Não há muitas coisas em que ferrenhos opositores em Washington – como o estrategista de Donald Trump Steve Bannon e o senador socialista Bernie Sanders – consigam concordar. Mas ambos, e muitos outros políticos e agentes públicos, reconhecem de modo unânime que há muito em jogo quando os brasileiros forem às urnas, no próximo dia 2.
“Esta será uma das eleições mais intensas e dramáticas do século 21”, afirmou Steve Bannon à BBC News Brasil.
“O destino da democracia do Brasil e de sua relação com os Estados Unidos será decidido nas próximas eleições”, declarou o senador Patrick Leahy, um dos cinco senadores aliados de Sanders a propor no Congresso do país uma resolução para “apoiar as instituições democráticas brasileiras”.
E embora autoridades brasileiras nos EUA se esquivem de comentar ou digam que o pleito é um “não assunto” na relação entre os dois países, em uma recente recepção na capital americana em comemoração aos 200 anos da independência do Brasil esse era justamente o pano de fundo da maior parte das conversas.
No espelho
Os destinos das duas maiores democracias das Américas parecem ter se entrelaçado nos últimos tempos. EUA e Brasil enfrentam desafios semelhantes e compartilham interesses comuns. Ambos lideram o ranking de países com maior número absoluto de mortos por covid-19 e enfrentam níveis de inflação acima de 8%.
Os dois países também produzem commodities semelhantes – e por isso competem nos mercados internacionais. Enquanto o Brasil é o maior produtor de soja e laranja, seguido pelos EUA, respectivamente na segunda e quarta posições, os americanos estão à frente na produção de milho, carne bovina, peru e frango, com o Brasil em segundo ou terceiro.
Mas enquanto competem com o Brasil, os EUA veem o país se tornar o principal destino de investimentos da China em 2021, um golpe considerável para os americanos em sua zona de influência mais óbvia, a América Latina, na disputa com ares de Guerra Fria entre Washington e Pequim.
Por tudo isso, era de se esperar que o interesse sobre quem deve comandar o Brasil no ano que vem fosse alto. A novidade, no entanto, está na quantidade de manifestações públicas sobre o assunto de altos funcionários ou representantes dos EUA meses antes da votação.
“Há um interesse maior e isso se deve à ameaça de ruptura democrática”, diz Carlos Gustavo Poggio, especialista em relações Brasil-EUA e professor do Berea College, no Kentucky.
Desde a redemocratização, argumenta ele, os pleitos foram pacíficos, sem sobressaltos. “Agora temos um presidente que não deixa muito claro se vai obedecer aos resultados das urnas e que tem uma relação próxima com os militares”, diz Poggio.
Desde que venceu a eleição em 2018, Bolsonaro tem repetido acusações de fraude eleitoral sem nenhuma evidência. O Brasil tem urnas eletrônicas desde 1996 – e nenhuma fraude sistemática foi registrada até hoje.
Durante uma recente visita ao Reino Unido para assistir ao funeral da rainha Elizabeth, Bolsonaro disse que, se receber menos de 60% dos votos, “aconteceu algo de anormal no TSE”, o Tribunal Superior Eleitoral. Nas pesquisas de intenção de voto, no entanto, ele nunca ultrapassou 35% e está cerca de 10 pontos percentuais atrás de Lula.
Embora tenha dito pontualmente que, se perder, “vai passar a faixa e se recolher”, Bolsonaro lançou sistematicamente suspeitas ao processo eleitoral, mesmo tendo admitido não ter provas do que diz, e sobre sua própria reação diante dos resultados.
Para muitas autoridades americanas, seu posicionamento ecoa o de Donald Trump, que lançou falsas alegações de fraude sobre a democracia americana antes e depois de sua derrota para Joe Biden.
“Brasil e Estados Unidos são espelhos um do outro”, diz o ex-vice-secretário de Estado dos EUA Thomas Shannon, que também atuou como embaixador dos EUA no Brasil no início dos anos 2010. “O que acontece com uma dessas duas democracias acontece com a outra”, ele completa.
