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sexta-feira 17 de novembro de 2023 às 13:08h

Por que a transferência de riqueza entre gerações vai mexer com a economia mundial

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Cada geração, quando chega à idade adulta, recebe como herança das anteriores uma parte do patrimônio acumulado com o passar do tempo. Segundo reportagem de  Diego Viana, do jornal Valor, Mas nunca se viveu uma transferência de riqueza tão grande quanto a que se iniciou no fim da última década e deve prosseguir pelas próximas duas. Embora os números divirjam de estudo para estudo, calcula-se que ao redor do mundo as heranças dos chamados “baby boomers” (nascidos nas duas décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial) aos “millennials” (nascidos entre 1980 e 1996) cheguem a quase US$ 150 trilhões.

Só nos Estados Unidos, são aproximadamente US$ 75 trilhões. Em comparação, os nascidos após a Segunda Guerra receberam de seus pais (nascidos entre 1900 e 1925) o equivalente a US$ 16 trilhões. No ritmo atual, muda de mãos US$ 1 trilhão anualmente, de acordo com o relatório de Indivíduos com Patrimônio Líquido Elevado e Ultraelevado nos Estados Unidos, da empresa de pesquisa de mercado Cerulli Associates, sediada em Boston.

O ritmo tende a acelerar ano a ano e só vai se concluir em 2045. Nesta década, o instituto Wealth-X, concorrente do Cerulli, estima que o total transferido será de US$ 8,8 trilhões nos EUA, US$ 3,2 trilhões na Europa e US$ 1,9 trilhão na Ásia. Em 2020, os “boomers” detinham 57% da riqueza no planeta e eram a geração mais rica. Em 2030, será a geração X (nascida de 1965 a 1980), com 31%.

O processo está sendo chamado de “great wealth transfer” (grande transferência de riqueza) e contém algumas particularidades que dizem respeito a esse enorme volume de recursos, ao tamanho relativo das populações e, principalmente, à diferença de perfil entre quem transfere e quem recebe.

Hoje, os millennials, alguns dos quais vão receber heranças de vulto, constituem aproximadamente 30% da população mundial, diz Esteban Polidura, chefe de estratégia de investimento para a América Latina do banco suíço Julius Bär. Atualmente, o patrimônio dessa geração gira em torno de US$ 25 trilhões, de acordo com o analista. “Esse já é um valor alto, mas se prestarmos atenção, vemos que essas pessoas vão receber uma injeção de recursos no exato momento em que estão a ponto de realizar todo seu potencial produtivo. Esse é um dos motivos pelos quais essa transferência de riqueza é tão extraordinária”, afirma.

De posse de uma riqueza sem precedentes, os quarentões da próxima década têm o potencial de mudar radicalmente a alocação de capital no planeta. Nascida e criada na era digital, preocupada desde a juventude com temas como o clima, a diversidade e a responsabilidade social, a geração que começa a chegar aos 40 anos pensa de maneira muito diferente de seus pais e avós. Essa é uma das conclusões do relatório “Next Generation: how to invest in megatrends” (A próxima geração: como investir em megatendências), do Julius Bär.

Nos termos do banqueiro e filantropo sul-africano Ken Costa, autor do livro “The 100 Trillion Dollar Wealth Transfer” (A transferência de riqueza de US$ 100 trilhões, publicado no Reino Unido em agosto), o processo já em curso representa um “rejuvenescimento do mundo” e uma possível transformação do capitalismo na direção da “colaboração, compaixão e comunidade”. O próprio Costa, porém, identifica o perigo de que a preferência por investimentos conscientes, em que a justiça pesaria mais do que o retorno esperado, possa reduzir a eficiência do capital, com consequências negativas sobre o crescimento.

O que explica por que a atual transferência da riqueza, em particular, merece o epíteto de “grande” é uma combinação de história econômica e demografia. Os “baby boomers” têm esse nome porque refletem a rápida expansão populacional que se seguiu à derrota dos exércitos nazistas, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Nos anos 1950 e 1960, a pirâmide etária era, sem dúvida, uma pirâmide: na maior parte do mundo, as famílias eram numerosas e a população contava com muitas crianças e jovens para poucos idosos.

Esses jovens foram os protagonistas de um período sem precedentes de crescimento econômico, conhecido como “grande aceleração”. A reconstrução dos países destruídos pela guerra, a expansão industrial e tecnológica, o desenvolvimento de redes de proteção social e o investimento pesado em educação básica e superior contribuíram para o período de maior enriquecimento da história.

