Dez anos após a Operação Lava-Jato acusar de crimes políticos que receberam recursos de empresas para suas campanhas em troca de supostamente defenderem os interesses delas dentro do Congresso Nacional, Poder Executivo e de estatais, o uso de dinheiro público para bancar as eleições tornou-se norma, passando a dominar 81% do Orçamento eleitoral. E a volta ao modelo do financiamento empresarial tornou-se “tabu” entre os partidos.
Raphael Di Cunto e Julia Lindner, do jornal Valor, procuraram os 20 partidos com representação no Legislativo para saber se defendem o retorno das doações de CNPJs para as campanhas, debate que sempre ressurge diante das críticas aos altos valores repassados para o “Fundo Especial de Financiamento de Campanha”. Neste ano, o chamado “fundão” receberá R$ 4,9 bilhões, além do R$ 1 bilhão anual repassado para a “manutenção” dos partidos, mas que pode ser utilizado também nas eleições.
Dessas 20 legendas, dez defenderam abertamente o uso de dinheiro público para bancar as candidaturas. Presidente do PV, José Luiz Penna defende que o financiamento público de campanha viabiliza “de forma mais parelha e justa” a disputa entre partidos ideológicos e outros ligados ao “poderio financeiro”.
“Lutamos muito contra as loucuras do financiamento clandestino. Nenhuma chance de voltar para este passado”, diz Penna. Ele ressalta que a “democracia custa caro” e que o grande número de candidatos por eleição exige uma verba “substancial”. “Já chegamos a ter 10 mil candidatos nas eleições municipais”, argumenta.
Há também os que defendem, como o Rede Sustentabilidade, a proibição das doações de empresas e o financiamento público por “reduzir os crimes contra a administração pública, especialmente tráfico de influência, exploração de prestígio e intermediação de interesse privado”, mas se queixam dos critérios de distribuição, baseado no número de votos para a Câmara dos Deputados, deputados federais eleitos e senadores.
“O partido entende que o financiamento público das campanhas, embora mais adequado, deve ser aperfeiçoado, pois existe uma imensa discrepância entre os valores atribuídos aos partidos, impedindo a verdadeira democratização da democracia representativa”, disse o Rede em nota assinada pelos seus porta-vozes nacionais, Heloísa Helena e Wesley Diógenes.
Quatro siglas – PSDB, União Brasil, Cidadania e MDB – preferiram não opinar e disseram não ter debatido o assunto em seus diretórios nacionais. “O PSDB está sempre comprometido em cumprir as regras vigentes. Se este assunto for reintroduzido no Congresso Nacional, será objeto de debate dentro do partido”, disse o PSDB.
Outros cinco partidos não comentaram, como PSD e PL – partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, eleito com o discurso de não utilizar o “fundão”, mas que acabou aderindo junto com seus aliados na campanha de 2022.
O presidente nacional do PP, senador Ciro Nogueira (PI), disse ser a favor do financiamento privado das campanhas, mas argumentou que “não vê o menor clima na sociedade e no Parlamento para o retorno disso”. Já o presidente do Republicanos e atual vice-presidente da Câmara, deputado Marcos Pereira (SP), concordou que não há ambiente para a volta das doações de empresas, e ressaltou que, “a priori”, é favorável ao custeio das campanhas eleitorais com recursos do Orçamento.
Até o Novo, partido fundado com o discurso contrário ao uso de dinheiro público para as candidaturas e o único abertamente favorável as doações via CNPJ, se rendeu ao sistema público. Após um baque na última eleição, a legenda se reuniu em fevereiro e autorizou que seus candidatos utilizem a verba para “construir um partido mais forte” e “inclusive para evitar que as verbas públicas destinadas a partidos continuem crescendo de forma desordenada”.
Apesar dessa mudança, a sigla diz que permitir as doações por empresas “é o modelo mais justo e democrático” se for feito de forma transparente e regras claras. “O financiamento público gera distorções eleitorais, tira dinheiro público de onde é essencial e não necessariamente corresponde aos anseios da sociedade, especialmente no formato que é praticado hoje no Brasil”, disse seu presidente, Eduardo Ribeiro.
