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domingo 30 de junho de 2024 às 09:27h

Plano Real: em 30 anos, controle da inflação mudou o cotidiano dos brasileiros

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Maria Aparecida Brum nasceu em 1957. Conviveu com oito moedas. Sua neta Ana Letícia Oliveira Noronha, com quem mora na Zona Oeste do Rio, nasceu em 2002 e só conheceu o real em seus 22 anos.

Na véspera do 30º aniversário do Plano Real — que criou a atual moeda e reduziu a inflação de 4.922,6% em 12 meses em junho de 1994 para menos de 10% em dois anos — a diferença segundo reportagem de Mayra Castro e Cássia Almeida, do O Globo, entre a experiência da avó e a da neta com o dinheiro mostra como esse feito mudou o cotidiano dos brasileiros nas três últimas décadas.

Só quem nasceu há mais de 40 anos tem ainda viva a memória inflacionária. Há hoje no país gerações inteiras que não têm ideia do que é a vida sob a hiperinflação. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumula alta de 3,93% nos 12 meses até maio.

— Geralmente eu recebia meu salário e já separava para hortifrúti, açougue, o básico. Ia no mercado fazer as compras do mês, e os preços mudavam muito, do dia para a noite. Se tinha uma promoção e dava para comprar mais, já deixava reservado. Era horrível — conta Cida, como é chamada, sobre o dia a dia com uma moeda que perdia valor rapidamente.

As cédulas ainda são essenciais para Cida, mas Letícia só carrega cartões. E conta com o Pix no celular para fazer pagamentos, até mesmo no bandejão da UFRJ, onde cursa Letras. O restaurante universitário passou a aceitar Pix, e o dinheiro saiu de vez da carteira dela.

A estabilidade favoreceu a bancarização. Hoje, mais de 80% da população têm relacionamento com alguma instituição financeira. No início dos anos 2000, cerca de 30% dos municípios brasileiros sequer tinham agência bancária.

— Se acontece alguma emergência, ela fica na mão — diz Cida, criticando a neta. — Eu ando sempre com dinheiro, toda vez. Hoje em dia é tudo Pix. Eu nem sei fazer.

A avó se lembra da falta de previsibilidade no início dos anos 1990, quando vivia preocupada em fechar o orçamento do mês trabalhando como camelô para criar sozinha os três filhos pequenos.

Ela conta para a neta como era difícil a vida com poucos recursos corroídos pela inflação. Naquela época, com preços que subiam cerca de 40% ao mês, o poder de compra caía pela metade no fim do mês.

— Com inflação de 40% ao mês, é como se o cidadão sofresse derrotas todos os meses — resume Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

Geladeira sempre cheia

Com o controle da inflação, a pobreza caiu forte e de forma permanente, eliminando o estrago no poder aquisitivo dos mais pobres que não tinham como proteger seu dinheiro nas contas remuneradas que os bancos ofereciam na época, lembra Neri.

O economista do Insper, Naercio Menezes Filho, calculou o peso da inflação na educação das crianças. Se o nascimento fosse no início do mês, a escolaridade era maior:

— A hiperinflação prejudicava principalmente os mais pobres. Em 1993, as mães que davam à luz no fim do mês estavam muito estressadas, já não tinham dinheiro para nada. A hiperinflação tinha comido todo o dinheiro. Havia maior probabilidade de depressão pós-parto, por exemplo. O efeito era muito forte.

Cida, que trabalha como cozinheira sem carteira assinada, não faz mais compras de mês, mas mostra a sua geladeira sempre cheia. Deixa claro que não deixa faltar nada para a neta. É um hábito que ficou da época da inflação, quando costumava comprar os principais mantimentos no início do mês para driblar as remarcações.

Ela lembra de estocar itens para escapar de reajustes diárias, filas e desabastecimentos. Era a rotina nos lares no país da inflação. Sempre que tinham condições, as famílias estocavam. O freezer ganhou espaço nos lares por permitir que se guardasse carne também.

— Teve época que até para comprar feijão tinha que fazer fila. Fila quilométrica, porque faltava. A gente estocava feijão, óleo, arroz, açúcar, café.

Essa realidade Letícia só conhece das historias que ouve da mãe e da avó.

— Eu ouvi minha mãe falando que às vezes um mesmo produto mudava de preço no mesmo dia. Se deixar, minha avó vai no mercado toda semana, às vezes mais de uma vez. Quando vê que as coisas estão acabando, já vai comprar. Ela gosta de ir em vários mercados, comparar preço — conta a jovem.

