Facilidade de regularização, incentivos de parentes e relatos de crise em outros países do continente motivam escolha. Brasil é terceiro país da América Latina em número de imigrantes venezuelanos. Em 2016, com a crise econômica na Venezuela, Cindy Carreño passou a trocar o serviço de dedetização da empresa de seu marido por um saco de arroz ou farinha. Até que seus próprios clientes não tinham mais o que comer. Decidida a emigrar com cinco filhos, foi desestimulada pela irmã, que viveu no Peru e está há cinco anos no Chile, sem documentação. Em 2023, a venezuelana de 44 anos escolheu o Brasil por incentivo de uma ex-nora, que morava em Boa Vista.
Na capital de Roraima, seu marido decidiu voltar para a Venezuela e a deixou com os filhos. Hoje eles vivem no Rio de Janeiro, na ONG Aldeias Infantis SOS, que abriga 83 venezuelanos. Ali Cindy conheceu mulheres em situação semelhante, como Eilyn Sánchez, de 36 anos, mãe solo de três crianças. Uma prima na Colômbia lhe disse que a situação por lá era ruim, e como Eilyn tinha um avô português e entendia o idioma, optou pelo Brasil.
Enquanto ambas ainda procuram uma ocupação, Emily Pérez, de 26 anos, está prestes a sair do abrigo com os dois filhos e o marido, que conseguiu emprego de estoquista após quase um ano no Brasil. “Uma comadre dele dizia que aqui havia trabalho, educação e saúde. Mas foi difícil”, conta, grávida.
Assim como elas, mais imigrantes da Venezuela têm escolhido o Brasil como destino, incentivados por redes de amigos e familiares ou desencorajados por relatos de outros países do continente. Em 2023, o Brasil superou o Equador e se tornou o terceiro país da América Latina em número de refugiados e imigrantes venezuelanos, depois de Colômbia e Peru. Em janeiro de 2024, já viviam quase 550 mil no país, entre os mais de 7,7 milhões no mundo.
Professor no curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima, em Boa Vista, João Jarochinski afirma que, além de melhores condições de regularização migratória e atendimento em Pacaraima, principal entrada no Brasil, o controle estatal e o aumento de burocracia em outros países sul-americanos vêm desestimulando a ida de venezuelanos para lá.
“Nós não fazemos o controle de ingresso, como o Peru e o Chile. E na Colômbia há um processo de saturação, porque já entrou um volume muito grande de venezuelanos e de retornados colombianos”, explica o pesquisador.
Imigração cada vez mais feminina
Eilyn, que chegou ao Brasil com 43 quilos, e Cindy são retrato de uma imigração que se torna mais feminina e precarizada. Coordenadora-geral do Serviço de Proteção em Situações de Calamidade Pública e Emergência, do Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome, Cinthia Miranda diz que hoje chegam muitas mulheres grávidas sem pré-natal, crianças com desnutrição, às vezes desacompanhadas, e pessoas que não tiveram tratamento para hepatite e HIV.
“Em 2016 e 2017, vinham sobretudo homens, com mais renda e escolaridade. Eram médicos, advogados, comerciantes. Antes da pandemia começou um maior fluxo de famílias, mas ainda tão vulneráveis como agora.”
Ainda que o Brasil seja um país de trânsito rumo a outros destinos, como explica João, também tem recebido imigrantes que já passaram por outros países. Cinthia nota o aumento de venezuelanos vindos de Peru, Equador, Guiana e até Costa Rica, além de indígenas de regiões mais distantes da fronteira. “No início vinham muitos Warao, mas hoje são mais de dez etnias”, diz ela.
O Ministério do Desenvolvimento Social é responsável por fornecer abrigo aos venezuelanos que chegam por Roraima e por sua transferência para outros estados do país, por meio da Operação Acolhida. Criada em 2018 com previsão de um ano, ela existe até hoje, envolvendo Forças Armadas, governos estaduais e municipais, sociedade civil brasileira, Organização Internacional para as Migrações (OIM) e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
De abril de 2018 a fevereiro de 2024, a operação já tinha levado 128.241 venezuelanos para 1.026 municípios, sobretudo do Sul, onde há vagas de trabalho não qualificado, como em frigoríficos. Foi ela que possibilitou a viagem de Cindy, Eiljn, Emily e outras quase três mil pessoas de Roraima ao Rio de Janeiro.
