A viagem de seis dias do vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) à China, que se inicia neste domingo (19), é considerada decisiva para fortalecer as relações entre o Brasil e seu principal parceiro comercial.
De acordo com especialistas, a visita tem uma importância simbólica e duas possíveis consequências econômicas práticas.
Segundo BBC News, seria uma demonstração de que o Brasil de fato considera a China como um parceiro importante. Isso é particularmente relevante diante dos comentários hostis feitos por Jair Bolsonaro (PSL) sobre o país antes de ser eleito presidente.
Já do ponto de vista econômico, Mourão e o vice-presidente chinês, Wang Qishan, deverão reativar o mais importante fórum de negociação comercial entre os dois países, a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que estava paralisada desde 2015. O encontro ocorre no dia 23 e é o principal compromisso da agenda durante a viagem.
Também há expectativa de que o vice brasileiro apresente um posicionamento do governo Bolsonaro sobre a iniciativa Belt and Road – também conhecida no Brasil por Nova Rota da Seda – pela qual a China promove investimentos em infraestrutura em troca de benefícios econômicos. “Tem que haver um casamento, benefício mútuo”, declarou Mourão antes de embarcar.
Papel de conciliador
Segundo o presidente da Câmara de Comércio Brasil-China, Charles Tang, a viagem de Mourão é uma oportunidade para o Brasil “reassegurar que considera a China um parceiro importante”, um pressuposto que ficou arranhado com as declarações hostis dadas por Bolsonaro durante a campanha eleitoral.
O capitão reformado chegou a dizer que a potência asiática tentava controlar setores essenciais da economia brasileira, como o de energia, e não estava “comprando (produtos) do Brasil, mas o Brasil”.
Outro episódio que desagradou o governo chinês foi a visita a Taiwan de Bolsonaro e dos filhos Flávio, Carlos e Eduardo, em março de 2018. A China considera Taiwan uma ilha rebelde. Desde 1974, quando estabeleceu relações com Pequim, o Brasil assinou um documento reconhecendo que Taiwan é parte da República da China. A maior parte da comunidade internacional adota a mesma posição.
À época da viagem da família Bolsonaro a Taiwan, a embaixada da China no Brasil manifestou “sua profunda preocupação e indignação pela referida visita, que não só afronta a soberania e integridade territorial da China, como também causa eventuais turbulências na Parceria Estratégica Global China-Brasil”.
Nesse sentido, o professor de Relações Internacionais do Insper Leandro Consentino acrescenta que Mourão tem sido “a grande figura de conciliação” nos episódios de desentendimento – repetindo o mantra de que a China é um parceiro comercial importante para o Brasil.
Assim, acrescenta Consentino, a visita de Mourão poderia dar um tom mais pragmático à política externa bolsonarista, em oposição à postura do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, vista muitas vezes como mais ideológica.
Tang, da Câmara de Comércio Brasil-China, acrescenta que Mourão recebeu uma “deferência especial” do governo chinês, já que há previsão de encontro com o presidente chinês, Xi Jinping.
Não é praxe no mundo da diplomacia que um presidente receba um vice – o encontro é, em geral, entre autoridades do mesmo escalão. Por isso, a possível reunião é encarada como sinal de prestígio.
Mas não seria uma deferência dada apenas a Mourão. Em 2013, o então vice-presidente Michel Temer também foi recebido por Xi Jinping em visita à China.
Desde que assumiu, Bolsonaro fez viagens oficiais aos Estados Unidos, a Israel e ao Chile. O presidente se comprometeu a visitar a China no segundo semestre.
Na China, Mourão deve entregar uma carta do capitão reformado convidando o mandatário chinês para realizar visita oficial ao Brasil. Ele já deve vir ao país em novembro, para participar da Cúpula dos BRICS.
A importância comercial da Cosban
Para André Soares, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), a reunião da Cosban é uma das grandes oportunidades para a atual gestão estreitar o comércio com a China.
Conduzido tradicionalmente pelos vices desde que foi criado, em 2004, o encontro já foi copresidido pelos vices José de Alencar, de Lula, e Michel Temer, de Dilma, e é o local em que “os gargalos das relações bilaterais são destravados”, diz o analista comercial, que participou de três dos quatro encontros realizados até hoje.
Foi lá, por exemplo, que os mercados para carne bovina e de frango brasileiros foram abertos.
“Conseguir organizar um encontro da Cosban tão rápido, com apenas cinco meses de governo, é algo muito positivo”, diz o especialista.
Em entrevista recente à TV Brasil, Mourão falou sobre a importância da comissão: “O nosso principal mecanismo de ligação com o governo chinês ficou quatro anos sem ser acionado. Logo que assumimos o governo, foi orientação do governo Bolsonaro que resgatássemos esse mecanismo”.
“Os chineses são muito agressivos na procura dos interesses deles. Muitas vezes, eles chegam no Brasil, e não há coordenação do que estão fazendo. A Cosban tem que coordenar isso”, acrescentou o vice.
A reativação da comissão, diz o especialista, é um caminho para que as empresas brasileiras consigam cumprir a burocracia que permite o acesso ao mercado chinês, um processo de se dá “a conta gotas”.
