A ex-ministra do Meio Ambiente e ex-candidata à Presidência da República, Marina Silva (Rede Sustentabilidade) ficou conhecida nas últimas três décadas, principalmente, por sua militância na área ambiental. Mas desde 2014, durante as eleições presidenciais, ela passou a ser conhecida, também, por sua fé. Ela foi alvo de ataques da campanha da petista Dilma Rousseff focados no fato de ser evangélica.
Oito anos depois, empenhada em fazer parte de uma aliança para derrotar o presidente Jair Bolsonaro (PL), Marina faz um alerta. “Nós somos um país em que mais de 80% das pessoas se declaram com fé. Não se pode fazer um discurso como se todas essas pessoas fossem um risco à civilização”, diz Marina.
Em entrevista à BBC News Brasil, Marina afirma que há um “estranhamento” entre a esquerda brasileira e o eleitorado evangélico, mas que já é possível notar um aprendizado nesta relação.
Ela também faz críticas a Bolsonaro e diz que tanto ele quanto o pré-candidato à Presidência Sergio Moro “flertam” com o autoritarismo. Para ela, Bolsonaro é um candidato competitivo e que não pode ser subestimado. “Não podemos ser negacionistas como ele”, afirma.
Marina também critica a ausência da temática ambiental nos discursos dos principais pré-candidatos à Presidência da República até o momento. Segundo ela, eles não abordam o tema por acreditarem que ele não rende votos.
Apesar de afirmar que não deverá se candidatar à Palácio do Planalto, Marina deixa em aberto a possibilidade de se candidatar a outros cargos neste ano.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Os temas de meio ambiente e desenvolvimento sustentável não vêm sendo destacados pelos principais pré-candidatos à Presidência que se lançaram até o momento. Por que a senhora acha que isso está acontecendo? O ambientalismo perdeu apelo?
Marina Silva – O ambientalismo nunca teve tanto apelo no mundo e as pesquisas têm dado conta de que mais de 80% da população brasileira tem noção de que muitos dos problemas que já estamos vivendo têm a ver com as mudanças climáticas. Quase 90% da população brasileira não quer ver a Amazônia destruída.
O que eu acho que faz com que não haja essa prioridade no debate ainda não tenha se refletido no programa dos candidatos é o fato de que os candidatos continuam com uma visão desenvolvimentista que não dialoga com as necessidades do tempo presente no que concerne à transição energética, ao grave problema das mudanças climáticas e de como enfrentar o problema das desigualdades sociais.
BBC News Brasil – Não há uma contradição quando a senhora diz que nunca se falou tanto em ambientalismo, mas, por outro lado, os principais atores políticos não estão tocando no assunto?
Marina Silva – Há uma contradição e há um equívoco grave. O primeiro ponto dessa contradição é o fato de que há uma sensibilidade muito grande por parte do eleitorado, segundo as pesquisas, e os políticos não trabalham esses temas no sentido de fazer com que haja de fato um compromisso da sociedade brasileira em levar adiante essa agenda até o ponto de conseguir apoio e sustentação política para sua implementação […] No caso das lideranças políticas, elas têm aquela visão equivocada de achar que isso não vai render votos.
BBC News Brasil – Há décadas, o movimento ambientalista repete que a floresta precisa valer mais em pé do que derrubada. Apesar disso, para citar apenas um exemplo, em Xapuri, no Acre, na Reserva Extrativista Chico Mendes, vem sendo percebido um aumento significativo do desmatamento e a transformação da floresta em pasto. E isso não comprovaria que, de fato, não há formas eficientes de fazer essa floresta valer mais em pé do que derrubada?
Marina Silva – A floresta já vale mais em pé hoje do que derrubada. A floresta é um grande ativo econômico para o Brasil e para o mundo. Se você lança essa bomba de carbono na atmosfera, que equivale a dez anos de emissão do planeta inteiro, você desequilibra completamente o planeta. Olha o tamanho do prejuízo que isso causa às economias do mundo.