“Interiorização”
Se hoje o que se chama de “interiorização” é a principal forma de chegar ao Rio, em 2017 ainda era um voo direto de Caracas, conta Larissa Getirana, coordenadora de proteção do Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio na Cáritas do Rio De Janeiro. Ela também percebeu uma “mudança drástica de perfil” dos imigrantes desde 2019, com menos dinheiro e escolaridade e mais motivação por problemas de saúde.
A análise dos pedidos de refúgio se tornou mais rápida desde que o Brasil reconheceu a “grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela”, em 2019, ato do governo Bolsonaro motivado menos por razões humanitárias e mais para manifestar repúdio ao presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Ainda assim, a principal a opção dos venezuelanos continua sendo a residência temporária, que pode se tornar permanente após dois anos.
Em 2022, a Venezuela foi campeã em solicitações de refúgio no mundo e também no Brasil, com 67% dos 50.355 novos pedidos. Deles, 41,6% foram em Roraima. Em Boa Vista, conta João Jarochinski, ouve-se espanhol nas ruas e a presença venezuelana é notável sobretudo no setor de serviços estéticos e de alimentação. Mas ainda há muita xenofobia e falta de direitos, apesar das facilidades comparativas do Brasil.
Segundo ele, cabe transformar medidas emergenciais em políticas públicas permanentes, como facilitar a revalidação de diplomas. Cinthia Miranda cita o mesmo desafio. “É diferente ter um hospital de campanha e uma maternidade”, afirma ela.
Além da maior participação de estados e municípios, o Brasil vê mais presença dos próprios imigrantes na formulação de políticas públicas. É o caso da líder comunitária Yelitza Lafont Paredes, assistente de desenvolvimento familiar e comunitário na Aldeias Infantis SOS.
Yelitza era professora do ensino fundamental na Venezuela e, incentivada por um sobrinho que nunca apareceu, veio ao Brasil em janeiro de 2018, com o mais velho de cinco filhos, de 18 anos. Sem dinheiro para comer, achou que seria uma viagem temporária, para ganhar alguma renda e voltar. Moraram por sete meses numa praça de Boa Vista até serem interiorizados para o Rio de Janeiro.
“O Brasil era mais perto. Se fôssemos para a Colômbia, precisaríamos atravessar toda a Venezuela, mas isso significa ter dinheiro”, diz ela, que optou pelo refúgio, devido às ameaças do governo da Venezuela a quem abandonou empregos públicos.
“Vai embora”
Yelitza ficou decepcionada quando se deu conta de que não falavam espanhol no Brasil. “Uma das primeiras coisas que aprendi em português foi: ‘Vai embora, a gente não tem culpa do que acontece no seu país.’ Nunca vou me esquecer.” Em junho de 2024, ela estará na delegação da segunda Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, em Foz do Iguaçu, onde vai defender a adoção de intérpretes e intermediadores culturais em escolas e postos de saúde.
Aos 49 anos, Yelitza hoje mora no Morro do Banco, que tem a maior concentração de venezuelanos no Rio de Janeiro, estimados em cerca de 1.800. Na favela, famílias grandes como a de Felix Machado costumam ocupar apartamentos de um quarto.
Felix e a mulher grávida decidiram sair da Venezuela com suas três filhas quando perderam outros dois filhos num intervalo de dois meses, por causa de infecções. “Não havia remédio nem oxigênio no hospital, tínhamos que pagar para comprar algodão”, conta ele, que desistiu de ir à Colômbia ao ver notícias de crise econômica e foi incentivado por um amigo no Rio.
Com dois filhos nascidos no Brasil, e prestes a começar um novo emprego, Felix diz que o país o recebeu muito bem, mas tem vontade de retornar à Venezuela, onde haverá eleições presidenciais em 28 de julho de 2024. “Se Maduro sair, eu volto”.