Em um discurso recente à nação, Biden foi claro ao dizer que acreditava que o movimento de Trump, o Maga (Make America Great Again ou Torne a América Grande de Novo, na tradução para o português) era uma ameaça à democracia.
Há quem veja no forte interesse dos EUA nessas eleições no Brasil uma forma de os americanos confrontarem seus próprios fantasmas de 6 de janeiro de 2021, quando os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio dos EUA enquanto a vitória eleitoral de Biden estava sendo certificada. O saldo foi de cinco mortos e de cenas que trincaram a auto-imagem do país.
O historiador da Brown University, James Green, que estuda Brasil há mais de 40 anos, diz que foi a primeira vez que ele viu o termo pejorativo “República de Bananas”, que pessoas nos EUA costumavam reservar aos vizinhos com processos políticos caóticos na América Latina, sendo aplicado por americanos ao seu próprio país.
Em julho, diante de uma plateia americana, o então presidente do TSE, Edson Fachin, afirmou em Washington que o Brasil corria o risco não só de repetir o 6 de janeiro, mas de vivenciar algo ainda “mais grave”.
Diante de tudo isso, os americanos começaram a se mover mais intensamente desde o fim do primeiro semestre. Em entrevista à BBC News Brasil, em maio, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, afirmou que “o que precisa acontecer no Brasil são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que serviram bem a vocês (brasileiros) no passado”.
Pouco antes, uma conversa entre o chefe da CIA, William Burns, e ministros de Bolsonaro foi vazada. No diálogo, Burns pedia ao presidente brasileiro que parasse de lançar dúvidas sobre as eleições. Bolsonaro negou que a conversa tivesse ocorrido.
Os políticos também entraram em campo. O senador Leahy juntou-se a Bernie Sanders e outros quatro senadores democratas para apresentar uma resolução de apoio às instituições democráticas no Brasil que recomenda, entre outras coisas, que os EUA reconheçam o vencedor do pleito brasileiro imediatamente após o anúncio do resultado pelo TSE, para desencorajar qualquer possibilidade de contestação.
E na Câmara dos Representantes, os democratas tentaram – e não conseguiram – aprovar uma medida que suspenderia a ajuda militar ao Brasil se as Forças Armadas abandonassem sua neutralidade política.
“Às vezes a mensagem é formal, outras vezes é vazamento, mas tudo está tentando transmitir o pensamento de Washington”, diz Nick Zimmerman, consultor sênior do Brazil Institute e ex-assessor de política externa da Casa Branca no governo Barack Obama.
Para Zimmermann, o que está em jogo não é só a situação no Brasil, mas uma questão mais ampla de política internacional dos Democratas e de parte dos Republicanos sobre as ameaças globais à democracia.
“A ordem democrática multilateral construída após a Segunda Guerra Mundial está em risco de uma forma que jamais esteve nos últimos 80 anos. E isso é algo que os Estados Unidos vão lutar para defender”, diz Zimmerman.
Trump dos Trópicos e Lula em estilo Biden
Questionar o processo eleitoral não é a única semelhança entre Trump e Bolsonaro, que também é conhecido fora do Brasil como “Trump dos Trópicos”.
Ambos fizeram campanha como outsiders, prometendo lutar contra as elites políticas, mesmo que Bolsonaro já fosse um veterano no Congresso Nacional.
Ambos incentivaram o nacionalismo e a posse de armas, e denunciaram os chamados “globalismo” e “ideologia de gênero”. Ambos dominaram a comunicação direta com o eleitor via redes sociais.
“Bolsonaro é um grande herói para todos nós”, diz Bannon, que vê o Brasil como parte fundamental de um movimento populista de direita global.
“Ele está no nível do [primeiro-ministro húngaro conservador e autoritário] Viktor Orbán como alguém que defende a soberania e construiu um movimento popular de bases. Ele tem evangélicos, ele tem pessoas da classe trabalhadora. Se você olhar para o bolsonarismo do Brasil, é muito parecido com o movimento Maga”, diz Steve Bannon.
Do outro lado dessa disputa eleitoral, está Lula, cuja trajetória os americanos comparam com a do próprio Biden.