BBC News Brasil – Como explicar isso para o morador de Xapuri que está derrubando a floresta e trocando a cultura da seringueira pelo gado?
Marina Silva – A velha economia tem 400 anos de investimento. A nova economia não tem como prosperar, da noite para o dia, sem apoio, sendo o tempo todo desarticulada, inclusive, por mudanças na legislação.
Hoje, a Amazônia está em disputa com vários grupos que atacam a floresta de forma combinada. Você tem a concorrência do garimpo, a exploração ilegal de madeira, a criação de gado de baixa rentabilidade. Você tem um Congresso Nacional o tempo todo querendo fragilizar a legislação ambiental.
Os invasores e os criminosos ocupam essas áreas e depois o Congresso as regulariza e, em seguida, elas são vendidas para grandes plantadores de grãos. O grande agronegócio diz que não se envolve com a grilagem de terras, mas é parte da cadeia.
BBC News Brasil – A senhora lançou a Rede Sustentabilidade como uma alternativa política dentro do cenário brasileiro. Mas o partido corre o risco de não passar pela cláusula de barreira nas eleições deste ano. Por que a Rede falhou em se consolidar como uma força política no Brasil?
Marina Silva – Nós temos apenas nove anos de idade e fomos criados já no bombardeio dos partidos tradicionais que fizeram de tudo para nos inviabilizar em 2013 para evitar que eu pudesse sair candidata em 2014. Em 2013, a rede não deixou de ser registrada (como partido) porque não tínhamos os requerimentos legais, mas por uma deliberação política de não permitir que fôssemos criados porque, naquele momento, eu tinha 26% das intenções de voto.
Diante da impossibilidade de sair candidata pela Rede, eu apoiei o (ex-governador de Pernambuco) Eduardo Campos. Infelizmente nós o perdemos naquela tragédia (Campos morreu em um acidente aéreo no dia 13 de agosto de 2014). A eleição de 2014 foi violenta, usou das fake news, que foram inauguradas aqui no Brasil na campanha da presidente Dilma (Rousseff) com o (marqueteiro) João Santana […] Então a Rede nasce já nesse ambiente de muito tensionamento contra a sua afirmação.
BBC News Brasil – Da forma como a senhora coloca, as causas da não-consolidação da Rede são externas. A senhora teria feito algo diferente ao longo desses anos?
Marina Silva – Fazer o diagnóstico com base na realidade dos fatos que não podem ser reescritos não significa que você esteja apenas colocando a responsabilidade nos outros. É que que não dá para dizer simplesmente que a Rede falhou e esquecer todos esses elementos que têm papel fundamental no processo das dificuldades que encontramos em relação ao crescimento da Rede.
BBC News Brasil – Desde 2010, essa é a primeira eleição presidencial em que a senhora não deverá ser candidata. Por que a senhora decidiu não se candidatar à Presidência da República neste ano?
Marina Silva – Eu já dei uma contribuição por três vezes e acho que foi uma contribuição onde ficou muito claro que o tema da sustentabilidade é importante e uma referência para uma parte significativa da sociedade.
BBC News Brasil – A senhora cogita se candidatar a outro cargo neste ano?
Marina Silva – Esse debate está posto e vem sendo levantado não só pela Rede, mas por várias pessoas. … (Existe a ideia) de que eu deveria (me candidatar).
BBC News Brasil – Então, a senhora não descarta se candidatar a outros cargos neste ano?
Marina Silva – Isso está colocado dentro desse leque das avaliações que eu estou fazendo. (É preciso avaliar) qual é a natureza da minha contribuição nesse momento difícil que o Brasil está vivendo.
BBC News Brasil – A senhora vinha sendo citada como potencial candidata a vice-presidente na chapa de Ciro Gomes (PDT). A senhora aceitaria disputar as eleições como vice de Ciro Gomes?
Marina Silva – Esse é um debate que já foi esclarecido […] Quando tive conversas com o ministro Ciro Gomes, nunca tratamos disso. O próprio ex-ministro Ciro Gomes confirmou que nós sempre debatemos sobre as questões que eu acho que são relevantes para o Brasil e os caminhos de uma alternativa que não nos leve a repetir o passado e a não ter que ficarmos reféns desse presente que será um desastre para a história do Brasil.
