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segunda-feira 19 de dezembro de 2022 às 09:45h

Por que a China continua tentando frear a Covid?

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Placas de metal e cercas de arame farpado protegem as fronteiras da cidade, para impedir que entre gente de fora – enquanto guardas em checkpoints controlam o movimento dentro dela. Poderia ser uma cena da Berlim pós-Segunda Guerra Mundial, partida em duas, a não ser por um detalhe: os testes de Covid que a população é obrigada a fazer, em barraquinhas montadas pelo governo, várias vezes por semana.

Segundo a agência Bloomberg, que esteve no local, assim é a vida em Ruili, cidade que fica na fronteira da China com Mianmar e é o maior alvo dos lockdowns: já sofreu nada menos do que sete deles. Mesmo após anunciar um afrouxamento das medidas, o governo chinês segue combatendo a Covid com mão de ferro. A matéria é de Bruno Garattoni , da revista Super.

Na metrópole de Guangzhou, onde recentemente houve um surto da doença, as autoridades pretendem construir mais 130 mil leitos em alas de isolamento hospitalar, e 115 mil novas vagas nos “centros de quarentena” – onde pessoas que estão infectadas, mas não doentes, são obrigadas a ficar.

Em outras cidades, é permitido cumprir a quarentena em casa (quando aparece um caso num prédio, todos os moradores são isolados), mas isso também leva a situações extremas.

Em Zhengzhou, um bebê de quatro meses morreu durante uma quarentena, em novembro: os pais tiveram que insistir muito para poder levá-lo ao hospital, e só conseguiram permissão tarde demais. Em Urumqi, no norte do país, dez pessoas morreram no incêndio de um edifício residencial. Como o prédio estava sob quarentena, as autoridades demoraram para permitir a entrada dos bombeiros.

Uma série de casos assim (também houve o de uma garota de 14 anos, que morreu em outubro após ter convulsões num centro de quarentena em Ruzhou), mais o cansaço natural do povo chinês com as restrições intermináveis, detonaram uma série inédita de protestos nas ruas de oito cidades, incluindo Pequim, Xangai e Wuhan – onde a pandemia começou, três longos anos atrás.

Uma semana após os protestos, o governo lançou um pacote maior de afrouxamentos. Os infectados com sintomas leves ou nulos não precisam mais ficar nos centros de quarentena. Não é mais necessário apresentar um teste negativo para usar o transporte público nem para fazer voos domésticos. E os lockdowns cobrindo cidades inteiras foram banidos. Mesmo assim, os bloqueios em prédios considerados como “área de risco” seguem. As quarentenas domésticas para casos positivos também. Além disso, quem chega do exterior ainda precisa ficar um mínimo de 10 dias em quarentena.

Mas por que a China continua com medidas firmes contra a Covid, enquanto o resto do mundo já abandonou a maioria delas? Só Xi Jinping e seus ministros poderiam responder com certeza. Mas há quatro hipóteses.

Primeira: as vacinas. Segundo os dados oficiais, cerca de 90% da população chinesa está vacinada. Entre os idosos acima de 80 anos, só 65% – mas alcançar os 35% restantes seria bem mais fácil e tranquilo do que continuar controlando toda a sociedade.

O problema é que até hoje a China não tem vacinas de mRNA: a empresa chinesa Walwax Biotech está desenvolvendo uma do tipo, mas ela ainda não foi aprovada. Por questões geopolíticas, o país não vai comprar imunizantes dos EUA.

Então, por enquanto, ele tem se virado com duas vacinas de vírus inativado, a Coronavac e a Covilo, e uma de vetor viral (mesmo princípio da vacina da AstraZeneca), a Convidecia. Elas têm seu valor – mas não protegem tanto quanto as vacinas de mRNA. E as autoridades chinesas podem estar levando isso em conta.

O segundo motivo é o chamado “débito imunológico”. Quando você isola as pessoas, impede a circulação de vírus entre elas. O objetivo é esse mesmo, afinal. Só que isso também gera um represamento – já que, como o vírus não circula, as pessoas não vão sendo infectadas e criando imunidade a ele (ou ficando doentes e morrendo).

A China não teve as grandes ondas de casos e óbitos que o resto do mundo já enfrentou. Ainda não “pagou o preço” da Covid. Se ela liberar tudo agora, poderá ter uma avalanche de casos – e, mesmo com as vacinas, mortes.

A população da China é gigantesca, o que potencializa esse efeito. Se o Sars-CoV-2 matar 0,1% dos infectados (como na Nova Zelândia e na Coreia do Sul, os dois países em que a Covid tem menor letalidade no mundo hoje (1)), e metade dos chineses for infectada, o país terá 700 mil vítimas fatais – a mesma quantidade que o Brasil acumulou ao longo da pandemia (incluindo o período mais crítico, antes das vacinas).

Para piorar, a China tem poucos leitos de UTI: são 4 a cada 100 mil habitantes, bem menos que os EUA (34) ou mesmo o Brasil (21).

Também há um fator político. A população chinesa aceitou os lockdowns e demais medidas sanitárias porque foi convencida de que são necessários.

Se o governo desiste agora, e adota uma postura parecida com a ocidental, haverá uma alta de casos. E as pessoas poderão pensar: então por que nos fizeram sofrer tanto nos últimos anos? As autoridades precisariam de algum motivo, ou no mínimo um pretexto convincente, para justificar uma guinada de abertura. Mas esse elemento ainda não existe.

A última hipótese é a mais perturbadora, porque também diz respeito à população dos demais países. Talvez as autoridades chinesas continuem a lutar tão duramente contra a Covid porque temam os efeitos da doença no futuro.

Existe a chamada Covid longa (que atinge em média 10% dos infectados, metade deles de forma grave), que pode deixar sequelas cardiovasculares e neurológicas.

Mas também há outro risco, ainda mais sinistro: nos últimos anos, alguns estudos encontraram indícios de que a doença pode enfraquecer o sistema imunológico.

Um desses trabalhos, publicado por cientistas de três universidades inglesas (2), constatou que, seis meses após a Covid, pessoas curadas da doença apresentavam alterações na sua população de células T (cuja função é matar células infectadas e regular a resposta imunológica do organismo), o que poderia “afetar a imunidade a longo prazo”.

Os pesquisadores só acompanharam pessoas que tiveram Covid grave, e chegaram a ser internadas.

Mas um segundo trabalho, que avaliou casos leves e moderados da doença, também encontrou disfunções imunológicas (3): oito meses após a infecção, os indivíduos analisados tinham baixos níveis de células B e T do tipo naive (capazes de enfrentar patógenos “novos”, ou seja, que a pessoa nunca pegou).

Além disso, o estudo detectou sinais da chamada “exaustão das células T”, em que elas vão perdendo a capacidade de combater infecções. Em se confirmando, esse fenômeno poderá trazer surpresas muito ruins nos próximos anos – um risco que as autoridades chinesas talvez não aceitem.

Com suas restrições sanitárias, a China parece desconectada da realidade do resto do mundo. Mas não tomar nenhuma medida contra o Sars-CoV-2, e agir como se a pandemia tivesse acabado (como boa parte do Ocidente faz), também não é realista.

Os efeitos de longo prazo da Covid ainda são incertos, só vamos conhecê-los com o tempo. Talvez haja mais coisas entre o céu e a Terra, como escreveu Shakespeare, do que supõe nossa vã filosofia.

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