Ambos vieram de origens humildes, de famílias de trabalhadores braçais, e se tornaram referências nacionais na política, ocupando altíssimos postos antes de voltar às urnas: Biden como vice-presidente de Obama, Lula como presidente.
Ambos sempre tiveram na negociação seu principal ativo e costuraram coalizões amplas para garantir que os dois líderes populistas de seus países tivessem apenas um mandato.
No caso de Lula, há 8 ex-candidatos a presidente entre seus aliados, que incluem do líder do movimento dos trabalhadores sem teto, Guilherme Boulos, ao ex-presidente do Bank of Boston, Henrique Meirelles.
Do lado americano, Biden foi capaz de unir desde o socialista Bernie Sanders a alguns republicanos, como o ex-secretário de Estado de George Bush, Colin Powell, falecido em 2021.
Além da intrigante semelhança entre os dois principais candidatos lá e cá e da possibilidade de uma eleição contestada, há outra razão pela qual o Brasil está na agenda dos políticos americanos e europeus.
Nos últimos anos, o Brasil acelerou o processo de desmatamento da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. O governo Bolsonaro reduziu o orçamento para conter a devastação do bioma. No ano passado, seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi investigado e acusado pelos EUA de estar envolvido no tráfico ilegal de madeira, o que ele nega. Ao mesmo tempo, o tema foi se firmando como prioridade tanto no atual governo dos Estados Unidos como na Europa Ocidental.
Agenda Verde e Esquerda
Para Shannon, ficou claro ao mundo que decisões tomadas no Palácio do Planalto vão impactar a vida de bilhões de pessoas no Planeta.
Durante sua campanha eleitoral de 2020, Biden sugeriu que os americanos liderassem a criação de um fundo internacional de bilhões de dólares que ajudaria o Brasil a pagar pela preservação da área florestal.
A promessa, no entanto, nunca saiu do papel. O principal motivo, segundo pessoas a par do assunto na administração, foi a falta de confiança de que o governo Bolsonaro cumpriria as metas firmadas.
Bolsonaro afirma que o Brasil é referência na preservação ambiental e que as políticas adotadas para a região são também uma questão de soberania nacional e de desenvolvimento econômico.
Lula tem falado muito sobre sua intenção de proteger a Amazônia e conseguiu atrair o apoio de Marina Silva, ambientalista internacionalmente respeitada e sua ex-ministra do Meio Ambiente por cinco anos.
Marina, no entanto, deixou de ser ministra de Lula denunciando falta de prioridade da agenda verde no segundo mandato do petista e, tanto Lula quanto sua sucessora, Dilma Rousseff, levaram a cabo a construção de uma série de hidrelétricas no meio da Amazônia, o que causou sérios danos à floresta e sua população nativa.
Se a nova postura mais verde de Lula agrada aos Estados Unidos, há muito mais insatisfação com sua relação próxima com os regimes de Cuba, Nicarágua e Venezuela – o que Lula tem tentado suavizar com declarações sobre a necessidade de alternância de poder nesses países.
Lula também foi um grande defensor do BRICS, bloco formado por Índia, Rússia, China, África do Sul e Brasil, que alguns viam como um desafio ao poder ocidental.
Em contraste, sob Bolsonaro em 2019, pela primeira vez na história, o Brasil votou a favor do embargo dos EUA a Cuba, junto com os próprios EUA e Israel, e contra 187 outros países.
Diante de Biden, Bolsonaro teria lembrado que ele funciona como um escudo contra o que chama de “disseminação do comunismo” na América Latina.
Ainda assim, mesmo sob protestos dos americanos, o presidente brasileiro visitou o presidente Vladimir Putin em Moscou em 2022, apenas duas semanas antes do início da guerra na Ucrânia.
Para Shannon, independentemente de quem vença a eleição, o Brasil será um grande jogador internacional, com quem os EUA precisam trabalhar, sem pretensões de dominar.
“A diferença entre o Brasil e os EUA é que os EUA são uma superpotência global e eles sabem disso”, diz ele. “O Brasil é uma superpotência e ainda não descobriu.”