No dia 7 de novembro, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram derrubar o sigilo de alguns gastos do presidente da República, inclusive aqueles feitos por meio de cartão corporativo.
Mas quase um mês depois da decisão do Supremo, nada mudou: parte relevante dos gastos da Presidência e da vice-presidência com o cartão continuam sob sigilo.
Pelo menos até esta quarta-feira (04), o Portal da Transparência mantinha em segredo a forma como foram gastos R$ 9,8 milhões do cartão corporativo na Presidência da República e em órgãos como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Na vice-presidência, outros R$ 468,5 mil continuavam em sigilo.
Procurado pela reportagem, o STF reafirmou que a decisão está em vigor desde o dia 11 de novembro — quando a ata do julgamento foi publicada. Além disso, o Planalto confirmou que foi notificado da decisão do Supremo no dia 20 de novembro.
Semanas atrás, Jair Bolsonaro foi alvo de um boato disseminado na internet, segundo o qual ele teria “batido o recorde” de gastos com o cartão corporativo – a informação é incorreta. Os dados disponíveis até agora no Portal da Transparência indicam que a Presidência da República gastou R$ 4,6 milhões com o cartão corporativo de janeiro a setembro, quando os dados foram atualizados pela última vez.
O valor representa o maior gasto no período desde 2014, naquele ano, a gestão de Dilma Rousseff (PT) gastou em 12 meses R$ 7,9 milhões com o cartão corporativo, em valores corrigidos pela inflação.
A Controladoria-Geral da União (CGU) é o órgão do governo federal responsável pela manutenção do Portal da Transparência – onde estão as informações sobre os gastos do cartão corporativo. À BBC News Brasil, a CGU informou na segunda-feira (02) que não tinha recebido ainda nenhuma orientação da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre como seria a divulgação das informações.
O que o STF decidiu?
A decisão do STF foi tomada em resposta a uma ação movida pelo antigo partido PPS (hoje rebatizado de Cidadania) em 2008 — portanto, durante o mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem o antigo PPS fazia oposição, na época. Parte dos gastos com o cartão também foram mantidos em sigilo por governos anteriores.
O PPS questionava se era constitucional, ou não, o artigo 86 de um decreto da época da ditadura militar, usado como justificativa para manter em sigilo certos gastos do governo — entre eles os do cartão corporativo.
O relator do caso, o ministro Edson Fachin, considerou que o trecho era inconstitucional. Concordaram com ele Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello, perfazendo seis votos a cinco.
“O Tribunal, por maioria, julgou procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental, a fim de reconhecer a incompatibilidade com o texto constitucional do art. 86 do Decreto-Lei 200/67, nos termos do voto do Relator (Fachin)”, diz a decisão do STF.
Em seu voto, Fachin não diz especificamente como as informações deveriam ser divulgadas — mas sugere que pelo menos um extrato dos gastos deve estar disponível.
“(…) no caso em pauta, a restrição ao direito à liberdade de expressão (do qual faz parte o acesso à informação pública) não pode ser feita sem subtrair da população o conhecimento, ainda que mínimo, por meio da publicação de extratos, dos recursos utilizados”, escreveu Fachin.
“É preciso observar, no entanto, que a legislação impugnada (o decreto de 1967) sequer autoriza a publicação dos extratos. A forma pela qual restringe o direito de acesso é, portanto, manifestamente inconstitucional”, continua o ministro.
Em seu voto, Fachin também reafirma que, sob a Constituição atual, a publicidade é a regra. O sigilo é a exceção, e precisa ser devidamente justificado.
Procurada pela reportagem, a Secretaria-Geral da Presidência da República disse apenas que o tema estava sendo analisado pela área técnica do órgão, mas não encaminhou uma resposta até o fechamento desta reportagem.
A Advocacia-Geral da União respondeu por telefone que estava aguardando a publicação de um acórdão do STF sobre o assunto — apesar do que disse o tribunal. O órgão também estaria aguardando a publicação dos votos dos ministros. A resposta não foi enviada por e-mail.
Não é a primeira medida contra a transparência, diz especialista
O economista Gil Castello Branco é o fundador e secretário-geral da organização Contas Abertas. Segundo ele, certos gastos do governo não devem ser divulgados — inclusive para garantir a segurança das pessoas e a efetividade do trabalho de alguns órgãos. “Todos os países do mundo impõem algum grau de sigilo sobre uma parte de seus gastos”, lembra ele.
Muitas vezes, porém, essa necessidade é usada para resguardar informações que simplesmente causariam embaraço a governantes, diz ele.
“Em todos os governos (este tipo de gasto) gerou notícias de grande repercussão. Você teve a notícia sobre pão-de-mel para os netos, na época do Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2003), uma quantidade grande de pão-de-mel; na época do (Fernando) Collor (1990-1992), veio à tona a questão dos vestidos da primeira-dama”, relembra ele. “Então, toda vez que estes gastos vêm à tona, eles causam ruído, um certo constrangimento”.
“Então, muitas vezes a questão real é mais o constrangimento que a informação pode provocar, do que a questão da segurança”, diz Castello Branco.
Castello Branco avalia ainda que a decisão do STF sobre o assunto é excessivamente vaga — a corte poderia ter dito de forma mais detalhada como as informações deveriam ser divulgadas.
Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil, lembra que esta não é a primeira vez que o governo Bolsonaro toma atitudes contrárias à transparência das informações públicas — segundo ele, elas começaram ainda em janeiro, quando o então presidente em exercício, Hamilton Mourão, baixou um decreto ampliando o número de servidores públicos com poder para colocar informações em sigilo.
O decreto alterava a Lei de Acesso à Informação (LAI) e poderia dificultar o acesso aos dados e documentos públicos — mas acabou derrubado pelo Congresso em fevereiro.
“Isso já foi um sinal, de saída, ruim. E depois foi seguido por outra ação contrária à transparência, no âmbito da Presidência (da República), que foi decretar sigilo sobre o registro das pessoas que acessam o palácio (da Alvorada, no fim de agosto)”, relembra ele.
“O acesso a este tipo de informação (das visitas ao palácio) é relevante, é de interesse público. O relacionamento do presidente com atores públicos e privados é do interesse de todos. Quem tem acesso ao presidente, em que tipo de agenda”, diz Brandão.
“E agora, essa morosidade para se adaptar à decisão do Supremo Tribunal Federal. Esperamos que isso seja algo transitório, e que já esteja sendo encaminhada uma revisão deste procedimento”, diz Brandão.
“O entendimento é de que a transparência tem que ser a regra, e o sigilo cada vez mais a exceção. Em situações excepcionais, e com razões muito bem fundamentadas. Isso tem que ser uma consciência compartilhada, um consenso social sobre o valor da transparência”, diz.