Causa de controvérsias e insegurança jurídica, volta ao palco o debate acerca da equiparação entre empresas estrangeiras e empresas brasileiras controladas por estrangeiros para fins de aplicação (ou não) das restrições e limites legais existentes para a aquisição e arrendamento de imóveis rurais, estabelecidas em especial nas Lei nº 5.709/1971 e no Decreto Federal nº 74.965/74. O debate foca na constitucionalidade do artigo 1º, §1º, da Lei nº 5.709/1971, que equipara à empresa estrangeira a “pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior”.
Dentre diversos pareceres conflitantes emitidos por órgãos estaduais e federais, destaca-se o Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ da Advocacia Geral da União – AGU, encomendado em 2008 pela então presidente Dilma Rousseff e publicado em 2010, com efeito vinculante aos demais órgãos da administração pública. Contrariando os posicionamentos anteriores da própria AGU sobre o tema (vide Parecer AGU/LA-04/94 e Parecer GQ-181/98), o Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ determinou a aplicação das referidas restrições às empresas brasileiras sempre que a participação detida por estrangeiros, a qualquer título (direta ou indiretamente), conceda o controle fático da empresa, assim entendido como o poder de aprovar as deliberações nas assembleias de acionistas, de eleger a maioria do conselho de administração da sociedade, de dirigir as atividades societárias e de orientar o funcionamento dos órgãos sociais.
Pela interpretação adotada no Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ, o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei nº 5.709/1971 teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, mesmo após a revogação do artigo 171 da Constituição (pela Emenda Constitucional nº 6/1995), que fazia a distinção expressa entre empresas brasileiras de capital nacional e estrangeiro.
Em 15 de dezembro de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei – PL nº 2.963/2019, tendo por objeto a regulamentação da aquisição, posse e cadastro de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e equiparadas, a revogação da Lei nº 5.709/1971 e a dispensa dos procedimentos de aprovação para a aquisição de imóveis rurais por empresas brasileiras com capital estrangeiro (exceto em casos específicos de segurança ou interesse nacional). Desde então, o PL nº 2.963/2019 aguarda a apreciação pela Câmara dos Deputados.
Em fevereiro deste ano, a Câmara de Direitos Sociais e Atos Administrativos em Geral do Ministério Público Federal (1CCR/MPF) emitiu nota técnica se posicionando contra o referido PL, sob a alegação de desrespeito à soberania e ao interesse nacionais.
No último dia 29 de março, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, nos autos da Ação Cível Originária – ACO nº 2463 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF nº 342, requereu: (i) a admissão nos feitos como amicus curiae; e (ii) “a suspensão de todos os processos e negócios jurídicos que tenham como objeto a aplicação do art. 1º, §1º, da Lei nº 5.709/71 até o julgamento final da ACO 2463 e da ADPF 342”, utilizando como fundamentos (a) a “estrangeirização de terras”; (b) a defesa da “soberania e segurança nacionais” e da “soberania alimentar”; (c) a “proteção ao meio ambiente”; e (d) a “soberania territorial dos povos e comunidades tradicionais – indígenas, quilombolas, ribeirinhos”.
Para contextualização, a ADPF versa justamente sobre a declaração de recepção (ou não), pela Constituição Federal, do artigo 1º, § 1º, da Lei nº 5.709. Por sua vez, a ACO possui como objeto o pedido de declaração da nulidade do Parecer nº 461-12-E da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que havia dispensado os tabeliães e oficiais de registro de aplicarem as disposições da Lei nº 5.709/1971 e do Decreto Federal nº 74.965/74 às aquisições de imóveis rurais por pessoas jurídicas brasileiras, independentemente da nacionalidade do controle efetivo.
Em nova petição, protocolada em 10 de abril de 2023, a entidade de classe indicou expressamente determinados processos que entende que devem ser abrangidos pela suspensão, que envolvem a aquisição de participação de empresas brasileiras por grupos estrangeiros.
Até o momento, o Supremo Tribunal Federal não se manifestou acerca do pedido da OAB. Em razão da identidade de objeto, o julgamento da ADPF nº 342 e da ACO nº 2463 será realizado em conjunto e foi incluído na pauta do STF em 9 de novembro de 2022.
*Juliano Zorzi é associado do escritório Mello Torres, com mais de 15 anos de experiência no mercado imobiliário
*Patriccia Cendaroglo Maestra é advogada de Direito Imobiliário do escritório Mello Torres