Soares cita como exemplo o próprio setor de carnes. A aprovação para exportação se dá não por empresa, mas por frigorífico – ou seja, caso uma companhia tenha mais de um frigorífico fornecedor, cada um deles precisa passar por um processo diferente de certificação para que possa exportar para a China.
E o Brasil pode ter uma oportunidade justamente nessa área, já que um surto recente de peste suína reduziu a produção doméstica chinesa.
Guerra comercial
O Brasil já tem embarcado mais soja para a China, aproveitando-se da sobretaxação imposta por Pequim aos embarques da commodity vindos dos Estados Unidos. Esse é mais um reflexo da guerra comercial entre chineses e americanos, que tem como principal sintoma o aumento contínuo das tarifas de importação para produtos de um lado e de outro.
A disputa tem origem na visão do governo de Donald Trump de que os Estados Unidos são prejudicados pelo déficit na balança comercial com alguns países, especialmente com a China.
Na visão do presidente americano, o desenvolvimento da indústria exportadora chinesa se daria à custa de empregos que poderiam ser criados nos Estados Unidos, por empresas americanas.
Recentemente havia expectativa de que os dois países entrassem em acordo, mas, depois de meses de negociação, Trump anunciou, no início de maio, uma nova rodada de aumento de tarifas.
A guerra comercial é hoje a principal preocupação do presidente Xi Jinping, ressalta Steve Tsang, diretor do SOAS China Institute, em Londres, que poderia ser usada pelo Brasil, na condição de importante fornecedor de matérias-primas, para negociar com Pequim.
“O Brasil é importante para a China por causa do fornecimento de grandes volumes de produtos agrícolas e minerais, (usados) para alimentar os chineses e abastecer as indústrias do país.”
O país asiático é o principal parceiro comercial do Brasil, desde 2009. No ano passado, por exemplo, foi destino de US$ 64,2 bilhões (R$ 263,2 bilhões) em exportações – alta de 35% em relação a 2017 – e origem de US$ 35 bilhões (R$ 143,5 bilhões) em importações.
A soja representou 43% dos embarques, o petróleo, 22%, e o minério de ferro, 17%.
São cifras bem maiores que as registradas com o segundo maior parceiro brasileiro, os Estados Unidos – US$ 29 bilhões (R$ 119 bilhões) em exportações e importações.
‘Belt and Road Initiative’
À TV Brasil o vice-presidente Mourão declarou também que vai levar à China “nosso posicionamento sobre a iniciativa Belt and Road“. Trata-se de um acordo entre a China e diversos países do mundo, pela qual potência asiática investe em infraestrutura em troca de benefícios econômicos. “Tem que haver um casamento, benefício mútuo.”
“A China precisa da nossa exportação de alimentos. Então, tudo que colocarmos aqui (no Brasil) em infraestrutura que beneficie o transporte de alimentos para China – ferrovias, portos, rodovias – é interessante (para os chineses)”, disse Mourão.
Ele destacou ainda um interesse do Brasil nos “conhecimentos (chineses) na área de energia renovável”, que poderiam ser úteis “principalmente no Nordeste e Norte no Brasil”. “São esses assuntos que precisamos ter aproximação bem correta e sabermos nos ligar com os chineses.”
Para Tsang, a entrada do Brasil no Belt and Road significaria um novo começo para as relações entre os países no governo Bolsonaro.
“Um apoio à iniciativa significa, basicamente, dizer que Bolsonaro não quis realmente dizer o que disse antes (sobre a China estar comprando o Brasil). Já se Bolsonaro mantiver o discurso anterior, então a China vai fechar as portas para o Brasil participar da iniciativa”, completou Tsang.
Sentimento anti-China na ala olavista do governo
Após a eleição, o discurso de Bolsonaro começou a mudar. Em abril, por exemplo, o presidente celebrou parceria entre a China e exportadores de carne suína brasileiros.
Mas as relações do Brasil com a China ainda enfrentam antipatia da ala do governo ligada ao filósofo Olavo de Carvalho, ferrenho crítico do regime comunista chinês.
“A China é hoje a maior potência genocida anticristã do planeta – e, aliás, uma potência que só pensa dia e noite em dominar o mundo. Julgar que esse fator é irrelevância e pura ‘ideologia’ é ser o mesmo tipo de monstro que antes da Segunda Guerra, ao falar da Alemanha nazista, só pensava nas vantagens do comércio”, declarou Carvalho em abril.
Nesse espírito, apoiadores de Olavo de Carvalho lançaram uma ofensiva digital contra um grupo de deputados do PSL, partido do presidente, por terem realizado viagem oficial à China em janeiro.
“É um bando de caipiras”, disparou o escritor, que também se posicionou contrário ao vice-presidente. Não há sinais, porém, que Carvalho vai promover ataque semelhante a Mourão – na semana passada, o filósofo prometeu que ficaria em silêncio em relação ao governo, após diversos embates com a ala militar.
Para não se desgartar novamente com a China, recomenda o professor Steve Tsang, “é só Bolsonaro não criticar o governo chinês. Ele pode falar tudo de mal sobre os comunistas de Cuba ou da Coreia do Norte, mas não pode criticar os comunistas chineses. Aí sim é um problema”.