A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 5% dos adultos em todo o mundo sofrem de depressão. No entanto, especialistas alertam que a crise de saúde global permanece negligenciada.
A compreensão equivocada do problema de saúde mental e a falta de recursos psicossociais e financeiros impactam na prevenção, diagnóstico e tratamento do distúrbio, com reflexos diretos na economia dos países.
Especialistas da Comissão da Associação Psiquiátrica Mundial da revista científica Lancet fazem um alerta de que o mundo não está conseguindo lidar com a persistente e cada vez mais séria crise global de depressão. Em um artigo publicado nesta última terça-feira (15), os estudiosos convocaram uma resposta de toda a sociedade para reduzir o impacto global do transtorno.
O grupo de trabalho conta com a participação de 25 especialistas, de 11 países, incluindo o Brasil, abrangendo disciplinas da neurociência à saúde global. O artigo foi elaborado a partir da consultoria de profissionais com ampla experiência em depressão.
“Tratamentos psicossociais e médicos eficazes são de difícil acesso, enquanto altos níveis de estigma ainda impedem muitas pessoas, incluindo a alta proporção de adolescentes e jovens em risco ou vivenciando depressão, de buscar a ajuda necessária para ter uma vida saudável e produtiva”, afirmou Christian Kieling, copresidente da comissão e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em um comunicado.
Os pesquisadores destacam que apesar do conhecimento adquirido nas estratégias de prevenção e tratamento da depressão, ainda existem lacunas no que diz respeito à destinação de recursos e à realização do diagnóstico de maneira oportuna.
Em países de alta renda, cerca de metade das pessoas que sofrem de depressão não são diagnosticadas ou tratadas. O índice aumenta para 80 a 90% em países de baixa e média renda, segundo o levantamento.
Além disso, a pandemia de Covid-19 criou novos desafios no enfrentamento do distúrbio. Fatores como o isolamento social, luto, incerteza, dificuldades e acesso limitado aos cuidados de saúde afetaram de forma significativa a saúde mental de milhões de pessoas em todo o mundo.
“A depressão é uma crise de saúde global que exige respostas em vários níveis. Esta Comissão oferece uma importante oportunidade de ação conjunta para transformar globalmente as abordagens de cuidados de saúde mental e prevenção”, afirma a presidente da Comissão, Helen Herrman, professora do Orygen, Centro Nacional de Excelência em Saúde Mental Juvenil, e da Universidade de Melbourne, na Austrália, em um comunicado.
Segundo Helen, além de possibilitar que milhões de pessoas se tornem mais saudáveis, o investimento na redução do impacto da depressão poderá ajudar a fortalecer as economias dos países e no avanço dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas para 2030.
Um dos autores do artigo, o pesquisador Charles Reynolds, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, afirma que a maior parte dos indivíduos com depressão tende a se recuperar com o apoio e tratamento adequados.
“Com ciência sólida, vontade política e responsabilidade compartilhada, a depressão pode ser prevenida e tratada e suas consequências potencialmente incapacitantes evitadas. Devemos capacitar as pessoas com experiência em depressão junto com famílias, profissionais, formuladores de políticas e sociedade civil para enfrentar o tsunami de necessidades não atendidas”, diz Reynolds.
Segundo o especialista, o compartilhamento de experiências contribui para reduzir o estigma sobre o distúrbio mental ao ampliar as possibilidades de ajuda e fomentar a ampliação de recursos terapêuticos para abordagens baseadas em evidências.
Desinformação prejudica enfrentamento do transtorno
Embora seja uma condição comum em todo o mundo, a depressão ainda é cercada de mitos que tornam mais difícil o enfrentamento da doença. A lista inclui equívocos comuns de que a depressão é simplesmente tristeza, um sinal de fraqueza ou restrita a certos grupos culturais.
No artigo da Lancet, os especialistas enfatizam que a depressão é uma condição de saúde distinta caracterizada por fatores como a persistência, o efeito substancial na rotina diária e com consequências para a saúde a longo prazo. Além disso, ela pode afetar qualquer pessoa, independentemente do sexo, origem, classe social ou idade. A prevalência dos sintomas e sinais depressivos podem variar entre culturas e populações.
De acordo com o documento, o risco de depressão aumenta em contextos de adversidade, incluindo situações de pobreza, violência, deslocamento, gênero, raça e discriminação. Assim como a depressão está associada a uma ampla variedade de doenças físicas crônicas, a saúde física também pode influenciar em aspectos da saúde mental.
Custo econômico e social da depressão
A saúde e qualidade de vida obtidas a partir do diagnóstico e tratamento oportunos da depressão também podem trazer impactos positivos para a economia. De acordo com o estudo, o transtorno apresenta um custo social e econômico pouco reconhecido sobre indivíduos, famílias, comunidades e países.
