Comissões que analisam a presença de infecção hospitalar e orientam equipes médicas sobre o uso de medicamentos já identificaram cepas resistentes aos antibióticos de ponta usados no Brasil.
A luta contra um inimigo pouco conhecido e potencialmente letal levou equipes médicas mundo afora a usar um arsenal de antibióticos contra a Covid-19. O resultado dessa corrida meio no escuro para salvar vidas gerou um desafio para além da pandemia: o surgimento de novas gerações de superbactérias, resistentes aos remédios conhecidos.
Mesmo que o alvo dos antibióticos não seja um vírus, mas sim as bactérias, essas drogas foram usadas no começo da pandemia perante o grande número de pessoas que chegavam aos hospitais à beira da morte. Com o tempo, apesar das informações adquiridas sobre o coronavírus, os antibióticos continuaram a ser prescritos. Ainda hoje, esses medicamentos estão na linha de frente do combate à doença, porque muitos pacientes desenvolvem, como consequência da Covid-19, infecções pulmonares bacterianas. Essas patologias secundárias levaram muitos pacientes internados à morte. Com o surgimento da variante delta, o tempo de hospitalização aumentou, e o uso dos remédios se estendeu por períodos ainda mais longos, favorecendo o aparecimento de cepas que conseguem escapar à atuação dos medicamentos.
O médico Ricardo Monteiro, que coordena a frente anticovid no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), estabelecimento público em Brasília que é referência no atendimento de pacientes com o coronavírus, disse à RFI que a exigência de pedido médico para compra de antibiótico nas farmácias ajudou o Brasil a controlar esses microrganismos, mas a Covid-19 jogou por terra os avanços.
“A gente tinha conseguido uma melhora nessa situação de infecção hospitalar, mas com a Covid-19 ocorreu o uso desenfreado de antibióticos, até porque não se sabia como agir diante do coronavírus”, explicou o especialista. “Além disso, muitos pacientes com Covid-19 desenvolvem uma infecção secundária bacteriana e, por conta disso, houve a orientação para a prescrição de antibióticos, que em muitos casos acabaram sendo usados de forma indiscriminada”, constata o médico.
Monteiro relatou que algumas dessas drogas já não se mostram tão eficazes como eram antes da pandemia. “Um antibiótico que tinha até aqui uma efetividade muito boa era a ceftriaxona. Mas, hoje em dia, as comissões responsáveis por avaliar as contaminações hospitalares e definir protocolos para o uso de remédios nos grandes centros já apontam que há cepas que resistem à ceftriaxona”, observa Monteiro. “É um assunto delicado, que demandará muito cuidado e análise das equipes e autoridades”, destaca.
O ideal, segundo o especialista, seria recolher secreções do paciente e usar o antibiótico específico para cada caso. Mas quando o sistema está sobrecarregado, dificilmente o resultado desses exames fica pronto no tempo esperado para aplicação no paciente que está nos hospitais.
Explosão de contaminações adia cirurgias
O Brasil registra atualmente a maior média móvel de contaminações desde o início da pandemia, com cerca de 200 mil novos casos da doença dignosticados nas últimas 24 horas. Com a variante ômicron, o quadro só não é pior graças à vacinação, o que é reconhecido pelo próprio Ministério da Saúde. Em muitos hospitais, mais de 90% dos pacientes internados são pessoas que não se imunizaram ou não completaram o esquema vacinal.
Em Brasília, onde a ocupação dos leitos de UTI chegou a ser total esta semana por conta da Covid-19 e da gripe, o governador Ibaneis Rocha já discutia o retorno à normalidade de outros procedimentos de saúde, mas teve de voltar atrás.
“Há dois meses estávamos discutindo e analisando o retorno de todas as cirurgias eletivas, e agora estamos remanejando leitos para atender pacientes com a Covid-19. Mas a situação já foi pior, hoje nós temos vacinas”, disse o governador.
Não vacinados favorecem novas variantes
Os especialistas apontam que a saída é mesmo a vacinação, mas a Covid-19 também mostrou que é preciso um esforço para além das fronteiras. Num mundo globalizado, mas desigual e de culturas sanitárias diferentes, não adianta um país inteiro se vacinar se o restante não aderir ou não tiver acesso aos imunizantes.
“As pessoas que não se vacinam são o maior campo para a proliferação de novas variantes, porque o corpo delas não oferece qualquer resistência e, assim, há mais tempo para o vírus fazer as mutações. Por isso, é importante avançar ao máximo com a vacinação”, enfatiza o médico Ricardo Monteiro.
“Muitos países não têm a cultura vacinal que o Brasil tem. E será preciso romper essa barreira porque, do contrário, nós teremos muitos anos ainda de preocupação com o coronavírus”, adverte o coordenador da frente anticovid do HRAN.