A proposta de emenda à Constituição (PEC) que criminaliza o porte de drogas foi aprovada pelo Senado Federal nesta terça-feira. Especialistas ouvidos pelo jornal O Globo, apontam que a votação representa um novo degrau de acirramento da tensão entre o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal (STF), que julga a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal e discute a definição de uma quantidade que diferencie usuários de traficantes.
De autoria de Rodrigo Pacheco, PEC coloca na Constituição a criminalização de posse e porte de substâncias ilícitas independentemente de quantidade. Foram 53 votos contra 9, no primeiro turno e 52 contra 9, no segundo. O texto segue agora para a Câmara dos Deputados.
O advogado constitucionalista Gustavo Sampaio aponta que a PEC traduz uma reação da maioria conservadora do Congresso à interpretação traçada pela jurisprudência do STF.
— Com a criminalização da conduta da posse de drogas sendo elevada ao patamar constitucional, a priori a questão estará pacificada, encerrando-se a validade da inovação jurisprudencial trazida pelo Supremo quando decidiu, em habeas corpus, pela inconstitucionalidade do dispositivo da Lei de drogas que considera delito a posse de entorpecente para fim de consumo pessoal — explica Sampaio.
Entretanto, o advogado destaca que a pauta pode retornar ao STF caso se entenda que a nova norma confronta cláusulas pétreas da Constituição.
— Algum representante legitimado, como o presidente da República, as Mesas Diretoras do Senado e Câmara ou um partido político com representação no Congresso, pode propor uma ação direta de inconstitucionalidade. Neste caso, o poder de decidir sobre a matéria retorna ao STF.
Diretor do JUSTA, organização que atua no campo da economia da justiça, o advogado Cristiano Maronna afirma que a aprovação da PEC não impede que o Supremo continue a analisar a pauta das drogas.
— O STF pode declarar a PEC como inconstitucional se a Corte entender que a criminalização contraria as garantias constitucionais da privacidade, intimidade e proporcionalidade — avalia.
Mudanças na lei
O texto diz que “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal, ou regulamentar, observada a distinção entre o traficante e o usuário pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.
A PEC não trata de quantidade de droga apreendida para a diferenciação entre usuário e traficante, ponto em debate na ação que trata do tema no STF.
Pesquisadora do centro de estudos de criminalidade e segurança pública da Universidade Federal de Minas Gerais, Ludmila Ribeiro avalia que o PL aprovado nesta terça representa um retrocesso na legislação de drogas.
— O texto elimina a diferenciação entre usuários e traficantes estabelecida em 2006. Acredito que ocorrerá um reforço da seletividade racial e educacional na aplicação da lei, sem oferecer melhorias na segurança pública.
A professora destaca que a mudança pode resultar em mais pessoas sendo encarceradas, especialmente as negras e pobres. O movimento contribuiria para a lotação das penitenciarias e outros problemas no sistema prisional.
Presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Paula Guljor afirma que a emenda vai na contramão de um movimento global que aponta para a “falência da guerra às drogas”.
— O movimento que ocorre no Senado é muito mais uma resposta ao posicionamento do STF do que efetivamente um cuidado com a promoção de saúde. Ao invés de trabalhar com uma perspectiva falaciosa, que o fato de ser proibido e criminalizado significa o não uso, é preciso entender que a criminalização das drogas vai restringir o acesso das pessoas que necessitam de cuidado, porque a priori estão cometendo um crime.
Votação
O governo liberou sua bancada e, segundo parlamentares, não houve articulação por parte da base para barrar a proposta, porque havia o entendimento de que a aprovação já era dada como certa, após a votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Apenas o PT orientou contra a aprovação da PEC e o MDB liberou, todos os outros partidos encaminharam a favor.
— O governo não vai orientar porque entende que é uma questão de consciência e não temos como centrar todos os partidos e não me arriscaria a ter uma posição formal de governo — afirmou o senador Jaques Wagner (PT-BA).
Entenda as duas frentes sobre o tema:
- PEC no Senado: Em resposta ao STF, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), protocolou uma proposta de emenda à Constituição que criminaliza a posse e o porte de drogas independentemente da quantidade. O texto é mais restritivo do que a lei em vigor hoje.
- Ação no Supremo: A Corte analisa um recurso com repercussão geral que discute o porte de maconha para consumo próprio. A ação envolve a ausência critérios para separação do tráfico do uso pessoal, diferenciação já prevista pela Lei Antidroga, de 2006. Há 5 votos a 3 para definir que pessoas flagradas com pequena quantidade de maconha não devem ser enquadradas como traficantes, mas ainda não há consenso sobre a quantidade mínima para diferenciar consumo próprio do tráfico.
A tramitação da PEC estava parada desde setembro do ano passado, mas voltou a ganhar força em meio à retomada do julgamento no STF sobre a descriminalização do porte de maconha — há placar de 5 a 3 a favor, mas o ministro Dias Toffoli pediu vista. Já há maioria na Corte pela definição de uma quantidade que diferencia usuários de traficantes, mas o parâmetro ainda não foi estabelecido.
A PEC de Pacheco traz uma alteração na Constituição com a previsão de um inciso no seu artigo 5º que garante os direitos fundamentais da comunidade brasileira, como o direito à vida, igualdade, liberdade, propriedade e à segurança. A proposta do presidente do Senado é incluir o seguinte inciso nesse artigo:
“A lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
— Não existe mercado legal de drogas, só o ilegal -, que vão comprar os fuzis ilegalmente; é esse dinheiro que faz com que o tráfico tenha fôlego para financiar toda a violência, os roubos, os latrocínios, os assaltos, os homicídios, os estupros. Concluo, então, pedindo aqui, mais uma vez, duas coisas: que o Supremo arquive essa ADPF 635 e que o Senado aprove essa PEC contra as drogas — afirmou o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).