No Brasil, as periferias são verdadeiros berços de criatividade e diversidade cultural, pulsando com uma energia única que transcende as limitações econômicas e sociais impostas sobre elas. Nesses espaços, encontra-se uma profusão de expressões artísticas, manifestações culturais e tradições ancestrais que ecoam através das ruas, vielas e praças.
São ambientes onde a música, a dança, a gastronomia e as artes visuais se entrelaçam de maneiras surpreendentes, refletindo as histórias, os valores e os sonhos das pessoas que ali habitam. Essa riqueza incentiva não apenas enaltece o tecido cultural do país, mas também exerce um poder transformador, oferecendo uma fonte inesgotável de inspiração, resistência e resiliência para as comunidades periféricas.
Conforme a pesquisa do Data Favela 2023, se as favelas brasileiras formassem um estado, seria o terceiro maior do Brasil em população. Segundo dados, o número de favelas dobrou na última década, totalizando 13.151 no país. A renda movimentada pela população dessas comunidades também aumentou, e quebrou a barreira dos R$ 200 bilhões, R$ 12 bilhões a mais em relação ao último ano. Atualmente, são estimados 5,8 milhões de domicílios em favelas com 17,9 milhões de moradores.
Com um crescimento exponencial tanto em número quanto em renda, as favelas não podem mais ser ignoradas como meras margens da sociedade. Elas são o coração pulsante de uma força cultural e econômica significativa.
É nesse contexto de vitalidade que em Salvador, o Movimento Boca de Brasa encontra suas raízes, reconhecendo e celebrando o potencial infinito das periferias como catalisadoras de mudança e renovação em toda a sociedade brasileira. O que começou como um festival evoluiu para um movimento abrangente, enraizado na missão de promover oportunidades, visibilidade e conexões em todas as direções.
Mais do que simplesmente trazer artistas para o palco, o Boca de Brasa se propõe a abrir portas para empreendedores, líderes comunitários e jovens das periferias, oferecendo trilhas formativas que capacitam esses agentes a moldar ativamente o futuro de suas comunidades. Essa abordagem além de celebrar a diversidade cultural, também estimula o desenvolvimento de uma sociedade mais inclusiva em todos os aspectos, conforme explica Fernando Guerreiro, Presidente da Fundação Gregório de Mattos.
“Eu diria que a periferia de Salvador é um lugar muito potente com as mais diversas linguagens artísticas, com uma população extremamente criativa e organizada com movimentos e grupos muito fortes, além de iniciativas consistentes e uma identidade inquestionável. Arrisco a dizer que a grande força da cidade de Salvador está na periferia”, pontua Fernando.
Os espaços físicos do Boca de Brasa não são apenas locais de entretenimento, mas sim epicentros de atividades culturais que impulsionam o desenvolvimento humano, social e econômico das regiões onde estão inseridos. Eles fortalecem as identidades locais, estimulam o surgimento de novos grupos e coletivos, e elevam a participação de artistas e agentes culturais em instâncias de tomada de decisão.
É através desse movimento que é possível enxergar a expressão cultural das periferias e sua capacidade de gerar mudança. À medida que ele se expande, seus efeitos reverberam além dos palcos e das telas, permeando os tecidos sociais e econômicos das comunidades periféricas.
“O Movimento Boca de Brasa é um projeto muito impactante na vida dos jovens e adolescentes da periferia porque ele possibilita o aprimoramento do conhecimento artístico e dá visibilidade para os artistas desses locais. Eu sou um exemplo disso, sou de Castelo Branco, atriz desde os 15 anos, tenho minha empresa desde 2015 e na pandemia, em 2021, fiz um curso de Produção Cultural através de um dos projetos do Boca de Brasa para aprimorar meu conhecimento. Isso me fez crescer intelectualmente e promoveu a minha contratação na gestão de um dos espaços no ano seguinte ao curso”, conta Lais Almeida, produtora cultural.
Lais acrescenta que hoje, no Movimento Boca de Brasa 2024, retorna como produtora do festival através da Mil Produções. “Assim como a minha história, muitos outros jovens são transformados pelo Movimento Boca de Brasa, pois ele contribui para potencializar os artistas das periferias e pode ajudar significativamente para o crescimento desses artistas que, por muitas vezes, são invisibilizados”.
Não é só um festival, não é só um movimento; é um catalisador de esperança, oportunidade e progresso para milhões de brasileiros que há muito tempo são marginalizados. Além de mostrar o potencial das periferias, ele o alimenta, nutrindo uma narrativa de resiliência, criatividade e transformação que ressoa em todo o país.
