Desde que militares deram um golpe de Estado no Níger, as cores da bandeira da Rússia vêm sendo vistas com frequência em ruas de cidades do país, em uma forte indicação de uma mudança na preferência por aliados internacionais em uma nação que por muito tempo viveu sob a influência da França.
O presidente deposto, Mohamed Bazoum, era um grande aliado do Ocidente, mas a junta militar que tomou o poder vem travando uma guerra de palavras com potências ocidentais, que lutam para manter seu domínio não só no Níger, mas em vários países africanos.
Tudo acontece em um momento em que cresce a presença russa no continente — com o aumento dos investimentos e apoio militar por parte de Moscou, além da participação cada vez mais frequente de mercenários do Grupo Wagner em conflitos locais.
O Ocidente, em especial os EUA, acusam o governo de Vladimir Putin de interferir para descarrilar a democracia de algumas nações na África, ao mesmo tempo em que busca aliados para sua posição na guerra da Ucrânia.
Já Moscou rejeita as alegações e insiste na ideia de que suas relações com o continente africano prezam pela “estabilidade, confiança e boa vontade”.
“Inalterado permanece nosso respeito pela soberania dos Estados africanos, suas tradições e valores, seu desejo de determinar independentemente seu próprio destino e construir livremente relacionamentos com parceiros”, escreveu Putin em um comunicado publicado em julho deste ano por ocasião da cúpula Rússia-África, que reuniu diversas lideranças em São Petersburgo.
Para o pesquisador nigeriano Ebenezer Obadare, do think tank Council on Foreign Relations (CFR), a disputa de poder travada entre Rússia e Ocidente na África é mais um capítulo da rivalidade entre esses dois polos de poder, acirrada especialmente no último ano por conta da invasão à Ucrânia.
“O que a Rússia quer na África é o que os países ocidentais também querem ali: influência diplomática, influência na economia e política, projeção de seu poder e influência”, diz. “Não há intenções altruístas, apenas política.”
Bases militares e mercenários
Segundo os especialistas consultados pela BBC News Brasil, a atuação de ambos os lados pode ser percebida principalmente em termos de envio de ajuda e presença militar e investimentos econômicos, mas também por meio de propaganda e influência cultural.
Segundo documentos obtidos pelo site The Intercept, em 2019 os Estados Unidos possuíam 29 bases localizadas em 15 países ou territórios do continente africano.
Outra força com grande presença é a França. O país europeu, que no passado colonizou territórios onde hoje ficam Argélia, Senegal, Chade, Mali, Benin, Sudão, Gabão, Tunísia, Níger, Congo, Camarões e Costa do Marfim, mantém bases no Djibouti, Gabão, Senegal e Costa do Marfim.
Tropas do Reino Unido também estão presentes em países como Djibouti, Malawi, Nigéria, Serra Leoa, Somália e Quênia. Neste último, o governo britânico mantém um centro de treinamento permanente, onde são realizados exercícios militares anualmente.
“No caso específico dos Estados Unidos e da França, há um grande interesse em combater o terrorismo e a insurgência islâmica. Eles estão envolvidos em esforços para fornecer treinamento, apoio material e moral para os militares de diferentes países africanos”, explica Ebenezer Obadare.
A Operação Barkhane foi uma das últimas grandes operações anti-insurgência realizadas pela França no continente. Ela abrangeu toda a região do Sahel, mas foi suspensa após o golpe militar de maio de 2021 no Mali, quando o presidente interino Bah Ndaw e o primeiro-ministro Moctar Ouane foram presos e depostos.
Desde então, a junta que tomou o poder vem se aproximando cada vez mais dos mercenários do Grupo Wagner. Acredita-se que o grupo russo tenha agora mil soldados no país, embora os militares neguem sua presença.
Tatiana Smirnova, pesquisadora russa da Universidade do Quebec em Montreal e especialista em política do Sahel, explica que a presença da organização paramilitar é uma das principais formas do Kremlin expandir sua presença não só no Mali, como em diversos outros países do continente.
“A Rússia é um dos maiores fornecedores de armas para a África, em especial Egito e Argélia. Mas além dessa cooperação formal em segurança, há a atuação do Grupo Wagner e de outras companhias militares privadas”, diz Smirnova.
Além do Mali, o Wagner também é bastante ativo na República Centro-Africana, na Líbia, em Moçambique, no Chade e no Sudão. Mais recentemente, o governo dos Estados Unidos acusou o grupo paramilitar de “tirar proveito” da instabilidade instalada no Níger após o golpe militar.
Os laços entre os mercenários, o Kremlin e forças políticas locais são difíceis de serem traçados. No entanto, segundo analistas, desde que o líder da organização, Yevgeny Prigozhin, convocou um levante contra o Exército russo, ficou cada vez mais difícil negar essas conexões.
“Agora podemos dizer com confiança que o Grupo Wagner é apoiado e financiado por Moscou”, diz Ebenezer Obadare, do Council on Foreign Relations (CFR).
Instabilidade política e riqueza mineral
A disputa por influência tem se manifestado de forma mais tensa no Sahel, uma região de nove países que passa por um longo período de instabilidade e violência, mas também atrai por suas riquezas naturais.