O amplo apoio dentro da classe política à utilização de dinheiro dos impostos para custeio das campanhas eleitorais não era assim tão grande. Quando o “fundão” foi criado, em 2017, o placar foi bem apertado na Câmara: 223 deputados foram a favor e 209 foram contra. Partidos como Republicanos, Cidadania, PSB e PL votaram pela rejeição do fundo, enquanto PT, PSD e DEM (hoje União Brasil) apoiaram a criação. E muitos parlamentares, pressionados pela opinião pública, ignoraram a posição de seus partidos e votaram contra.
A aprovação desse projeto foi uma reação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir, em 2015, as contribuições financeiras de empresas para as campanhas políticas. A Corte decidiu que as doações de pessoas físicas continuassem autorizadas, assim como o uso de recursos públicos pelos partidos.
Embora tenha sido finalizado no contexto da explosão de denúncias da Lava-Jato, o julgamento começou anos antes da operação. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo em 2011. A análise do caso começou em 2013 e já havia cinco votos a favor de abolir as doações via CNPJ quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista e suspendeu a decisão para até depois da eleição presidencial. O processo foi concluído em setembro de 2015, por oito votos a três.
Lutamos muito contra as loucuras do financiamento clandestino. Sem chance de voltar atrás”
— José Luiz Penna
Autor do voto vencedor e relator da ação, o ministro Luiz Fux apontou, à época, a contradição entre empresas doarem para dois candidatos que são adversários e divergem ideologicamente. “A doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano”, afirmou.
Na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso – hoje presidente do STF – concordou com Fux, mas defendeu que, se essas doações por empresas continuassem a existir, o Congresso deveria impor travas. “[A empresa] Não pode financiar os três candidatos porque, se o fizer, isso não é exercício de direito político, isso é compra de favor futuro ou achaque. Além disso, a empresa que financia não pode contratar com a administração pública porque senão o favor privado, que foi o financiamento eleitoral, vai ser pago com o dinheiro público, que é o contrato administrativo”, sustentou.
A eleição de 2016 foi a primeira sem contribuições financeiras de empresas para as campanhas. Na época, congressistas defenderam que isso seria um “teste” para mostrar o impacto de um modelo baseado principalmente em doações de pessoas físicas. A arrecadação dos candidatos a prefeito e vereador caiu substancialmente e, no ano seguinte, deputados e senadores criaram o fundo eleitoral com R$ 1,7 bilhão para usarem em suas reeleições.
Quatro anos depois, os congressistas mais do que dobraram esse valor, para R$ 4,9 bilhões, com o objetivo de que a verba ficasse semelhante ao patamar geral de gastos pré-proibição. A eleição municipal de 2024 também terá R$ 4,9 bilhões, apesar das negociações de última hora para tentar reduzir o valor ao montante utilizado na disputa municipal anterior.
“O problema é que temos levado para as campanhas eleitorais financiadas pelos recursos públicos o padrão das campanhas financiadas pelas empresas, pelas grandes corporações. Isso gera plutocracia, Parlamento e governo dos ricos, dos muito ricos”, afirmou o deputado Chico Alencar (Psol-RJ) durante a sessão do Congresso que aprovou os R$ 4,9 bilhões para o “fundão”. “É possível, sim, fazer campanha com ideias e causas pé no chão. […] Essa conta demasiada, exagerada, indefensável, depõe contra a política em geral”, criticou.
Para o advogado Cláudio Pereira de Souza Neto, um dos autores da ADI da OAB, o Supremo reconheceu a corrupção sistêmica causada pelo financiamento por empresas e os malefícios que isso causava ao país. O apoio posterior dos partidos ocorreu, na opinião dele, para que os escândalos do passado não voltem a acontecer. “Eles sabem que a sociedade não comporta mais, que o Brasil não aguenta mais uma nova operação dessas”, diz.
Souza Neto, contudo, argumenta que o sistema ainda precisa ser aperfeiçoado com mudanças no modelo de eleição de deputados e vereadores, para baratear as campanhas, e com a imposição de limite de gastos.
“O que a gente deve discutir agora é o custo das campanhas, que precisa cair. A decisão do Supremo foi muito boa, mas ainda deixou abertura para que pessoas especialmente ricas possam utilizar esses recursos para vencer as eleições, o que não é certo porque viola a igualdade”, disse, citando, como exemplo, a eleição do ex-governador de São Paulo João Doria pelo PSDB e do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), ambos milionários.