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terça-feira 3 de maio de 2022 às 08:15h

Por que mulheres tentam barrar complexo de energia eólica no Nordeste

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Todos os anos, centenas de mulheres agricultoras da região da Borborema, no Semiárido da Paraíba, realizam marchas contra o machismo e em defesa da agroecologia, um método que busca produzir alimentos segundo princípios ecológicos.

O protesto que elas realizaram nesta segunda-feira (4), porém, conforme João Fellet, da BBC News Brasil, teve como alvo um tipo de empreendimento raramente associado a danos ambientais: um complexo de energia eólica.

“Não somos contra energias renováveis”, disse a agricultora Roselita Victor da Costa Albuquerque, uma das coordenadoras da 13ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia na Borborema.

“Somos contra o modelo industrial de produção de energias renováveis que está se expandindo pela nossa região, um modelo que agride a natureza e as mulheres”, afirma Albuquerque.

O objeto de preocupação do movimento – que diz ter levado 4 mil mulheres às ruas de Solânea (PB) nesta segunda – é o Complexo Eólico Serra da Borborema.

A cargo da empresa EDP Renováveis, que em 2019 obteve uma licença prévia para realizar o empreendimento, o complexo ocupará uma área de 7,6 mil hectares – ou 7,6 mil campos de futebol – e terá capacidade de 302,5 MW, o suficiente para abastecer cerca de 36 mil casas. Será composto por oito parques eólicos com 55 turbinas (aerogeradores). A EDP Renováveis disse ter o “compromisso de garantir o mínimo impacto ambiental” de seus parques eólicos e solares.

A obra se insere num contexto de rápido avanço da energia eólica pelo Brasil e pelo mundo.

Por um lado, o movimento é visto como positivo por ajudar a reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa; por outro, a expansão está associada a uma série de conflitos e danos ambientais no Nordeste brasileiro (leia mais abaixo).

Principais fontes de energia elétrica no Brasil

Segundo o Ministério de Minas e Energia, as usinas eólicas, que em 2000 respondiam por menos de 1% da matriz elétrica nacional, passaram a responder por 11% em 2021 e se tornaram a terceira principal fonte do país, atrás das hidrelétricas (57%) e das usinas térmicas (12%).

Boa parte desse crescimento ocorreu na região Nordeste, que abriga 90% da capacidade instalada de energia eólica no país. E a participação dessa fonte deve crescer nos próximos anos, conforme obras em curso ou planejadas sejam entregues.

O avanço de fontes energéticas renováveis, como a eólica e a solar, é considerado crucial para a redução do uso de combustíveis fósseis, cuja queima acelera as mudanças climáticas.

Para as agricultoras da Borborema, no entanto, a forma com que essa fonte de energia tem se expandido pelo Semiárido brasileiro ameaça as mulheres e põe em risco os modos de vida locais.

Roselita Albuquerque, agricultura assentada da reforma agrária e uma das coordenadoras do movimento contra o complexo eólico, diz que o tema entrou no radar das moradoras em 2018, quando empresas começaram a fazer estudos sobre os ventos da região.

Um grupo de agricultoras então viajou para o interior de Pernambuco para verificar o impacto da construção de parques eólicos nas comunidades locais. Albuquerque diz ter se deparado com vários problemas causados pelas usinas.

Segundo ela, o ruído constante das turbinas estava afetando a saúde mental dos moradores. “Vimos mulheres com problema de pressão alta, ou mesmo depressivas, porque não conseguiam dormir com o barulho do aerogerador”, afirma.

Diz ainda que muitos agricultores que haviam arrendado suas terras para as usinas tiveram de reduzir o tamanho de suas roças ou abandonar a agricultura, já que muitas propriedades no Semiárido são pequenas e ficaram sem áreas para produzir.

“Diminuiu muito a área de produção, porque você não pode trabalhar debaixo dos geradores pelo desconforto do barulho e pelo risco de acidentes”, afirma.

‘Filhos dos ventos’

Outro impacto, segundo ela, afeta especialmente mulheres jovens e diz respeito à mão de obra especializada contratada para construir as usinas – em sua maioria trabalhadores homens, vindos de outras regiões do país.

