O início da semana parecia promissor para Jair Bolsonaro. Na segunda-feira 1º, o ex-presidente foi recebido por uma multidão em Ribeirão Preto (SP), onde participou de uma feira do agronegócio, setor que ainda é uma de suas principais bases de apoio. Na terça-feira 2, uma aliança entre grandes empresas de tecnologia, bancada evangélica e parlamentares de centro e de direita impediu a votação do PL das Fake News, que, segundo os bolsonaristas, resultaria em censura nas redes sociais, justamente a arena preferencial deles. Depois de meses de reclusão, o capitão dava demonstrações de força e voltava por cima ao debate político. O próprio Bolsonaro esbanjava otimismo sobre o futuro. “Não estou morto”, declarou numa conversa reservada. A euforia durou apenas até a manhã da quarta-feira 3, quando a Polícia Federal realizou uma operação de busca e apreensão na casa do ex-presidente e prendeu três de seus assessores mais próximos — entre eles, o tenente-coronel Mauro Barbosa Cid, que foi seu ajudante de ordens na Presidência. Determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a operação da PF é a mais contundente evidência, até agora, de que Bolsonaro enfrentará um desafio enorme para manter seus direitos políticos e a sua liberdade. A reportagem é de Daniel Pereira e , da revista Veja.
A nova frente no cerco judicial ao capitão investiga se uma “associação criminosa” fraudou cartões de vacinação de Bolsonaro, de sua filha mais nova e de alguns de seus assessores com o objetivo de incluir nos cadastros oficiais a informação de que eles tomaram a vacina contra a Covid-19 e, assim, permitir que fossem obtidos os certificados de vacinação exigidos para a entrada nos Estados Unidos. Segundo a PF, tais certificados foram emitidos a partir de computadores localizados no Palácio do Planalto nos dias 22 e 27 de dezembro, dias antes da viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos. A investigação também aponta que o acesso ao sistema do Ministério da Saúde e a emissão do certificado de vacinação na data específica de 30 de dezembro, quando o capitão embarcou para a Flórida, foram realizados por meio do telefone celular de Mauro Cid, uma das pessoas mais próximas do então presidente, que chegou a indicá-lo para comandar um importante batalhão militar, decisão posteriormente revogada pelo presidente Lula. VEJA apurou que, em conversas com colegas militares, Mauro Cid admitiu ter fraudado o cartão de vacinação dele, da mulher e das filhas, mas nada disse a respeito da adulteração dos documentos do ex-presidente. Ele ainda não se manifestou de forma oficial.
De acordo com a investigação, para obter os certificados desejados, a “associação criminosa” contou com os préstimos de um servidor da prefeitura de Duque de Caxias (RJ), que inseriu no sistema do Ministério da Saúde, em 21 de dezembro, informações “falsas” dando conta de que Bolsonaro e sua filha mais nova haviam tomado vacina meses antes. O servidor também foi preso e na avaliação da PF sua conduta é grave porque permitiu que “não vacinados se passassem por indivíduos imunizados e, com isso, infringissem as medidas sanitárias relacionadas à pandemia”. De forma absolutamente irresponsável, no exercício da Presidência, Bolsonaro sempre pregou contra a obrigatoriedade da imunização, desdenhou dos efeitos da pandemia e chegou a dizer que — por ter um suposto histórico de atleta — não tomaria a vacina. Surpreendido pelos policiais, ele jurou inocência: “Nunca me foi pedido cartão de vacina (para entrar nos EUA). Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina, ponto final”. Depois, numa entrevista a uma rádio, politizou um pouco mais discurso e disse que a operação teve o objetivo de esculachá-lo.
O ex-presidente também teve o celular apreendido — e reside aí a principal aposta de esclarecimento de uma série de suspeitas. Bolsonaro é um usuário contumaz de telefone celular, principalmente para trocar mensagens. Ele tem uma rede de pessoas de confiança que o municiam com informações de todo tipo e, em sua lógica particular, costuma replicar aquilo que considera interessante. Essa engrenagem forneceu munição para os discursos contra a segurança das urnas eletrônicas e os ataques às instituições, sobretudo ao STF e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com o celular, Bolsonaro dava ordens a subordinados, orientava apoiadores e alimentava suas milícias digitais. Em depoimento à PF no fim de abril sobre os atos golpistas de 8 de janeiro, o ex-presidente declarou que compartilhou sem querer — e sob efeito de remédios — um vídeo em suas redes sociais segundo o qual Lula não venceu as eleições, que teriam sido fraudadas.