E para que isso se mantenha é fundamental que o Brasil desenvolva e apoie projetos sociais que estejam profundamente enraizados nas realidades e necessidades periféricas. Muitas vezes, as políticas e programas sociais são concebidos de forma distante e desconectada das comunidades que pretendem servir, resultando em iniciativas que falham em abordar questões urgentes e relevantes. “O projeto Boca de Brasa quer justamente chamar atenção sobre isso, trazer essas iniciativas para o centro, para chamar atenção da mídia, das empresas, do governo, da prefeitura e do Estado. Esse é o papel do Boca de Brasa, jogar luz sobre essa força, sobre essa potência periférica”, acrescenta Fernando Guerreiro.
Portanto, é crucial que qualquer projeto social seja construído a partir de um diálogo contínuo e genuíno com os moradores das periferias, reconhecendo suas experiências, desafios e aspirações. Somente assim é possível garantir que os recursos e esforços investidos gerem um impacto significativo e sustentável, promovendo verdadeiramente a inclusão e o desenvolvimento nos ambientes mais vulneráveis.
Durante três dias, a sétima edição do Movimento Boca de Brasa, evento cultural gratuito da cidade de Salvador e que tem como objetivo enaltecer a potência da periferia, levou todos os seus polos criativos para ocupar o Quarteirão das Artes da Fundação Gregório de Mattos, no centro da cidade.
O projeto surge como uma ode à inventividade e à vitalidade das periferias, elevando-se além do seu status original de festival para abraçar uma missão mais ampla e inclusiva. O movimento agora se desdobra por diversos espaços do Quarteirão das Artes, do Centro Histórico à Barroquinha, do Teatro Gregório de Mattos ao Pátio Iyá Nassô, redefinindo os limites do que é possível quando comunidades se unem em prol da criatividade e do empreendedorismo.
Com mais de 50 horas de programação, o Boca de Brasa torna-se um verdadeiro conjunto de expressões culturais, promovendo diálogos enriquecedores e oportunidades de negócios para os participantes. Oito painéis temáticos, abordando desde a essência das periferias até parcerias estratégicas e o papel dos festivais na transformação social, contaram com a participação de mais de 40 painelistas de renome, incluindo figuras icônicas como MV Bill, representantes da CUFA, e líderes de iniciativas como a Periferia do Futuro e os Festivais Elos.
Enquanto isso, mais de 30 apresentações artísticas, incluindo shows de Quabales e Favellê, ÀTTOOXXÁ e AFROCIDADE, ecoaram pelas ruas, imbuindo o ambiente com energia e vibração. A Feira Elabore, por sua vez, foi um verdadeiro tesouro de criatividade, reunindo empreendedores locais e seus produtos, desde acessórios e moda até gastronomia, ampliando as oportunidades de mercado e fortalecendo a economia criativa da região.
Neste redemoinho de atividades, cerca de 500 profissionais – artistas, produtores, técnicos, agentes culturais e empreendedores – se uniram, criando arte, entretenimento e oportunidades tangíveis. Com mais de 160 postos de trabalho diretos criados e um público estimado em 8000 pessoas impactadas, o Movimento transcende seu propósito inicial para se tornar um agente de mudanças sociais e econômicas em larga escala.
Além disso, o reconhecimento de 40 iniciativas culturais e criativas nos cinco polos do Boca de Brasa e a inauguração de seis novos polos, fruto de parcerias estratégicas com organizações da sociedade civil e a Secretaria Municipal de Educação (SEMDEC), são testemunhos do poder de transformação que essa ação tem.
“O Movimento não apenas celebra a diversidade e a riqueza das periferias, mas também as capacita e inspira para construir um futuro mais inclusivo e vibrante. Ele cresceu e as pessoas curtiram. Uma ampliação que era projeto, passou a ser programa, depois de edital, passou para os polos criativos, tinha os festivais e virou movimento. Agora a ideia é fazer com que se transforme em políticas públicas”, finaliza Fernando Guerreiro.
A Prefeitura de Salvador, por meio da Fundação Gregório de Mattos em parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Emprego e Renda (SEMDEC), é a organizadora do Movimento Boca de Brasa. Diversos órgãos municipais, como SECULT, SEMOP, LIMPURB, Transalvador, Guarda Municipal, além de parceria com Cine Glauber Rocha, também contribuem para a realização do evento.