Mais tarde, os jovens da década de 1960 também se beneficiariam de um processo iniciado nos anos 1980, quando já não eram tão jovens, e que hoje se reflete nas heranças que começam a legar: a desregulação e consequente expansão dos mercados financeiros. Ativos de toda natureza se valorizaram enquanto as bolsas subiam, com reflexo particularmente nos imóveis, cujos preços quintuplicaram em 40 anos. Quem comprou sua casa e começou a investir em ações nos anos 1970 se viu, 30 anos depois, de posse de um patrimônio altamente valorizado.

Esteban Polidura: “Os jovens herdeiros são de uma geração que não quer ser aconselhada, mas educada” — Foto: Divulgação
Esteban Polidura: “Os jovens herdeiros são de uma geração que não quer ser aconselhada, mas educada” — Foto: Divulgação

Ao se aposentarem, esses profissionais dispunham não só de casas bem avaliadas, como também de fundos de pensão vigorosos e ações em alta: o índice S&P 500, da Bolsa de Nova York, se valorizou 2.800% desde 1983. Como resultado de todas essas transformações, a riqueza das famílias americanas saltou de US$ 38 trilhões em 1989 para US$ 140 trilhões em 2022, de acordo com o Federal Reserve de St. Louis.

Nem mesmo o terremoto da crise dos subprimes, a partir de 2008, abalou permanentemente a riqueza dessa geração. Na década seguinte, a liquidez que os bancos centrais injetaram no sistema financeiro foi em boa parte direcionada para a valorização de seus ativos. Durante a pandemia, o processo foi intensificado, conforme advertiu o megainvestidor Ray Dalio, fundador do fundo Bridgewater, em um artigo publicado em agosto: o enorme esforço para manter a economia de pé representou uma transferência de renda do setor público para o privado, mais especificamente os detentores de ativos financeiros, a maior parte pertencente à geração dos “boomers”.

Na virada do milênio, quando as crianças da década de 1980 começavam a escolher suas profissões, a pirâmide etária tinha se transformado. O grupo mais numeroso já não era o dos recém-nascidos, mas o dos jovens. Os muito idosos também deixavam de ser uma pequena marca no alto do triângulo. Em alguns países, sobretudo os de economia mais avançada, a predominância de gerações mais antigas começava a acender o alerta para a reposição da força de trabalho e o impacto na previdência, uma vez que o recolhimento de contribuições dos profissionais na ativa deixou de acompanhar o desembolso de aposentadorias e pensões.

A expansão da economia global também havia desacelerado, passando de uma média de quase 6% na década de 1960 para pouco menos de 3% nos anos 2010. Para piorar, os millennials foram atingidos pelo “crash” de 2008 e a grande crise financeira subsequente bem nos primeiros anos de sua atuação profissional, o que pode ter prejudicado a ascensão de muitos jovens na carreira. Nos Estados Unidos e na Europa, os millennials constituem um grupo altamente endividado, e que passou a década de 2010 adiando planos de comprar imóveis, casar e ter filhos.

Como consequência, de acordo com a pesquisa Wealth Watch, da seguradora New York Life, só 21% da geração millennial declaram se sentir confortáveis e capazes de administrar a herança que vai receber. A explicação, segundo o relatório, assinado pela diretora de bem-estar financeiro da seguradora, Suzanne Schmitt, é que “os millennials, e agora a geração X, cresceram em um cenário de tormenta financeira e global”. “Esses dois grupos testemunharam transformações econômicas em seus anos de formação e, por isso, podem ter maior aversão ao risco do que seus antecessores”, diz.

Tudo somado, quando os “baby boomers” receberam suas heranças dos pais e avós que viveram na primeira metade do século, eram muitos indivíduos recebendo de poucos, que por sua vez tinham menos riqueza para distribuir do que existe atualmente. Mas quando esses mesmos “baby boomers” passam o bastão – e tudo o mais -, serão um grupo maior, entregando seu patrimônio multiplicado em mãos relativamente menos numerosas. Mesmo com o retorno da inflação nos últimos dois anos e a perspectiva de que a valorização dos ativos financeiros possa ter chegado ao seu limite, o volume de recursos acumulados é suficiente para garantir a passagem do poder financeiro para os millennials ao longo dos próximos 20 anos.

A chefe de ESG, Compliance e Jurídico da gestora de capital Dahlia, Karina Azevedo, resume o impacto da chegada desses recursos às mãos de uma nova geração. “Para superar a crise climática, vamos precisar de três coisas: vontade política, tecnologia e tempo. O poder financeiro das novas gerações vai ter um papel fundamental no primeiro desses fatores”, argumenta.