Os investigadores esperam encontrar no aparelho do ex-presidente provas desse tipo — não apenas para o caso da fraude no cartão de vacina, mas para as múltiplas investigações que cercam Bolsonaro. Desconfiado por natureza, o capitão costuma trocar de celular de três em três meses, assim como seus filhos. Por isso, seus auxiliares apostam que nada de grave será descoberto. O tempo dirá quem tem razão. Até lá, Bolsonaro continuará a entoar a desgastada tese de que é vítima de perseguição. A VEJA, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o filho Zero Três do capitão, insinuou que a operação da PF foi uma resposta às demonstrações de força do pai dele. “Essa operação abre margem para todo tipo de interpretação, inclusive de que se trata de uma retaliação, porque o presidente foi um sucesso na Agrishow, porque o Alexandre de Moraes fez sugestões ao projeto das fake news, que não foi aprovado. Cada um tira sua conclusão, mas acho que é muito óbvio”, disse o deputado.
Como ocorreu com Lula no auge da Operação Lava-Jato, Bolsonaro espera convencer a sociedade de que é vítima de uma perseguição judicial levada a cabo por um juiz — no caso, o ministro do STF Alexandre de Moraes. Ele também torce para que essa situação leve seus seguidores mais fiéis a se manifestarem contra a suposta perseguição, o que poderia servir de instrumento de pressão para frear o cerco judicial. Por esse tortuoso raciocínio, Bolsonaro precisará de muita mobilização popular para conter os processos contra ele. O ex-presidente é investigado por supostamente ter insuflado seus apoiadores a invadir e depredar as sedes dos Três Poderes no fatídico 8 de janeiro. Também é alvo do inquérito das Fake News, por ter realizado uma live na qual colocou sob suspeita a segurança das urnas eletrônicas. Num caso que tem mais potencial de desgaste político do que risco de condenação judicial, é investigado pela suposta tentativa de se apropriar indevidamente de joias presenteadas pelo governo da Arábia Saudita, avaliadas em mais de 16 milhões de reais (veja o quadro). Aliás, o tenente-coronel Mauro Cid, o mesmo que foi preso, também aparece nessa história rocambolesca, operando para desembaraçar a mercadoria junto à Receita Federal por ordem de Bolsonaro. Ele foi detido na Vila Militar em Brasília, sem comunicação prévia ao comandante do Exército, como é de praxe, o que irritou alguns generais.
A sequência de desventuras é impressionante. Em apenas um mês, o ex-presidente passou três vezes pelo constrangimento de ter de ser intimado a prestar esclarecimentos à Polícia Federal — a questão da vacina está incluída na conta. Além dos percalços na Justiça comum, ele ainda enfrenta dezesseis ações na Justiça Eleitoral que pedem a sua inelegibilidade. Uma delas pode ser julgada nos próximos meses. Basta que o corregedor-geral eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, peça a Alexandre de Moraes, que também é presidente do TSE, a inclusão na pauta do plenário. A ação pronta para julgamento foi apresentada pelo PDT e questiona a decisão do então presidente de convocar representantes diplomáticos de outros países para expor supostas fragilidades das urnas eletrônicas. Pelos cálculos do PT, a atual formação da Corte daria quatro votos a favor e três contrários à inelegibilidade. O momento em que o plenário do TSE começar a analisar o caso, no entanto, é crucial para o futuro de Bolsonaro porque, ao contrário de outros tribunais, a Justiça Eleitoral é formada por juízes com mandato, que podem simplesmente deixar o posto durante o julgamento, embaralhando o seu desfecho.
