Num ano em que o déficit fiscal zero foi acordado no orçamento e é apontado como um compromisso crucial pelos investidores e economistas do mercado financeiro, o governo não dá sinais de que irá na direção de conter as despesas para atingir a meta. A busca por receitas para atingir o déficit primário zero e avanços na reforma tributária estão no topo da pauta legislativa do governo para o primeiro semestre, segundo fontes do Palácio do Planalto.
Há uma expectativa no Congresso também por iniciativas para corte de gastos públicos, que poderiam ser apresentadas por meio de uma versão mais enxuta da reforma administrativa. No Planalto, no entanto, esse tipo de medida não é citado entre as prioridades. Por outro lado, a pauta econômica, assim como a regulação das redes e da inteligência artificial com vistas às eleições municipais, coincide com as prioridades da cúpula do Congresso para os próximos meses.
No campo das receitas, o governo federal ainda calcula que são necessárias medidas para atingir a meta imposta pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em meio às conversas sobre a medida provisória (MP) que trata da reoneração da folha de pagamentos.
“Este ano é delicado, decisivo, de teste, o primeiro de vigência completa do arcabouço fiscal”, diz Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão de monitoramento das contas públicas ligado ao Senado. As informações são de Fabio Murakawa, Julia Lindner, Marcelo Ribeiro, Gabriela Pereira e Estevão Taiar, do jornal Valor.
A IFI projeta de maneira preliminar déficit primário entre 0,8% e 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2024, algo entre R$ 100 bilhões e R$ 110 bilhões. Mas, segundo ele, somente por volta de abril será possível ter ideia mais clara do impacto fiscal de medidas propostas pelo governo federal e aprovadas pelo Congresso em 2023. Entre elas, estão mudanças na tributação de investimentos estaduais, taxação de offshores e fundos exclusivos e alterações no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).
No fim do ano passado, o governo também empreendeu grande esforço para aprovar a Medida Provisória 1185, que alterou a tributação de subvenções estaduais. “Não há projeções seguras para as receitas dessas medidas”, diz Pestana.
Câmara deve analisar medidas para ampliar a arrecadação
Mas também será preciso lidar com pressões de despesas, segundo ele. Exemplos são o aumento real do salário mínimo e a retomada das vinculações dos gastos com saúde e educação.
Em outra frente, o governo espera concluir a regulamentação da primeira parte da reforma tributária aprovada no ano passado, com impacto sobre o consumo. Mas quer avançar até julho na tramitação da segunda parte da reforma, que versará sobre a tributação da renda. A expectativa, porém, é que a conclusão desse trecho seja possível apenas após as eleições municipais, em novembro.
Também estão sob análise medidas de expansão do crédito, uma marca do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus três mandatos. Elas devem contemplar uma segunda versão do Desenrola e o empréstimo consignado para trabalhadores celetistas do setor privado. O governo deve insistir ainda na regulação do trabalho em aplicativos, promessa de campanha do presidente Lula.
O Planalto também solicitou aos ministérios que enviem suas pautas prioritárias para este semestre. As respostas das 38 diferentes pastas devem chegar em cerca de duas semanas. A partir daí, será feita uma triagem pelo núcleo do governo para definir que propostas serão de fato enviadas, quando e o esforço que será feito para aprová-las.
Esse plano deve ter, pelo menos em parte, boa receptividade no Congresso. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), trabalha com medidas econômicas, que, na visão de aliados, já estão bem encaminhadas. Ele ainda espera do governo propostas para ampliar a arrecadação, manter empregos e reduzir a taxa de juros.
Marcelo Fonseca, economista-chefe da Reag Investimentos, projeta déficit primário de aproximadamente R$ 70 bilhões para 2024. Ele critica justamente o fato de o debate sobre o ajuste pelo lado das despesas estar “totalmente interditado”.
“É um ajuste que muito provavelmente não vai funcionar”, diz, destacando que calcula que a União receberá neste ano aproximadamente R$ 60 bilhões em receitas extraordinárias, que não devem se repetir. “Teremos uma dinâmica de elevação da dívida pública, com efeito colateral ruim sobre o crescimento econômico. Há grande dúvida a respeito dos efeitos desse aumento de carga brutal sobre a saúde das empresas e, portanto, sobre o crescimento.”
Dois outros eixos pensados pelo presidente do Senado envolvem medidas mais políticas, como o fim da reeleição para o Executivo e a fixação de mandatos para ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Assim como ocorreu em 2023, Lira dará prioridade à agenda econômica, com atenção especial para as leis de regulamentação da reforma tributária e a reforma tributária da renda.
Para ele, é possível que ambos os projetos tramitem paralelamente, sem a necessidade de focar medida por medida. Para isso, deve-se designar um relator com conhecimento no tema para cada um dos textos.
Sobre a reforma administrativa, entre os deputados há o sentimento de sempre. “Sem o governo no barco, é muito difícil”, diz uma fonte.
Na avaliação de interlocutores do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), caso encontrem uma solução intermediária entre o que o Congresso defende e o que o governo aceita, seria possível tentar colocar o tema em discussão. A aprovação desse tipo de medida, porém, ainda é considerada improvável, por causa das eleições.
Depois de dificuldades no ano anterior, o projeto de lei das “fake news” pode ganhar nova chance de tramitação. Tudo depende de ajustes no texto a serem feitos pelo relator, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP).
Às vésperas do recesso parlamentar, Lira mostrou ainda preocupação com a questão da inteligência artificial e de como essa ferramenta poderá impactar as eleições municipais. Tanto o Planalto quanto o presidente da Câmara acreditam que algo deve ser feito, e existem também projetos sobre o assunto tramitando no Senado.
A ideia do presidente da Câmara é investir em uma proposta que estabeleça regras que sejam gerais, e não voltadas apenas para a eleição. O entendimento é que, ao estabelecer uma regulamentação mais genérica, as regras também serviriam para a disputa eleitoral.
No entanto, especialistas apontam que a mobilização dos parlamentares para as eleições municipais limitam o tempo do governo para aprovar suas pautas prioritárias. Além disso, o Congresso tem uma oposição organizada, que possui entre seus objetivos reforçar as agendas de costumes.
De acordo com André César, sócio da Hold Assessoria Legislativa, a falta de tempo causada pelas eleições colocará Lula na posição desconfortável de ter que selecionar as agendas mais caras para o governo. “Se o governo quiser avançar com tudo, não vai ter nada”, alerta.
Para Paulo Baía, cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), matérias como reforma tributária e regulação das redes sociais abrem muita discussão, dada a complexidade das pautas. “Sem acordo, nada anda”, diz. Baía ressalta ainda que a polarização política estará presente nas eleições deste ano, o que pode afetar o andamento das matérias.