Azevedo assinala que as novas gerações já constituem 58% do eleitorado nas democracias do mundo e, nos próximos 20 anos, chegarão a 80%. “Até agora, faltava a elas o poder financeiro, que continuava na mão das gerações anteriores. O que a grande transferência de riqueza vai fazer é emparelhar o poder político e o financeiro dos millennials”, diz. “Então a transferência de riqueza vai ser ainda mais fundamental para eles, porque só assim a força demográfica dessa geração vai conseguir se exercer politicamente: por meio do poder financeiro.”

O lado político da mudança demográfica já é perceptível, acredita Azevedo. “A primeira conferência da ONU sobre o meio ambiente como desafio da humanidade foi em 1972. Em 1992 houve a conferência do Rio de Janeiro. Al Gore, que era conhecido como ‘homem do ozônio’, fez o documentário ‘Uma Verdade Inconveniente’ em 2006. Mas foi só depois de 2015, e ainda mais depois de 2020, que o tema da sustentabilidade ganhou o peso que tem hoje. Por quê?”, interroga, já respondendo. “O que explica isso, como muitas coisas no mundo, é a demografia: as gerações anteriores não tinham a mesma preocupação ecológica que as pessoas nascidas depois de 1980.”

Já prevendo o impacto da riqueza que troca de mãos, consultores financeiros e outros profissionais passaram a se perguntar o que seria feito com esses recursos. De fato, pesquisas que tentam traçar o perfil de investidores das diferentes gerações costumam mostrar que os jovens têm uma mentalidade que difere profundamente da que seus ancestrais manifestavam. Em seu relatório Global Wealth Research Report, a Ernst & Young encontrou uma inclinação maior para as opções de investimento sustentável nos jovens: 20% dos pesquisados declararam que esse era um fator importante na escolha de um gestor de patrimônio, contra 8% entre seus pais. A EY encontrou também uma preferência por gestores com equipes diversas em termos de raça, gênero e outros: 16%, contra 5% dos “boomers”.

“Os jovens herdeiros são de uma geração que não quer ser aconselhada. Ela quer ser educada”, argumenta Polidura. “São pessoas que têm acesso muito fácil à informação, são nativos digitais, e procuram a ajuda dos consultores financeiros para tomar suas decisões, ou seja, não desejam que as escolhas sejam feitas por eles.” Segundo a EY, entre os mais jovens, 32% valorizam a disponibilidade de serviços digitais quase tanto quanto a performance passada do gestor (32% contra 34%) e 60% desse grupo se dispõe a mudar de banco por outro com melhores ferramentas digitais.

Outras diferenças de perfil geracional também podem ter seus efeitos ampliados com a transferência de riqueza. As novas gerações são consideradas mais inclinadas ao empreendedorismo, rejeitando o projeto de vida baseado em empregos estáveis de longo prazo, de acordo com Polidura. “Essa é uma geração muito mais empreendedora ou que trabalha por conta própria do que a de seus pais, que se acostumou com a ideia de subir na carreira galgando cargos dentro das empresas. Esse perfil dos jovens significa que, de posse desse capital aumentado, eles têm potencial para criar um volume enorme de nova riqueza”, afirma.

O impacto social da chegada de uma nova geração ao processo decisório também se revela nas práticas de filantropia, conforme explica a CEO do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), Paula Fabiani. Em 2021, o Idis publicou a versão brasileira do guia “Filantropia da Próxima Geração”, lançado originalmente pelo Rockefeller Philanthropy Advisors nos Estados Unidos. A cartilha mostra, por meio de estudos de caso, como a geração ascendente introduz um novo conceito de doação.

Assim como no investimento financeiro, na sua vertente social os filhos tendem a agir de maneira muito diferente dos pais, segundo Fabiani. Tradicionalmente, as doações são feitas com um perfil que a CEO do Idis define como “assistencialista”, ou seja, a escolha de alguma instituição ou causa para receber os recursos, com o objetivo de aliviar um sofrimento em particular. “As gerações mais jovens estão buscando ações que sejam como um investimento com retorno social ou ambiental: tentam alocar os recursos em ações mais transformadoras, que ataquem as causas dos problemas”, diz. “Essa é a raiz de ideias como a do chamado ‘altruismo eficaz’, que busca sustentar o investimento social em dados.”

De acordo com Fabiani, a particularidade brasileira é que a passagem do bastão leva mais tempo, porque, na ausência dos pesados impostos sobre a herança dos países ricos, não é necessário organizar a transferência do patrimônio ainda durante a vida dos titulares. “Em países como os Estados Unidos, as famílias fazem o planejamento tributário antecipadamente, para evitar a taxação. Então criam seus fundos fiduciários, suas fundações e seus veículos filantrópicos”, explica Fabiani.