Alguns desses homens, segundo Albuquerque, assediam mulheres e meninas locais ou têm relacionamentos amorosos com elas. “Depois elas ficam grávidas, os homens vão embora, e as mulheres ficam com os filhos para criar”, diz Albuquerque.

Ela afirma que as crianças nascidas desses relacionamentos são conhecidas na região como “filhos dos ventos”.

“É uma questão social grave”, diz.

Como alternativa à construção dos parques eólicos, ela defende um “modelo descentralizado de produção de energia a partir de placas solares” nas casas dos moradores.

“Assim poderíamos consumir o que precisamos e vender o excedente”, afirma.

Contratos confidenciais

A construção do complexo eólico na Borborema ainda não começou, mas Albuquerque afirma que várias famílias já assinaram contratos para arrendar suas terras à empresa a cargo das obras.

O número exato de famílias é desconhecido, já que os contratos têm cláusulas de confidencialidade.

Albuquerque afirma que as empresas de energia eólica negociam diretamente com as famílias em vez de procurar associações de moradores.

“Se esse debate passasse por dentro dos sindicatos e das associações, poderíamos fazer essas reflexões coletivamente e dizer se queremos o complexo ou não”, diz.

Albuquerque afirma que, apesar das cláusulas de confidencialidade, alguns contratos chegaram às associações.

O advogado Claudionor Vital, que assessora organizações de trabalhadores no interior da Paraíba, diz à BBC que já analisou vários contratos de arrendamento de terras para geração de energia eólica na região.

Segundo ele, os documentos costumam seguir um mesmo padrão e definir que a remuneração das famílias será proporcional à energia gerada nas propriedades.

“Quando as empresas procuram as famílias, elas usam o discurso de que elas ganharão de R$ 3 a 4 mil por mês, mas esse não é um valor concreto, elas não escrevem isso no contrato”, afirma o advogado.

Para Vital, os contratos deveriam estipular o pagamento de uma renda mínima às famílias para que não fiquem sujeitas à oscilação dos ventos.

Ainda segundo o advogado, os documentos têm longos prazos de vigência (de 30 a 50 anos) “com possibilidade de prorrogação a critério das empresas e multas unilaterais que inibem as famílias de repensar ou desistir do negócio”. “Já as empresas podem desistir sem pagar multa”, afirma.

Outro problema dos contratos, segundo o advogado, são cláusulas definindo que a propriedade passa a ter como prioridade a geração de energia eólica.

Na prática, diz o advogado, isso significa que a realização de outras atividades econômicas no território, como o cultivo de alimentos, fica sujeita à aprovação da empresa e não pode afetar a geração de energia.

“As empresas passam a ter controle do que pode e não pode ser produzido, o que impacta na forma de ocupação das terras onde o empreendimento é instalado”, diz Vital.

Problemas ambientais e sociais ligados à expansão de parques eólicos no Nordeste têm sido documentados por vários pesquisadores nos últimos anos.

Em 2020, a BBC News Brasil publicou reportagem sobre o impacto de parques eólicos em populações de onças na Caatinga.

Em 2019, a Universidade Federal do Ceará (UFC) lançou o livro “Impactos socioambientais da implantação de parques de energia eólica no Brasil”, com 16 artigos sobre o tema.

Entre os casos detalhados pelo livro estão o de pescadores que deixaram de pescar em lagoas soterradas pela construção das usinas; comunidades que perderam o acesso a mangues onde coletavam moluscos; e comunidades que passaram a ter dificuldades para acessar áreas de extrativismo por causa da construção de estradas e do desmatamento associados a um empreendimento.

O livro cita o caso de uma comunidade em Camocim (CE) que, em 2009, mostrava-se unanimemente contrária à construção de um parque eólico.

No entanto, diz a obra, após a empresa investir em um fundo habitacional, “aproximadamente metade dos membros da comunidade mudou sua visão do parque eólico de negativa para positiva”.

Outro trecho do livro compara as posições majoritariamente negativas a um parque eólico em uma comunidade no Ceará à avaliação positiva a um empreendimento desse tipo entre moradores de uma região do Texas (EUA).