Mesmo antes da pandemia, a perda de produtividade econômica ligada à depressão custava à economia global cerca de US$ 1 trilhão por ano.
“Indiscutivelmente, não há outra condição de saúde que seja tão comum, tão onerosa, tão universal ou tão tratável quanto a depressão, mas que recebe pouca atenção política e recursos”, diz Christian Kieling, da UFRGS.
Reforço na prevenção
A comissão de especialistas em saúde mental aponta gargalos no enfrentamento da depressão, mas também propõe caminhos para contornar o problema global.
Os estudiosos sugerem que, para reduzir a prevalência, devem ser adotadas estratégias em todos os âmbitos da sociedade que reduzam a exposição a experiências adversas, incluindo negligência e trauma, especialmente na infância.
As orientações incluem intervenções em fatores individuais, como estilo de vida (tabagismo, consumo de álcool e inatividade física, por exemplo) e outros fatores de risco, como violência por parceiros e eventos estressantes, como luto ou crise financeira.
“A prevenção é o aspecto mais negligenciado da depressão. Isso em parte porque a maioria das intervenções está fora do setor de saúde”, diz o coautor do artigo Lakshmi Vijayakumar, do Centro de Prevenção de Suicídio e Serviços Voluntários de Saúde, de Chennai, na Índia. “Diante dos efeitos duradouros da depressão em adolescentes, desde dificuldades na escola e relacionamentos futuros até o risco de abuso de substâncias, automutilação e suicídio, investir na prevenção da depressão é uma excelente relação custo-benefício”, completa.
O especialista recomenda colocar em prática intervenções baseadas em evidências que apoiem a paternidade, reduzam a violência na família e o bullying na escola, além de promover a saúde mental no trabalho e abordar os impactos da solidão em idosos.
Plano de ação global
O grupo de trabalho da Lancet apresenta outras recomendações para o combate às desigualdades e à negligência no diagnóstico, tratamento e prevenção da depressão. As medidas incluem a priorização de abordagens inovadoras em etapas para atendimento, intervenção precoce e prestação de cuidados colaborativos em ambientes com recursos limitados.
Os especialistas destacam que o sistema atual de classificação de pessoas com sintomas de depressão em apenas duas categorias – com depressão clínica ou não – é muito simplista. Eles argumentam que a depressão é uma condição complexa com uma diversidade de sinais e sintomas, níveis de gravidade e duração entre as diferentes culturas e o momento de vida das pessoas afetadas.
Como possibilidade, a comissão sugere uma abordagem personalizada e por etapas para o tratamento da depressão, a partir do reconhecimento da cronologia e da intensidade dos sintomas. Eles recomendam, ainda, intervenções adaptadas às necessidades específicas do indivíduo e à gravidade da doença, que vão desde autoajuda e mudanças no estilo de vida até terapias psicológicas e antidepressivos para os casos mais graves.
“Dois indivíduos não compartilham a história de vida e constituição exatas, o que acaba levando a uma experiência única de depressão e diferentes necessidades de ajuda, apoio e tratamento”, explica o copresidente da comissão, Vikram Patel, da Harvard Medical School, nos Estados Unidos. “Semelhante ao tratamento do câncer, a abordagem em etapas analisa a depressão ao longo de um continuum – do bem-estar ao sofrimento temporário, até um transtorno depressivo real – e fornece uma estrutura para recomendar intervenções proporcionais desde o início da doença”, completa.
Ao mesmo tempo, a comissão propõe que sejam adotadas estratégias de cuidados colaborativos para ampliar as intervenções baseadas em evidências nos cuidados de rotina. Por um lado, o envolvimento de profissionais locais que não são especialistas em saúde mental, como agentes comunitários, mostra a escassez de equipes qualificadas. Por outro, esse apoio ajuda a reduzir o estigma e barreiras culturais, levando a um cuidado integral do paciente.
Os especialistas indicam, ainda, a necessidade de mais investimento na área da saúde mental para garantir que as pessoas recebam os cuidados de que precisam. A comissão ressalta a importância de ações com base em políticas públicas para reduzir os efeitos prejudiciais da pobreza, da desigualdade de gênero e de outras desigualdades sociais sobre a saúde mental.
“As políticas que reduzem as desigualdades raciais ou étnicas, as desvantagens sistemáticas vividas pelas mulheres e apoiam a distribuição justa de renda por meio da cobertura universal de saúde e ampliando as oportunidades de educação podem ser estratégias preventivas potencialmente poderosas”, diz Helen Herrman, da Universidade de Melbourne.