento em que alguns questionam se a monarquia ainda tem lugar.
“A coroação é a chance do rei se conectar ao poder do passado e moldar seu futuro. Todas essas tradições antigas, como a Abadia e o uso da colher, ajudam a reforçar sua posição.”
A tradição importa?
Graham Smith, do grupo Republic, que faz campanha para um chefe de Estado eleito, questiona se a tradição é um argumento válido quando as coroações “mudaram em escala, escopo e conteúdo todas as vezes”.
“A maioria das pessoas não consegue se lembrar da última vez, então não é uma tradição que signifique nada para alguém”, diz ele. “Não tem valor constitucional, não é obrigatório e, se não fizéssemos (a cerimônia), Charles ainda assim seria rei.”
De fato, um monarca não precisa de uma coroação para governar e alguns fizeram isso, como Eduardo 8º, que abdicou antes da coroação dele. As monarquias europeias se livraram das coroações há muito tempo e a opinião pública sugere que o interesse talvez esteja diminuindo no Reino Unido.
Uma pesquisa recente do YouGov apontou que 48% dos entrevistados não eram muito ou nada propensos a assistir à coroação. Outra pesquisa, realizada na época do jubileu de platina da rainha, apontou que, enquanto seis em cada dez apoiavam a monarquia, a maioria dos britânicos sentia que a família real era menos importante para o país do que em 1952.
Stephen Evans, que comanda a National Secular Society, diz que o cenário religioso do Reino Unido, por exemplo, “mudou além de qualquer reconhecimento” desde a última coroação em 1953 e “muitos se sentirão alienados por uma cerimônia anglicana”.
Torrance concorda que os aspectos centrais da cerimônia podem ter sido familiares para as pessoas naquela época e talvez sejam menos familiares agora. Mas ele diz que as estatísticas mostram que as congregações em Londres estão aumentando e muitas igrejas anglicanas estão cheias.
“Quando a rainha morreu, tivemos muita religião misturada com cerimônia. Acho que o Palácio ficou surpreso com a resposta do público… muita atenção prestada”, diz ele. “Se houver um esforço para tornar a coroação menos exclusivamente anglicana, pode ser levado em consideração que o Reino Unido agora tem uma proliferação de diferentes religiões”.
Uma coroação do século 21?
Parte essencial da cerimônia, no entanto, está ligada a uma fé, diz a professora Anna Whitelock, diretora do Centro de Estudos da Monarquia Moderna.
“O problema é que no centro disso está a unção [e] o juramento que trata de defender a Igreja da Inglaterra. O fato é que você não pode mudar as partes fundamentais da coroação, que é exclusiva, não é diversa, é sobre privilégio e tudo o que uma Grã Bretanha multi-religiosa e multi-étnica não é.”
Whitelock concorda que foram feitas tentativas de modernizar a coroação, como torná-la menor em comparação com a anterior, encomendar novas músicas e envolver diversos convidados, “mas é uma tentativa de mudar o estilo [quando] você não pode mudar a substância”.
Ela avalia que qualquer mudança significativa exigiria uma grande revisão, como a desestabilização da Igreja da Inglaterra ou um referendo sobre a monarquia, nenhum dos quais ela espera ver tão cedo.
“A legitimidade da monarquia é baseada na tradição e na continuidade, então acho que se o príncipe William acabasse com a coroação, isso seria visto como ir além e enfraqueceria a instituição, e não acho que chegamos a esse ponto ainda.”
Gross acredita que há tentativas de modernizar a coroação de outras formas, inclusive na questão do custo.
Ele diz que, embora não seja incomum que as coroações aconteçam em tempos economicamente difíceis – citando a de George 6º, que ocorreu durante uma grande depressão -, a decisão de reduzir a lista de convidados do rei Charles 3º para um quarto dos números que compareceram à de sua mãe pode ser uma tentativa do palácio de manter os custos “razoáveis”.
Mas em um momento em que a população está com dificuldades financeiras, os críticos dizem que uma coroação que custa milhões é um desperdício público de dinheiro. O Departamento de Cultura, Mídia e Esporte não foi capaz de fornecer estimativas, mas claramente não será gratuito. Também não foi possível revelar quanto custou o funeral de Estado da rainha no ano passado, embora, para comparação, o da rainha-mãe em 2002 tenha custado 5,4 milhões de libras (mais de R$ 33 milhões em cotação atual).
A reação pública à morte de ambos, no entanto, sugere que ainda existe algum nível de interesse na monarquia.
Estima-se que 250 mil pessoas fizeram fila em setembro para ver a rainha e números semelhantes compareceram para ver sua mãe. Em relação à população do Reino Unido, de 67 milhões, isso pode parecer baixo, mas cerca de 40% assistiram ao funeral na TV.
Ainda não se sabe se a coroação terá o mesmo efeito, embora o professor Whitelock seja cético.
“Não há dúvida de que algumas pessoas vão assistir e dizer que é o que a Grã-Bretanha faz de melhor com pompa e ostentação. Mas é ruim a ideia de que um homem que, por acidente de nascimento, está sendo ungido e colocado acima do resto de nós, sem ser eleito, e não representa a Grã Bretanha religiosamente ou etnicamente.”