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segunda-feira 30 de maio de 2022 às 09:41h

Pais que sequestram filhos podem perder a guarda se projeto de lei for aprovado na Câmara

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Dois dias antes das aulas presenciais do filho de cinco anos serem retomadas em Brasília, em agosto de 2021, Lúcia*, que já estava trabalhando presencialmente, avisou que iria buscar a criança, que estava com o pai em Belo Horizonte – por não querer expor o filho nem a si mesma, ela pediu anonimato à reportagem do jornal O Tempo.

Ficou combinado que o homem entregaria o filho para a mãe em um consultório de dentista, mas somente ela apareceu no local. Os dois estavam sumidos. A partir daí começou para Lúcia uma longa saga de quase três meses em busca do filho.

“Ele [o pai] falou que eu estava colocando a criança em risco se voltasse às aulas, por causa da pandemia. Não queria que o menino retornasse para a escola presencial. Ele falava que ia trazer [para Brasília] e não trazia. Ali eu já senti que a situação ia se complicar, estava mais difícil ter contato com a criança, ligava e o pai não atendia”, lembra Lúcia.

Orientada pela advogada, Lúcia fez um boletim de ocorrência em delegacia de proteção à criança de Belo Horizonte. Ela acionou 13 delegacias de Brasília e da capital mineira, mas recebeu a mesma resposta: por ser guarda compartilhada, o sumiço do pai com o filho não configurava crime de subtração de menor.

De acordo com O Tempo, só depois de ter sido acionado judicialmente, em processo com mandado de busca e apreensão movido por dois advogados de Lúcia, o pai devolveu o filho e pagou multa de R$ 30 mil por não ter descumprido a decisão da Justiça por um mês.

“Estou processando o pai por abandono de intelectual, porque meu filho foi prejudicado, ele está na fase de alfabetização, estava começando a aprender a escrever as letrinhas e, de repente, fica quase três meses sem aula”, lamenta Lúcia.

Proposta que tramita na Câmara prevê mudanças no Código Penal

Esse não é um caso isolado de sequestro de criança por um dos genitores. Diana Rodrigues, advogada especializada na área de família, acompanhou casos semelhantes em Mato Grosso. Junto à estudante de Direito Allana Metello, criou o grupo “Voz da Justiça”, em 2021, para apoiar outras famílias nessa situação.

Diana, Allana e Lúcia defendem a aprovação do Projeto de Lei 4490/21, de autoria do deputado federal Mário Heringer (PDT-MG), para evitar que crianças em guarda compartilhada possam ser sequestradas por um dos genitores sem que estes percam a guarda. O PL está tramitando na Câmara dos Deputados e aguarda relator na Comissão de Seguridade Social e Família.

“A aprovação desse projeto é urgente porque a lei atualmente determina que a guarda deve ser compartilhada, no entanto existe uma lacuna, uma grave falha na legislação que não prevê uma punição eficaz nos casos em que o genitor ou genitora não entrega a criança, não cumpre o que foi regulamentado entre o casal”, destaca a advogada.

“Acredito que a mudança na legislação é de suma importância para que esses casos não aconteçam e passem impunes, pois o genitor responsável pelo sequestro, além de ser somente notificado, precisa responder judicialmente e sofrer penalidades cabíveis”, complementa Allana.

A proposta altera o Código Penal e determina o impedimento da guarda ao condenado por crime doloso contra filhos ou pessoas das quais seja tutor (responsável legal) ou curador (gestor dos bens), ou ainda praticado contra quem também possui a guarda, geralmente cônjuges. Atualmente, o Código Penal não prevê a incapacidade para a guarda.

“Esse projeto, em especial, mexe com a intimidade das famílias. Estou trabalhando para ver se consigo dar uma acelerada nisso, conversando com o presidente da comissão. Estou muito ligado nesses projetos de guarda compartilhada, de subtração de incapaz em guarda compartilhada. O genitor sai, leva o filho e não pode ser processado porque tem a guarda. Mas está lesando o outro lado do compartilhamento”, argumenta o autor do projeto, em entrevista para O Tempo.

“A proposta é fundamental porque não mantém o ciclo de violência. Um violento cria um violento, então a partir do momento que se quebra essa cadeia de hábitos, consegue-se preventivamente no futuro não ter agressores. É fundamental quebrar essa cadeia de violência estabelecida nesses relacionamentos abusivos”, acrescenta Heringer.

