Uma droga socialmente aceita, cujo consumo, culturalmente, não costuma ser mal visto. Também por isso, quando o uso de álcool é abusivo e, portanto, problemático, o enfrentamento à situação é mais complexo.
Na pandemia de Covid, com o agravamento de problemas sociais, emocionais e financeiros, dentre outros, o dilema quanto ao alcoolismo, que desde 1967, é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma doença crônica, de aspectos comportamentais, cresce.
Quem lida com o tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de álcool, tanto no Hospital de Saúde Mental, em Messejana, como nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool-Drogas (Caps AD), nas Capitais, conforme o Diário do Nordeste.
Profissionais ressaltam a necessidade de garantir atendimento, sobretudo, em tempos tão difíceis.
Uma pesquisa feita pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) em 33 países e dois territórios das Américas apontou, em novembro de 2020, que 42%, dos 3,3 mil brasileiros entrevistados, relataram alto consumo de álcool durante a pandemia.
Estudo divulgado neste mês por um grupo da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) aponta que 23,7% dos brasileiros com 60 anos ou mais consomem álcool, e destes, 6,7% consomem várias doses em uma única ocasião, padrão de consumo abusivo. Além disso, 3,8% costumam beber de 7 a 14 doses por semana.
Agravantes na pandemia
Os dados evidenciam o problema realçado no contexto da crise sanitária. Em Fortaleza, no Caps AD da Regional III, onde, em geral, são tratados casos crônicos de uso problemático das drogas, a psicóloga Raquel Cerdeira explica que cerca de “metade dos usuários fazem uso abusivo de álcool”.
Na pandemia, a percepção é que quadros de usuários do serviço que já eram problemáticos, pioraram.
“O álcool é separado na política pública nacional de outras drogas para dar ênfase no problema que ele é. De todas as drogas é a que causa o maior problema de saúde pública. Porque ele é legal, por essa cultura (do consumo) que é milenar. Ele é um uso social. Por conta disso, é bem aceito e causa mais problemas de saúde pública”.
De acordo com ela, na pandemia a demanda por atendimentos teve variações, sendo reduzida durante os períodos de isolamento rígido e voltando a ter ênfase no atual momento, de melhoria do cenário da crise sanitária.
“O que vimos foi que durante os lockdowns, a procura caiu, seja porque as pessoas que tinham uso dependente ou abusivo problemático, como a gente chama, passaram a consumir mais álcool e outras drogas, seja porque as pessoas tinham medo. A pandemia piorou de forma muito importante o que quadros que já eram problemáticos”.
Ela também explica o que é oferecido no Caps aos usuários. “O paciente é acolhido. É feita uma primeira avaliação. Se o usuário está buscando o serviço para ter um uso mais saudável, ou se ele quer parar completamente de usar aquela substância. E dependendo do grau do uso, existem várias ofertas do que chamamos de Projeto Terapêutico Singular”.
Busca e ter acesso ao tratamento
O morador de Fortaleza, Chico Gois, 56 anos, por fazer uso abusivo de álcool e outras drogas, em 2010, procurou pela primeira vez um Caps. Deixou o tratamento e retornou em 2013. Desde então, é acompanhado no Caps da Regional V e ressalta:
“O primordial de você conseguir ajuda, é você assumir que tem aquele problema. É admitir que tem aquele problema. Um segundo passo é você aceitar ajuda. Eu tentei esse serviço dos Caps AD. As pessoas acham que só tem as comunidades terapêuticas. Nos Caps é um serviço humanitário, diferenciado”.
Ele conta que quando retornou ao tratamento terapêutico em 2013 optou pela abstinência e há 8 anos não faz uso do álcool. Na pandemia, relata que felizmente, apesar das dificuldades do momento, não voltou a fazer uso abusivo da substância.
“Acompanhando o Caps, a gente acaba, além das nossas experiências, vendo as das outras pessoas e sabe que aumentaram o consumo de álcool e outras drogas. A pandemia não me afetou nesse sentido, mas há dois meses sofri um assalto e quebrei alguns dentes. Isso me abalou. A ligação que a gente tem com a droga é muito emocional, muitas vezes, faz com que você volte”, reforça.
Chico destaca que o tratamento no Caps é extremamente relevante e ressalta que por isso também é necessário a ampliação da rede na Capital e a melhoria dos Caps AD.
“O serviço, apesar de necessário, não cresce de acordo com a procura. Quando procurei em 2010 era uma realidade, hoje a demanda está muito maior”.
Danos à saúde mental
No Hospital de Saúde Mental de Messejana, o médico psiquiatra Arão Pliacekos, explica que o uso abusivo do álcool é nocivo à saúde mental por gerar sintomas depressivos, ansiosos, medos infundados e fazer com o que o usuário acredite em uma realidade imaginária com discurso delirante e alucinações.
Dentre os danos físicos, explica ele, “altera o metabolismo do usuário causando doenças crônicas graves: cirrose, pancreatite, coma hepático e até demência alcoólica”.
Na pandemia, relata o psiquiatra, com os protocolos de distanciamento social em vigor, “o dependente químico fica mais vulnerável à recaída e exacerbação do quadro clínico por se sentir desprotegido, abandonado sem vislumbrar perspectiva de ascensão psicossocial pessoal e com a família e amigos. A tendência é o autoabandono”.
Diante disso, o que se observa, diz o médico, é um acréscimo de “demanda reprimida de internações por intoxicação de álcool e outras drogas, situações hospitalares emergenciais por abstinência e/ou situações constrangedoras dos pacientes cronificados e desacreditados ou incompreendidos pela família”.
Arão reforça que o tratamento precede da vontade e disponibilidade das pessoas que fazem o uso abusivo do álcool em aceitar ajuda especializada em Caps AD, bem como a internação na unidade de desintoxicação do Hospital de Messejana, onde segundo ele, contam “com a possibilidade de dar seguimento clínico e terapêutico no Elo de Vida (serviço do HSM), ambiente que proporciona a reinserção psicossocial do paciente e apoio terapêutico para familiar cuidador”.