Estou tentando contribuir num campo democrático e que não flerta com o autoritarismo como flerta Bolsonaro, como flerta (Sérgio) Moro. O que eu não acho é que se deva assinar, na questão de um projeto para o Brasil, um cheque em branco para ninguém.
BBC News Brasil – Por que a senhora diz que o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro flerta com o autoritarismo?
Marina Silva – Quando ele não cumpriu com o devido processo legal nas importantes investigações que vinham sendo feitas pela Operação Lava Jato, envolvendo empresários e políticos poderosos, e quando a sua atitude de não respeitar o devido processo legal leva à anulação dos processos, o que não significa que não houve casos gravíssimos de corrupção, isso é uma postura que eu considero antidemocrática.
Quando ele aceita ir para um governo autoritário, defensor da ditadura, defensor de tortura, de ditadores como (Augusto) Pinochet (ex-ditador do Chile) e tantos outros, isso é flertar, sim, e ser, digamos, alguém que não era inocente. E se ele fosse inocente em relação à trajetória de Bolsonaro, paciência, não serve para governar o Brasil. E se ele era consciente de tudo isso e mesmo assim foi colaborar com um governo como esse, também não serve para governar o Brasil.
BBC News Brasil – Moro argumenta que o que acabou anulando a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por exemplo, foram mudanças de posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF). A senhora acha que a população vê Sergio Moro como alguém que flerta com o autoritarismo da mesma forma que a senhora?
Marina Silva – (Imagine que) você está à frente da maior operação de combate à corrupção, e eu não nego que ela deu uma contribuição relevante. De repente, você falha em relação a tecnicalidades que depois poderão ser usadas para anular todo esse processo em função de uma militância político-judicial. Isso é um desserviço ao próprio trabalho que vinha sendo feito.
Agora, você acaba de fazer uma operação dessa magnitude, que tirou da disputa um dos principais favoritos da disputa eleitoral (em 2018, Lula não pôde disputar as eleições após ter sido condenado pela Operação Lava Jato) e você, em seguida, vai servir ao governo vitorioso. Isso é um sinal de que alguma coisa está errada.
BBC News Brasil – O PT vem tentando criar uma coalizão ampla nessas eleições e, ao que tudo indica, incluiria o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin. Como a senhora vê a presença do Geraldo Alckmin nesse campo?
Marina Silva – Eu acho que é uma forma, infelizmente velada, de fazer um diálogo com o PSDB ou com o legado do PSDB. É um contato que deveria ter sido feito antes. Eu sempre digo que um dos grandes erros da nossa reconquista democrática foi que o PSDB preferiu uma aliança com ACM (Antônio Carlos Magalhães) e não com o PT. E foi a mesma coisa com o PT que, quando ganha o governo, prefere dialogar com o (José) Sarney, Renan (Calheiros), o (Fernando) Collor, (Paulo) Maluf a dialogar com Fernando Henrique (Cardoso).
BBC News Brasil – Caso o ex-presidente Lula vença as eleições, a senhora participaria do seu governo?
Marina Silva – Eu acho que não é o momento de a gente ficar fazendo esse tipo de debate. Neste momento, nós temos que debater quais são os compromissos que os candidatos do campo democrático estão assumindo em relação ao fortalecimento da democracia.
BBC News Brasil – Quão competitivo é o presidente Jair Bolsonaro nestas eleições?
Marina Silva – Não podemos ser negacionistas como ele. Ele tem conseguido manter uma base de apoio em torno de 20% e 30% (das intenções de voto). Isso é um dado da realidade. Nós já subestimamos o Bolsonaro quando havia só o Bolsonaro. Agora que existe o bolsonarismo, não podemos subestimá-lo.