Na avaliação de Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o projeto de lei está de acordo tanto com a Constituição quanto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas ressalva a importância do cumprimento da presunção de inocência.

“De fato, se torna incompatível que o agressor tenha a guarda e o poder familiar sobre a sua vítima. Mas só pode se aplicar essa perda da guarda ou destituição do poder familiar após a condenação do réu transitar em julgado, não havendo mais possibilidade de recursos, inclusive para cumprir o que prevê a Constituição, que é o princípio da presunção de inocência”, observa.

Limitação do projeto está no direito à convivência familiar

Alves chama atenção para potencial violação do direito à convivência familiar em casos de condenação por violência doméstica envolvendo estritamente o casal, como está previsto no projeto de lei, quando não envolve os filhos.

“Ele violaria esse direito à convivência familiar, da criança e do adolescente ter relações de afeto com o pai e com a mãe, previsto na Constituição Federal e no ECA. Não é porque o pai e a mãe se separaram, se desentenderam e tiveram conflitos ou mesmo situações de violência doméstica que não podem mais conviver com os filhos”, avalia o advogado.

“Deve ser analisado caso a caso, o correto é que aos poucos ocorra a reaproximação desses pais ou mães que tenham subtraído os filhos, após terem sido encontrados, para gradativamente retomar o convívio familiar”, completa.

O advogado relata que atuou nos casos de duas mães que sequestraram os filhos porque suspeitavam de maus tratos e porque não aceitavam o exercício da guarda compartilhada.

“Nesses casos, quando elas foram encontradas, com mandados de busca e apreensão da Justiça, com investigação policial, ficaram por um tempo privadas do contato com as crianças, que ficaram com os pais”, conta Alves.

“Aos poucos, puderam voltar a visitar, primeiro em salas do fórum, depois em locais públicos, como shoppings e parques, sempre acompanhadas de pessoas da família da parte contrária e posteriormente puderam retomar o convívio, as visitas de finais de semana, os feriados, as férias escolares, as festas, e por fim retomaram a guarda compartilhada com residência materna. As crianças voltaram a morar com elas, mas em guarda compartilhada com os respectivos pais.”

Em outro caso, Alves defendeu um pai que sequestrou o filho de 4 anos de idade alegando motivo semelhante ao daquelas mães: maus tratos sofridos pela mãe e avós da criança, que sofria de bronquite e estava sempre muito doente, sem frequentar a escola.

“Ele entendeu que se a criança ficasse lá poderia ter a saúde mais comprometida e resolveu tirar a criança do poder da mãe, e durante alguns dias sumiu com o filho. Veio uma ordem judicial de busca e apreensão, ele voltou e entregou a criança para a Justiça e posteriormente ficou algumas semanas sem poder vê-la”, relembra o advogado.

“Até que ele conseguiu reconquistar o direito de ter a visita, de estar com a criança nos finais de semana, de voltar a conviver com a criança após ter entrevistas com a equipe técnica do Poder Judiciário e uma audiência de conciliação. Ele se comprometeu a não mais fugir com a criança.”

Sequestro do filho pelo pai é um trauma, conta a mãe

O filho de Lúcia está sendo acompanhado por psicólogo e frequentando as aulas numa escola infantil em Brasília. Embora tenha recuperado a criança, ela ainda não superou totalmente o trauma.

“Eu me senti agredida psicologicamente pelo pai do meu filho. É um tipo de trauma difícil de superar. Eu pedi medida protetiva pela Maria da Penha, porque depois que ele devolveu meu filho, ficou de plantão na porta da minha casa, eu ia levar o menino na escola e ele ia junto, ficava me vigiando”, relembra.

“Antes de o meu filho voltar, a juíza determinou que o pai me ligasse por vídeo chamada, porque eu queria ter notícia, ver a carinha dele. Não sei descrever, comecei a gritar de alegria. Foram 80 dias sem ter contato com o meu filho. O alívio verdadeiro foi quando eu pude abraçar ele.”

Lúcia agora luta na Justiça para ter a guarda definitiva e unilateral da criança. “Por ele [o pai] ter agido dessa forma, meu advogado está com ação para ele perder a guarda. Não quero devolver na mesma moeda, ele é pai, tem que ter o contato. Mas quero a guarda definitiva da criança, em função de não poder confiar numa pessoa que faz uma coisa dessas.”

* A pedido da mãe, o nome dela foi ocultado e substituído por um nome fictício nesta reportagem para proteger sua identidade e não expor a criança.

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