A operação deflagrada pela Polícia Federal nesta última sexta-feira (20) sobre o sistema espião usado pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) reforçou a disputa de bastidores entre as cúpulas das duas instituições, expondo um mal-estar que se arrasta há meses. As informações são de Thaísa Oliveira e Ranier Bragon, da Folha de S.Paulo.
Servidores da Abin argumentam não ver razão para busca e apreensão na sede do órgão, em Brasília.
Afirmam que o suposto uso indevido do software no governo Jair Bolsonaro (PL) começou a ser investigado internamente pela gestão atual e que todas as informações levantadas foram compartilhadas com a PF e a Justiça.
A própria nota oficial divulgada pela agência transparece essa posição: “Todas as requisições da Policia Federal e do Supremo Tribunal Federal foram integralmente atendidas pela Abin. A agência colaborou com as autoridades competentes desde o início das apurações”.
A avaliação entre essas pessoas é a de que a Polícia Federal agiu para desgastar politicamente a direção atual.
Reservadamente, integrantes da agência ressaltam, por exemplo, o fato de a PF ter repassado à imprensa a foto e a informação de que localizou US$ 171 mil na casa do número 3 da Abin, atitude que lembraria antigas operações espalhafatosas da corporação.
Embora ressaltem que tudo tem que ser investigado a fundo, afirmam não haver crime no ato de guardar dinheiro vivo, além de o servidor ter em sua carreira uma adidância na Embaixada do Brasil na Argentina de 2010 a 2011 —ocasião em que recebia pagamentos em dólar.
O diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, e o diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Corrêa, ocupam campos divergentes dentro do governo Lula (PT).
Andrei é delegado da PF e coordenou a equipe de segurança de Lula na campanha. A PF está subordinada ao Ministério da Justiça, comandado por Flávio Dino.
Corrêa também é delegado federal, foi diretor da PF no segundo mandato de Lula e chegou ao comando da Abin após o petista tirar o órgão das mãos dos militares (o Gabinete de Segurança Institucional), em março, e alocá-lo na Casa Civil, hoje comandada por Rui Costa.
Do lado da PF, o argumento é que a investigação seguiu os trâmites normais e que se trata apenas de mais uma apuração contra a contaminação bolsonarista nas instituições.
Policiais ouvidos pela PF lembram que o caso ficaria restrito ao governo Bolsonaro se o atual diretor da Abin não tivesse indicado Paulo Maurício Fortunato para o cargo de secretário de Planejamento e Gestão, o terceiro posto mais alto da agência.
Eles lembram que as suspeitas sobre o uso do software surgiram antes mesmo da nomeação de Corrêa como diretor-geral da Abin e que ele poderia ter evitado esse desgaste.
Sobre as buscas na sede da Abin, os policiais relatam que elas eram necessárias para colher as informações pertinentes à apuração ainda em andamento. A divulgação da foto do dinheiro, por sua vez, é classificada como padrão quando são encontrados valores em espécie.
A disputa de bastidores envolvendo os dois diretores teve um de seus ápices durante a indicação dos números 2 e 3 da Abin: Alessandro Moretti e Fortunato —este último alvo da PF e com quem foram encontrados os US$ 171 mil.
Sob a gestão de Andrei Rodrigues a Polícia Federal vetou nomeações e cancelou indicações da gestão anterior, com a justificativa de recuperar a corporação das mãos do bolsonarismo e do lava-jatismo.
Moretti, o número 2 da Abin, também é delegado federal e foi o número dois de Anderson Torres na Secretaria de Segurança do Distrito Federal, entre 2018 e 2021, tendo seguido o chefe no ingresso no governo Bolsonaro. Ele foi diretor de inteligência da PF em 2022, quando Torres era ministro da Justiça e Segurança Pública.
A relação entre Moretti e Andrei começou a estremecer antes mesmo da vitória de Lula. Moretti é apontado pela atual cúpula da PF como responsável por dificultar o trabalho da equipe de segurança de Lula durante a campanha eleitoral.
Moretti estava indicado para ser adido do órgão na França, mas acabou barrado por Andrei.
Fortunato, por sua vez, é servidor aposentado da Abin e ocupou cargos de chefia na agência durante a gestão do hoje deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), diretor do órgão no governo Bolsonaro e amigo da família do ex-presidente.
Ele rompeu com Ramagem diante do desmantelamento da instituição, sobretudo das operações de contraespionagem, que estão no centro da atual investigação da PF.
Apesar do trabalho na gestão Bolsonaro, integrantes da Abin afirmam que Moretti e Fortunato não podem ser classificados como bolsonaristas e só viraram alvo de artilharia interna devido à disputa de poder dentro da área de inteligência e segurança pública do governo Lula.
A Abin atribui à gestão atual da PF, por exemplo, a decisão do senador Renan Calheiros (MDB-AL), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, de segurar a sabatina de Corrêa por quase dois meses no início do ano.
Renan não escondeu o descontentamento com Moretti e Fortunato nem mesmo durante a sabatina, mas disse a pessoas próximas que o próprio presidente da República tinha dado sinal verde às indicações de Corrêa na Abin.
“O senhor está ciente de que o sr. Paulo Maurício Fortunato, nomeado para a Secretaria de Planejamento e Gestão, é suspeito de tramas para grampear ilegalmente o ministro Gilmar Mendes, então presidente do Supremo Tribunal Federal?”, questionou o senador na ocasião.
“O Paulo Maurício tem um histórico de profissional: oficial de inteligência, com operações, vem de longos anos”, respondeu Corrêa. “Eu sou agente da Polícia Federal desde 1980. Se esse é um defeito, eu estou imprestável para qualquer governo que se deu de 1980 para cá; se o critério é o presidente da vez.”
A tentativa do grupo no entorno da cúpula da PF de evitar as nomeações na Abin acabou não dando certo devido ao argumento de Corrêa de que ambos ocuparam cargos de chefia na PF nos primeiros governos Lula e na gestão Dilma Rousseff (PT), além de serem de sua confiança.