Considerado linha-dura, o corregedor deixará em novembro a função responsável por tocar as ações de inelegibilidade e será substituído pelo ministro do STJ Raul Araújo, tido como mais apaziguador e um potencial voto em favor de Bolsonaro. Cabe ao magistrado que ocupa esse posto ditar o ritmo das ações e definir quais provas e testemunhas serão usadas para embasar o processo. Outra dança de cadeiras também pode ter reflexo direto no futuro de Bolsonaro. O ministro Ricardo Lewandowski se aposentou no início do mês e deu lugar a Kassio Nunes Marques, que chegou ao STF pelas mãos do capitão e é contabilizado pela defesa do ex-presidente como um provável voto contrário à inelegibilidade no TSE. Se for considerado inelegível, Jair Bolsonaro pode recorrer ao próprio TSE ou alegar a violação de um preceito constitucional e bater às portas do Supremo. Ele já deixou claro que pretende fazer isso se for necessário. Antes de ser alvo de uma batida da PF, Bolsonaro considerava que a probabilidade de o TSE cassar seus direitos políticos era de pouco mais de 50%, mas ressaltava que suas chances, tempos atrás, eram menores.
Em sua avaliação, antes da história das vacinas, o cenário teria ficado um pouco mais favorável a ele nos últimos tempos em razão da sucessão de trapalhadas cometidas por Lula. “Ele só fala besteira, é impressionante. A minha aceitação popular é enorme”, declarou o ex-presidente recentemente numa conversa privada. Aliados de Lula se dividem sobre os impactos políticos de uma eventual declaração de inelegibilidade do capitão. Há quem defenda a tese de que, com Bolsonaro fora do páreo, o caminho do PT será mais fácil em 2026, diante da ausência de um rival conhecido nacionalmente e forte eleitoralmente. Mas há aqueles que apostam que um eventual tiro disparado pela Justiça Eleitoral pode ter efeito contrário, vitimizando Bolsonaro, que se tornaria um cabo eleitoral ainda mais poderoso do que foi em outubro passado, quando seu partido, o PL, elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados. Para essa ala petista, Bolsonaro, caso seja proibido de disputar, terá ainda mais força para fazer campanha pelo nome escolhido por ele para suceder-lhe. Opções não faltam. Nas rodas de políticos, diz-se que três governadores de direita têm potencial para concorrer à Presidência em 2026: Tarcísio de Freitas (São Paulo), Romeu Zema (Minas Gerais) e Ratinho Junior (Paraná).
Se o capitão tiver os direitos políticos cassados, um dos governadores poderá ser apadrinhado e catapultado à condição de principal rival do PT. Entre os partidos de direita e de centro, há até uma torcida velada para que Bolsonaro seja tirado do páreo pelo TSE, o que abriria espaço para a ascensão de um político mais moderado. Evidentemente, o ex-presidente ainda tem um forte apoio popular, mas seu radicalismo e as manchas na reputação fazem com que muitos de seus aliados torçam — e trabalhem — para que ele não concorra novamente. Preferem tê-lo apenas como cabo eleitoral.
Antes esse fosse o único problema do capitão. Quando ainda estava no exercício da Presidência, Bolsonaro e seus assessores mais próximos diziam que ele tinha medo de ser preso ao deixar o cargo. Muitas vezes, a afirmação não soava sincera e parecia um jogo de cena destinado a angariar a solidariedade do interlocutor ou manter a base de apoio mobilizada. Agora, no entanto, o receio é real, até porque o cerco está se fechando — e o paralelo com Lula, sem levar em consideração a monumental disparidade de mérito das acusações, é inevitável. Bolsonaro é alvo em múltiplos inquéritos, testemunhou a prisão de seu ministro da Justiça e de seu ajudante de ordens e teve o desgosto de lidar com uma operação de busca e apreensão da PF em sua casa. Esse filme, mudando o enredo e o personagem, é muito semelhante ao do atual presidente. O petista também viu auxiliares serem presos, passou pela humilhação de uma condução coercitiva e foi emparedado pela multiplicação de processos e escândalos. Um dia, foi preso. Na quarta, logo de manhã, Lula não escondeu a satisfação com o desgaste do rival, colocando em suas redes sociais: “Bom dia e boa quarta-feira!”. Se as dificuldades de Bolsonaro lhe dão tanta alegria, o presidente terá muitos momentos felizes nos próximos meses.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840