Conforme reportagem de José A. Morales García, Conchi Lillo, da BBC News, é possível comparar o cérebro com um daqueles relógios antigos com centenas de engrenagens de todas as espécies, trabalhando em uníssono para fornecer a hora certa.
O nosso cérebro é composto de duas metades – os hemisférios cerebrais. Mas, ao contrário do que pode parecer, não se trata de duas estruturas isoladas e independentes.
Os dois hemisférios são extraordinariamente conectados por uma espécie de “cabeamento” que faz a comunicação entre eles. Estamos falando do corpo caloso, formado por mais de 200 milhões de fibras nervosas que levam informações de um hemisfério para o outro.
Esta organização permite realizar e coordenar todas as funções – muitas delas, muito complexas – próprias do sistema nervoso. E, para isso, os hemisférios dividem o seu trabalho.
Escritórios interconectados
Pense em um grande edifício de escritórios de uma mesma empresa. Nele, encontraremos diferentes andares, com diferentes departamentos, diferentes divisões e diferentes pessoas trabalhando em cada uma dessas áreas.
Cada seção tem uma função, mas todas estão interligadas. E, mais do que isso, elas mantêm estreita comunicação entre si, pois a operação correta de umas depende do que fizerem as outras.
Os hemisférios cerebrais funcionam de forma similar. Eles dividem o trabalho a ser realizado.
Ou seja, embora as duas metades intervenham em uma função específica, uma delas pode estar mais relacionada com aquela tarefa do que a outra.
Este processo funciona da mesma forma que o faturamento daquela grande empresa.
O departamento de cobrança é o encarregado da operação, mas outras seções devem fazer sua parte do trabalho para completar o processo. Como o setor de expedição, por exemplo, que fará chegar a fatura ao seu destinatário.
Os hemisférios não são um destino
É neste ponto que começa o mito de que o cérebro é dividido em duas metades e, dependendo do lado que mais usarmos, teremos esta ou aquela habilidade. É a chamada teoria do “hemisfério dominante”.
Ela defende que, se você for bom em matemática, linguagem ou lógica, é porque o seu hemisfério esquerdo é o dominante. E, se você for uma pessoa artística, com vocação para a pintura ou a música, o hemisfério dominante é o direito.
Esta teoria ajuda a classificar erroneamente as pessoas em dois tipos: objetivas, racionais e analíticas, de um lado; ou passionais, sonhadoras e criativas, de outro.
Nada está mais longe da realidade. Não existe um hemisfério dominante.
Este mito provavelmente tem sua origem na reunião da Sociedade Antropológica de Paris, na França, em 1865.
O culpado pode ter sido, ainda que não intencionalmente, o médico francês Paul Broca. Ele assegurou que “falamos com o hemisfério esquerdo”, em referência às regiões cerebrais com mais influência sobre a função da linguagem, que se encontram naquele lado do cérebro.
O fato de que a maior parte de uma função específica recaia sobre um hemisfério, como ocorre com a linguagem e a metade esquerda do cérebro, não significa que aquele hemisfério seja dominante nas pessoas com maior capacidade linguística.
Quando um cantor memoriza a letra e a melodia de uma canção, por exemplo, as funções relativas à verbalização da letra encontram-se no seu lado esquerdo, mas ele irá usar o hemisfério direito para expressar a musicalidade da canção. Ou seja, é um trabalho de equipe.
Evidências que refutam o mito
Existem inúmeros estudos neste campo da ciência. Alguns deles chegaram a examinar imagens obtidas por ressonância magnética dos cérebros de mais de mil pessoas.
Seus resultados deixam claro que todos nós usamos os dois hemisférios igualmente, embora a atividade registrada em cada um deles dependerá “do que estivermos fazendo”.
Também se demonstrou que o lado do cérebro utilizado para uma determinada atividade pode não ser o mesmo para todas as pessoas. Análises demonstram que existem variações entre os indivíduos em relação a qual área ou metade do cérebro é empregada para uma ação específica.
O mito do hemisfério dominante ainda está muito presente hoje em dia. Em parte, porque existem muitos aspectos desconhecidos sobre o funcionamento do cérebro humano. E, quanto mais pesquisamos, mais percebemos a sua complexidade.
Por isso, quando são expostos os argumentos para tentar explicar este funcionamento tão complexo, continuam surgindo interpretações simplistas, como a de que as funções são escrupulosamente segregadas em áreas e hemisférios cerebrais.
Se fosse assim, uma lesão em uma dessas áreas tão especializadas faria com que essa zona funcional deixasse de ser útil para a pessoa afetada. Mas não é exatamente assim que acontece. O nosso sistema nervoso possui certa plasticidade.
Já se verificou que, em pessoas que perdem um dos sentidos (como a visão), a área do cérebro encarregada do seu processamento, sem receber a informação visual, às vezes se adapta para melhorar a percepção de outros sentidos, como o tato. Este fenômeno melhora o aprendizado da leitura táctil do alfabeto Braille, por exemplo.
Vendedores de ilusões
Deste desconhecimento científico e social da totalidade do funcionamento do cérebro, sobrevêm, como sempre acontece, os aproveitadores.
São aquelas pessoas que, utilizando linguagem pseudocientífica, apresentam explicações e soluções para tudo, tentando se aproveitar da incerteza dos mais vulneráveis.
Eles fazem as pessoas acreditarem, por exemplo, que podemos decidir qual hemisfério devemos usar para modular nossas habilidades, capacidades e personalidade, ou a forma em que enfrentamos as vicissitudes da vida.
Além disso, como ocorre com outros setores, como a saúde humana, a neurociência não conseguiu se livrar da propagação de mitos e boatos pelas redes sociais.
Mas, embora ainda existam incertezas sobre alguns aspectos do funcionamento do cérebro humano, temos a segurança de que o talento e a personalidade das pessoas não são determinados pela dominância de um hemisfério sobre o outro.
E sempre convém ressaltar, para evitar atitudes antropocêntricas, que não somos o único animal com as funções cerebrais compartimentalizadas.
Classificação dos estudantes
Apoiar o mito da dominância dos hemisférios cerebrais é perigoso em muitos aspectos – especialmente no campo da educação, já que limita as oportunidades de aprendizado e desenvolvimento dos estudantes.
Se acreditarmos erroneamente que existem alunos de “cérebro direito” (muito mais criativos) ou de “cérebro esquerdo” (mais analíticos), estamos classificando os estudantes em duas categorias.
E esta classificação limita suas oportunidades de aprendizado, restringindo seus interesses e impedindo que eles se desenvolvam em outras disciplinas. Tudo isso reduz suas futuras trajetórias profissionais.
Em resumo, não existe um hemisfério cerebral mais importante que o outro e os dois funcionam como uma unidade. E, na verdade, a atividade cerebral não é simétrica e varia de uma pessoa para outra.
* José A. Morales García é pesquisador científico de doenças neurodegenerativas e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Complutense de Madri, na Espanha.
Conchi Lillo é pesquisadora de patologias visuais e professora titular da Faculdade de Biologia da Universidade de Salamanca, na Espanha.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em espanhol.