BBC News Brasil – A senhora é considerada uma evangélica progressista. Algumas pesquisas indicam que 40% do eleitorado evangélico apoia Bolsonaro. Por que o eleitorado evangélico dá tanto apoio ao presidente Bolsonaro?
Marina Silva – Não é só o evangélico, mas também há uma parte do eleitorado católico carismático que apoia o presidente Bolsonaro. As pesquisas dão 40% (a Bolsonaro), mas 60% não está apoiando e há muitos que estão apoiando outras alternativas, o que é muito bom. Bolsonaro faz a instrumentalização da fé na questão política e existem as lideranças evangélicas que também fazem isso, o que é muito ruim tanto para nós (evangélicos) quanto para a política.
Não tem nenhum problema você ter uma confissão religiosa e participar da política. Eu sou cristã evangélica, mas eu tenho como princípio a defesa do Estado laico e da não-manipulação da fé em questões de natureza política e vice-versa.
BBC News Brasil – A senhora acha que o eleitorado evangélico é alvo de preconceito da esquerda brasileira?
Marina Silva – Eu acho que durante muito tempo houve um estranhamento de ambas as partes e uma relação, muitas vezes, de “catequese”. Nem você deve, com a sua fé, fazer proselitismo nos espaços da política e nem você, com a sua visão filosófica, ideológica, deve querer levar isso para os espaços da fé. Você deve tratar as pessoas como cidadãos.
Não posso ficar com a ideia de que qualquer pessoa que tenha fé, que tenha um credo religioso, seja um atentado à ciência, à democracia, à arte, ou a qualquer coisa. Nós somos um país em que mais de 80% das pessoas se declaram com fé. Não se pode fazer um discurso como se todas essas pessoas fossem um risco à civilização. Eu acho que isso é um problema e eu vejo que começa a ter um aprendizado.
BBC News Brasil – Alguns círculos progressistas no Brasil veem o eleitorado evangélico como uma espécie de entrave para o avanço de pautas como a descriminalização das drogas e do aborto, como ocorreu recentemente na Colômbia. Na sua avaliação, essa crítica em relação ao eleitorado evangélico é correta?
Marina Silva – Você não vai encontrar a defesa do aborto, por exemplo, entre a maioria esmagadora dos católicos, no meio dos espíritas e de uma série de outros credos. O que eu acho é que o debate deve ser feito sem essa demonização por parte dos que têm um credo religioso ou não e olhar para o mérito das coisas.
Como é que a gente faz para evitar que milhares e milhares de mulheres continuem morrendo? […] Eu tenho uma posição contrária ao aborto e disse isso em todas as minhas campanhas para que as lutadoras feministas do meu país, conscientemente, fizessem a sua escolha de votar em mim ou não com base e em função dessa questão. Nunca fiz dois discursos. Há aqueles que iam para dentro das igrejas e faziam um discurso e depois, lá fora, faziam outro.
BBC News Brasil – Para finalizar, gostaria que a senhora explicasse melhor o que a faz acreditar que Bolsonaro é um candidato competitivo nas eleições de 2022.
Marina Silva – Apesar de tudo o que ele tem feito, de haver um caso grave de concussão envolvendo propina em vacinas no governo dele (o caso ainda é investigado pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal), de ficar o tempo todo atacando as instituições, de ser contra a democracia, defendendo regimes autoritários, de ficar numa posição como essa de não condenar o que a Rússia está fazendo em relação ao povo ucraniano […] apesar de tudo isso ele mantém essa base de sustentação.
E mais do que isso. Agora, você tem um campo bolsonarista de direita, extrema, e radical e grupos que levam a política para uma forma de polarização violenta. Então, não vamos fazer nenhum tipo de subestimação. Aliás, subestimar traz embutido, quando isso é feito conscientemente, uma forma de arrogância.
Quando a gente subestima porque não sabe, porque os elementos que você tem indicam que não há uma ameaça, aí você não conseguiu fazer a avaliação correta e tem que reconhecer que não fez a avaliação correta. Agora, sábios são os que aprendem com os erros dos outros. Estúpidos são os que não aprendem nem com seus próprios erros.