O artigo afirma que, entre outros pontos, as opiniões divergentes poderiam se explicar pela diferença na remuneração de cada comunidade.

No Texas, em 2015, cada turbina rendia aos moradores o pagamento de cerca de US$ 6,7 mil em royalties por ano, segundo o estudo. O valor, na cotação atual do dólar, corresponde a cerca de R$ 33,9 mil.

Já no Brasil, segundo um estudo de Mariana Traldi, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, os pagamentos costumam ser bem menores.

Em artigo na revista Ambiente & Sociedade, em 2021, Traldi estimou os pagamentos a moradores de duas comunidades – uma na Bahia, outra no Rio Grande do Norte – com base nos resultados das empresas que atuam nos locais e em contratos a que teve acesso.

Os pagamentos por torre eólica variavam de R$ 684,46/mês (R$ 8.213/ano) a 1.122,99/mês (R$ 13.475/ano) e corresponderiam, segundo a pesquisadora, a 0,91% dos ganhos brutos das empresas.

Os valores , diz Traldi no artigo, indicam que a a incorporação das comunidades no “processo de acumulação capitalista está se dando de forma marginal”.

A BBC News informa que enviou as críticas e os temores das agriculturas à EDP Renováveis. Em nota, a empresa respondeu que o projeto na Borborema está “em estágio inicial” e que sempre busca desenvolver “parques com o maior consenso social possível”. A companhia disse ainda que promove “programas de educação e capacitação” para “garantir que a agricultura familiar e os projetos renováveis coexistam e prosperem”.

Por fim, a EDP Renováveis disse ter o “compromisso de garantir o mínimo impacto ambiental” de seus parques eólicos e solares.

Já a Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeel) disse à BBC que “o arrendamento não exclui, normalmente, a possibilidade de permanência dos moradores nas suas terras, inclusive praticando as suas atividades tradicionalmente desenvolvidas, uma vez que a implantação de parques eólicos costuma utilizar um percentual pequeno das propriedades arrendadas”.

Sobre o assédio às mulheres locais e o fenômeno dos “filhos dos ventos”, a organização diz que as empresas de energia eólica privilegiam a contratação de mão-de-obra local e promovem “inúmeros treinamentos sobre relacionamentos com as comunidades locais e programas de educação sexual”.

Quanto às queixas sobre o ruído das turbinas, afirma que as estruturas são implantadas “respeitando uma distância de afastamento de residências definida pela legislação pertinente”.

A Abeel diz ainda que empreendimentos eólicos geram renda para proprietários rurais “em regiões usualmente bastante limitadas para a produção agropecuária e marcadas pelo êxodo de população rural, incentivando, com isso, a fixação do homem no campo”.

“Vale salientar, ainda, que há muitos programas de investimento social privado desenvolvidos por empresas do setor, que buscam fomentar a geração de renda pelas famílias residentes nas áreas dos parques”, diz a associação.

Conjuntura desfavorável

Para Roselita Albuquerque, do movimento de mulheres na Borborema, a “conjuntura atual do Brasil e da agricultura familiar” deixa muitas famílias locais tentadas a aceitar os parques eólicos.

Ela afirma que, nos últimos anos, agricultores do Semiárido tiveram várias perdas, como o encerramento do Programa de Aquisição de Alimentos (compras governamentais de alimentos da agricultura familiar), a paralisação do Programa de Cisternas e a substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil (que aumentou o valor médio do benefício, mas reduziu seu público alvo).

“Isso tem um impacto na vida das famílias camponesas, as famílias estão em situação de vulnerabilidade social grande”, afirma.

Nesse cenário, ela afirma que é desafiador convencer os moradores – muitos dos quais homens – de que o parque eólico não é vantajoso para a região.

Uma das estratégias das mulheres é discutir como os jovens serão afetados, já que os longos prazos dos contratos afetarão as próximas gerações.

“Como será a sucessão rural com um modelo de produção de energia que vai reduzir as áreas de produção? Qual será a esperança dessa juventude?”, questiona.

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