Esperança frustrada

A estabilidade de preços não veio facilmente para Cida. Ela viu muitos pacotes de medidas como o Plano Cruzado, que provocou uma euforia no país em 1986 com o congelamento dos preços e alta do Produto Interno Bruto (PIB) de quase 8%. Mas foi o prenúncio do desabastecimento.

Consumidores andavam com as tabelas de preços da extinta Sunab na mão para fiscalizar se o comércio não estava remarcando. Eram os chamados “fiscais” do então presidente José Sarney. Mas o plano fracassou, assim como os seguintes. E o cotidiano voltava a ser engolido pelo caos inflacionário.

Armando Castelar, economista da FGV, lembra de situações inusitadas como a de trabalhadores de uma empresa no interior do São Paulo que pediram que os salários fossem pagos em dias aleatórios:

— Como os supermercados sabiam a data de pagamento, os preços subiam na véspera. Olha a quantidade de tempo e energia que as pessoas gastavam para lidar com esse tipo de problema.

Sem a corrosão da inflação, frango e iogurte se tornaram logo símbolos do Plano Real, pois a folga no orçamento passou a permitir que entrassem com mais frequência na cesta de compras do brasileiro. Antes, só cabia o básico:

—Às vezes tinha um biscoitinho e eu falava (para os filhos): “vê se dura um pouquinho”, senão comiam tudo de uma vez. Quando veio o real, dava a impressão de que as coisas estavam mais baratas. Uma nota de R$ 1 era muitos cruzeiros. Eu tinha menos dinheiro na mão, e ele valia mais — relembra Cida.

Compras a prazo

Sem inflação, ficou mais fácil se planejar para o consumo. Depois do real, houve uma explosão nas vendas de bens duráveis no Brasil, reflexo do crescimento da economia nos primeiros anos da nova moeda.

O PIB avançou 5,9% em 1994, favorecendo a eleição de Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Fazenda de Itamar Franco responsável pelo Plano Real. No primeiro ano do governo dele, em 1995, o salário mínimo foi reajustado em 42,9%. Sem hiperinflação para corroer rapidamente o ganho, o consumo aumentou.

Cida lembra da dificuldade para comprar eletrodomésticos antes do real. As prestações subiam muito com a inflação. Financiamento da casa própria ou de um automóvel, ela nunca chegou a fazer.

— Não tinha como comprar coisas e pagar em duas vezes sem juros como hoje. Não tinha mercado que parcelasse. Hoje ainda não gosto de fazer isso, mas as pessoas parcelam bem mais. Letícia parcela tudo — entrega a avó.

A neta diz aproveitar as facilidades do cartão de crédito no balcão da farmácia ou nas compras pela internet:

— Acabei de comprar um tênis e um notebook parcelados. Mas evito juros. Tento parcelar em até quantas vezes puder sem juros.

A universitária, que pretende ser professora no ensino público, já pensa em planos para quando deve se aposentar. Já a avó, que ainda trabalha na informalidade, sempre teve o foco no curto prazo.

— Hoje em dia eu poderia estar aposentada, mas eu trabalhava sem carteira assinada e o dinheiro não dava para ficar pagando INSS. Não pensava nisso. Aí foram passando os anos e eu não fiz — lamenta Cida. — Tinha que ralar muito para poder ter uma vida normal, comer, pagar aluguel.

Duas Gerações, duas realidades

Cida, 66 anos

  • Quando nasceu, circulava o cruzeiro. Viu 8 trocas de moeda
  • Nunca teve carteira assinada e sempre trabalhou para fechar as contas do mês
  • Estocava óleo e fazia fila para comprar feijão na hiperinflação
  • Gosta de geladeira cheia. Aderiu ao supermercado semanal, mas lembra do sufoco das compras de mês, quando não sobrava para o supérfluo
  • Tem cartão, mas não sai sem dinheiro vivo. Pix? Não usa
  • Evita parcelar compras. Lembra de quando era difícil financiar e sempre busca promoções

Letícia, 22 anos

  • Quando nasceu, o real já era “veterano”: tinha 8 anos
  • Quer ser professora e já tem planos para a aposentadoria
  • Nunca viu máquina remarcadora de preço. Tabela da Sunab? Oi?
  • Planeja compras futuras sem pensar na variação do preço
  • Vai ao supermercado uma vez por semana e sempre se dá direito a algum “mimo”
  • Nem tem dinheiro na carteira. Só paga com Pix ou cartão
  • Parcela tudo, até mesmo “blusinha” do e-commerce

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