Em sua pesquisa anual sobre os millennials e a geração X, que neste ano entrevistou mais de 22 mil pessoas, a consultoria Deloitte confirma a crescente preocupação com sustentabilidade e responsabilidade social, mas detecta uma mudança ocorrida após a pandemia e, principalmente, a crise do custo de vida que se seguiu a ela. Os jovens entrevistados se veem cada vez mais com dificuldade de viver de acordo com seus princípios. Embora 70% afirmem perseguir ativamente a redução de seu próprio impacto ambiental e 60% se digam dispostos a pagar mais caro por produtos mais sustentáveis, 55% temem que, a prosseguirem as condições econômicas atuais, será impossível cumprir essas expectativas.

Para Fabiani, esse é um tópico sensível. “A mudança de mentalidade já é visível, mas não é claro que ela vai se tornar também uma mudança de padrão de consumo, que é o que pode obrigar as empresas a transformar seu comportamento também”, diz. “Quando for detentora do capital, quando chegar a hora de tomar as decisões, ainda não sabemos se essa geração vai abrir mão de retorno e de certos bens de consumo, se vai levar a cabo sua visão, deixando de investir em setores como petróleo e mineração.”

De acordo com Polidura, já se veem sinais de que os jovens não procuram apenas alinhar seus investimentos a valores sustentáveis e sociais. “Eles também estão dispostos a sacrificar uma parte do seu retorno para atingir esse propósito”, afirma. “É por isso que os bancos estão bifurcando suas ofertas. Existem as soluções típicas de investimento sustentável ou responsável, com impacto ambiental ou social. São aqueles que não causam danos ao ambiente ou à sociedade. Mas muitos desses clientes buscam dar o próximo passo, que são os investimentos de impacto. Ou seja: não é só evitar o dano, mas também exercer um efeito positivo. Em nome disso, os jovens aceitam reduzir seu retorno.”

Azevedo também identifica uma influência palpável das gerações mais recentes de investidores nas atitudes das empresas, sobretudo por meio da rápida expansão de equipes ESG. “Nossa metodologia de avaliação das companhias inclui conversar com os gestores. Todos os responsáveis por ESG são recentes. O mais antigo é de 2015”, assinala. “Isso não é à toa, assim como não é à toa que todas as maiores empresas do mundo, listadas nas principais bolsas, já anunciaram seus planos para chegar à neutralidade de carbono. Não estão fazendo isso porque é a coisa certa, mas porque a demografia do mundo exige cada vez mais.”

Da perspectiva política, esse processo é embrionário. O ponto de virada acontecerá quando a regulação dos mercados começar a refletir a força política das novas gerações, afirma Azevedo. “A regulação não deixa escapatória. Hoje vemos isso no mercado europeu: quem não conseguir mostrar adequação às exigências não tem escapatória. Quando a pressão política for capaz de determinar uma regulação mais rigorosa nas principais economias, todas as empresas terão que agir de acordo”, argumenta.

Nesse meio-tempo, a transferência intergeracional não está ao abrigo da desigualdade crescente do mundo. De acordo com uma pesquisa realizada no ano passado pela cooperativa de crédito americana Alliant Credit Union, a média das heranças nos Estados Unidos está em algum ponto entre os US$ 350 mil que os jovens esperam herdar e os US$ 250 mil que os “boomers” estimam transferir. Seja qual for o número correto, sabe-se que boa parte desse volume vai estar concentrado em poucas mãos.

O grupo dos UHNW, ou seja, aqueles com maior patrimônio líquido, constitui a seleta categoria dos mais ricos entre os ricos, respondendo por 1,5% da população analisada no relatório da Cerulli Associates. Essa categoria responderá, sozinha, por 42% da grande transferência de riqueza, com algo em torno de US$ 36 trilhões nos Estados Unidos. De acordo com Polidura, em todo o mundo, esse valor atinge US$ 105 trilhões. O diretor do Julius Bär afirma que esse grupo restrito, assim como a população em geral, também demonstra um perfil de investimento mais preocupado com a responsabilidade social e a sustentabilidade.

Embora não haja dados precisos sobre a transferência de riqueza na América Latina, Polidura aponta que as características demográficas da região sugerem que algo semelhante possa ocorrer. A pirâmide etária já se desloca para cima, com média de idade entre 25 e 30 anos em países como México, Argentina, Brasil e Colômbia. Os nascidos nas décadas de 1940 e 1950 também são os mais ricos. E, por fim, “é um continente em que os jovens são muito empreendedores e autônomos. Há inúmeras startups entrando no mercado, por exemplo, no Brasil, e é comum que empresas novas se financiem por crowdfunding. Tudo indica que um fenômeno semelhante vai se passar aqui”, diz.

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