A proliferação de organizações terroristas e outros grupos armados não-estatais se soma a sucessivas crises políticas deflagradas nesta vasta faixa árida ao sul do deserto do Saara, que vai desde o Oceano Atlântico a oeste até o Mar Vermelho a leste.
Além dos golpes em Mali e no Níger, militares assumiram o poder em circunstâncias semelhantes entre 2021 e 2022 em Burkina Faso, no Chade e na Guiné (que tecnicamente não integra o Sahel, mas faz fronteira com Mali e o Senegal).
A interferência de potências ocidentais — e, mais recentemente, da Rússia — nesses conflitos têm sido constante.
As circunstâncias cada vez mais complexas incorporadas por desafios como a crise climática, a pobreza e a insegurança alimentar também fazem com que a região se torne um foco de intervenção internacional.
Segundo analistas, no entanto, recursos naturais abundantes como petróleo e minerais são um ponto importante. Embora não seja tão proeminente quanto em outras regiões da África, o Sahel possui valiosos depósitos de urânio, calcário e fosfato.
“Países como os EUA, França, Coreia do Sul e outros de repente passaram a nutrir um grande interesse pelo Níger recentemente. É um país pobre, mas que tem urânio”, explica Obadare.
Já Moscou tem a Guiné — o segundo maior produtor mundial de bauxita e dona de ricas reservas de minério de ferro, ouro e diamante — como destino estratégico de investimentos.
“A bauxita constitui uma fonte muito importante de importações para a Rússia”, diz Tatiana Smirnova.
Ao mesmo tempo, com o isolamento da Rússia promovido pelas sanções impostas pelo Ocidente após a invasão da Ucrânia, o Kremlin tem constantemente buscado parceiros comerciais em novos mercados.
“A Rússia também está desenvolvendo suas políticas em termos de controle de fontes de energia, como petróleo e energia nuclear, ao redor do mundo. Todas essas preocupações econômicas, somadas à geopolítica, fazem da África uma das prioridades russas no momento”, afirma.
Segundo a especialista, prova disso é a mais recente atualização dos rumos da política externa russa, publicada em março deste ano, na qual pela primeira vez em muitos anos há um destaque para a cooperação com África.
Em seu discurso durante a cúpula Rússia-África em São Petersburgo, Putin também reafirmou sua promessa de manter o fornecimento estável de grãos e outros produtos agrícolas para o continente após a retirada de um acordo que permite embarques de grãos da Ucrânia.
A retirada de Moscou da Iniciativa de Grãos do Mar Negro alimentou as preocupações de uma crise alimentar global. O mandatário, no entanto, garantiu que Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, Eritreia e República Centro-Africana receberão cada um de 25.000 a 50.000 toneladas de grãos russos nos próximos três a quatro meses.
Desinformação e ressentimento histórico
Mas em meio a demonstrações de amizade e apoio a países da região, as trocas de acusações entre Moscou e o Ocidente sobre tentativas de ingerência na África são constantes.
Washington, especialmente, vem usando cada vez mais seus recursos diplomáticos para apontar a existência de campanhas russas para “minar a democracia” no continente.
Segundo um relatório publicado pelo Centro Africano de Estudos Estratégicos, do Departamento de Defesa dos EUA e financiado pelo Congresso americano, a Rússia tem usado sua influência para deteriorar o ambiente democrática na região como forma de “normalização do autoritarismo no exterior” para validar suas práticas dentro de casa.
Ainda segundo o estudo, essa interferência se dá tanto por meio de canais oficiais, como o bloqueio de resoluções da ONU que condenam os abusos de direitos humanos dos regimes africanos ou apontam fraudes eleitorais, como por meios irregulares, com campanhas de desinformação, interferência eleitoral e o Grupo Wagner.
De acordo com uma reportagem da Equipe Global de Desinformação da BBC, a campanha para expansão de influência em algumas ex-colônias francesas na África é comandada pela chamada de Russosphère (Esfera Russa, em tradução livre), grupos de ativistas que promovem ideias antiocidentais e pró-Kremlin em diferentes redes sociais.
Moscou, por sua vez, vem insistindo na ideia de que sua relação com as nações africanas é construída em prol de uma nova ordem mundial multipolar “mais justa e democrática”.
Em seus discursos, Putin afirma ainda que “têm consistentemente apoiado os povos africanos em sua luta pela libertação da opressão colonial”, fornecendo assistência para o fortalecimento do Estado, da soberania e da capacidade defensiva dos países.
Para Tatiana Smirnova, a propaganda russa encontrou terreno fértil na África em meio a décadas de insatisfação com a intervenção militar e diplomática de países como França, Reino Unido e Estados Unidos.
“O ressentimento em relação ao Ocidente já existia antes da extensa propagação da influência russa na África”, diz a pesquisadora.
A popularidade da Rússia também remonta aos tempos soviéticos, quando o socialismo da URSS influenciou as lutas nacionalistas que levaram à independência de muitas nações africanas no século 19, e ao fato de o país não estar entre as potências coloniais.
Segundo Smirnova, o ressentimento em relação aos antigos colonizadores está atualmente acompanhado por uma nostalgia em relação aos regimes militares, impulsionada especialmente por um cansaço da forma como as elites políticas têm distribuído os recursos políticos e sociais entre a população.
“Há um encontro entre essas duas tendências e, de certa forma, Putin e seu governo incorporam tudo isso.”