O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), admite em entrevista ao jornal O Globo, que levará “alguns meses” para que a vida da população no estado volte a “algo perto do normal”. E diz que bairros e trechos inteiros de cidades terão que ser reconstruídos em outras localidades. Ele reconhece que o sistema antienchente de Porto Alegre falhou, mas diz que não é possível saber se foi por falta de manutenção ou por não ter sido projetado para uma inundação tão intensa.
Leite também afirma que não se pode postergar muito o debate sobre um possível adiamento das eleições para as prefeituras gaúchas e avalia que “trocas de governos municipais podem atrapalhar o processo de reconstrução”. Segundo o chefe do Executivo gaúcho, o próprio debate eleitoral dificultaria a recuperação.
Leia a entrevista:
O sistema antienchente de Porto Alegre falhou nas chuvas deste mês?
Que o sistema falhou, está muito claro. Agora a questão é: foi falha de manutenção ou foi falha de concepção? Porque, de fato, é a primeira vez que ele é posto à prova nos seus pouco mais de 60 anos em uma crise de magnitude maior do que a enchente de 1941.
Sim, porque sempre foi propagado que o sistema de comportas e bombas de sucção da capital aguentaria o nível das águas subindo até 6 metros (O Guaíba invadiu a cidade em 3 de maio, quando a cota chegou a 4,5 metros)…
Em tese aguentaria… Vamos ter que ajustar essa governança sobre os sistemas de proteção e resiliência de Porto Alegre, uma vez que até aqui a proteção da cidade é de competência do município. Não estou dizendo que o Estado deva assumir esse papel, mas certamente terá que colaborar. O Rio Grande do Sul terá que desenvolver uma especial competência a partir do que estamos vivenciando. No mundo, as vocações das diversas localidades estão atreladas à experiência que tiveram ao longo da sua história. Nações que tiveram muitas guerras fortaleceram as suas vocações militares e na área de aviação. Estamos buscando o apoio de órgãos holandeses para nos ajudar. Eles desenvolveram uma vocação para ter capacidade de resiliência sobre as próprias águas.
Alguma ideia de quando a vida deve voltar ao normal?
Serão ainda muitas semanas de trabalho para o retorno de algo próximo da normalidade para uma parcela substancial da população e ainda alguns meses até que a gente chegue a algo efetivamente próximo do normal para todo mundo.
Dá ao menos para projetar quando as águas devem baixar nas cidades gaúchas?
É difícil cravar isso porque não é algo estanque. Há projeção de chuvas intensas nesta semana, talvez cerca de 200 milímetros entre terça e quinta-feira, e isso pode influenciar no ritmo de redução do nível dos rios ou até significar alguma elevação deles.
Cidades gaúchas precisarão mudar de lugar neste futuro de reconstrução?
Bairros e partes de cidades deverão ser analisados sob essa ótica, sim. Visitei ontem o município de Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, que tem um bairro chamado Passo de Estreia. Quando a água do rio atinge um determinado nível, ela não respeita as curvas, passa por cima e com força destruidora. Centenas de casas foram atingidas, um cenário de guerra, como se tivesse explodido uma bomba lá. O que esse quadro sugere é que teremos que trabalhar na perspectiva de fazer uma urbanização nova nesta cidade em outra localidade. Também teremos que indenizar as pessoas, o que envolve um volume de recursos muito grande, algo que não estamos acostumados a ver no Brasil.
O valor anunciado de R$ 19 bilhões para a reconstrução do estado pode subir?
Certamente será bem superior. Esse foi um primeiro esforço que a equipe fez de levantamento de danos em estruturas públicas, pontes, hospitais e escolas. Quando agrega os custos das moradias, dos impactos nas empresas, das perdas econômicas, vai muito além dos R$ 19 bilhões. Depois que as águas baixarem, teremos o valor.
Se arrepende do vídeo gravado em 2021 pregando a derrubada de parte do muro da Mauá, fundamental para evitar uma tragédia ainda maior em Porto Alegre?
Nunca dissemos que os muros eram desnecessários e que deveriam sair dali. Defendi a substituição por um novo sistema, com um novo modelo. A lógica é de que os armazéns devem se integrar à cidade para serem espaços de gastronomia e lazer.
O senhor também foi muito questionado sobre os alertas. Acha que demorou a pedir a evacuação de pessoas em áreas de risco?
Assim que tomei conhecimento do volume de chuvas no dia 29, fizemos os alertas. A Defesa Civil já tinha promovido o alerta às defesas civis municipais e os prefeitos foram avisados.
As eleições municipais de outubro no Rio Grande do Sul deveriam ser adiadas?
Ainda é um pouco cedo, mas também não vai poder retardar muito essa discussão. Junho já é um momento pré-eleitoral e em julho se estabelecem as convenções. É um debate pertinente. O Estado estará em reconstrução, ainda em momentos incipientes, em que trocas de governos municipais podem atrapalhar esse processo. O próprio debate eleitoral pode acabar dificultando a recuperação.
O senhor sequer tinha definido o seu candidato em Porto Alegre e agora mesmo é que não vai ter nem cabeça para decidir, certo?
Sem dúvida, não. Está abaixo de outras prioridades.
Considera que o presidente Lula poderia ter sido mais cuidadoso e não colocado um político como Paulo Pimenta no novo ministério criado para lidar com a tragédia?
A reconstrução é liderada e coordenada pelos próprios gaúchos que têm um governo constituído. O nome do ministério é Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução. Se (o órgão) se propõe a ser apoio à reconstrução, é muito bem-vindo.
Mas Pimenta é provavelmente candidato ao governo gaúcho daqui a dois anos, não?
O presidente tem a legitimidade para poder apresentar o nome que ele entenda pertinente. Da minha parte, busquei um perfil técnico para a minha secretaria de reconstrução recém-criada.
O seu partido, o PSDB, vem criticando o governo federal e a politização da tragédia. Concorda com os posicionamentos?
O meu papel como governador não é o de fazer análises políticas. Deputados e senadores podem e devem fazê-lo porque o papel deles é de fiscalização e acompanhamento. Tenho muitas diferenças ideológicas e programáticas com o ministro Pimenta e com o presidente Lula, mas não vou deixar que isso supere a necessidade de agirmos em coordenação para atender uma população que está sofrendo muito. A politização não é bem-vinda. A gente já vive o clima de polarização anterior a esta crise. Temos que buscar união.
Por ora, o governo Lula prevê a contratação de um estudo sobre os diques de Porto Alegre e outras medidas. O que tem achado dessas iniciativas?
Não sei ainda exatamente quais são os estudos que eles estão fazendo. Anunciaram, por exemplo, até um canal para o escoamento das águas na Lagoa dos Patos, o que estudos da universidade federal indicam ser de muito difícil execução. Não basta pensar na água da lagoa escoando para o mar. O mar também interfere na lagoa. Se tiver água salgada acessando água doce, vai ter riscos aos ecossistemas e até a captação da água para consumo humano.
É justamente neste tema em que colou-se no senhor a pecha de governador contra o meio ambiente após uma série de mudanças em legislações locais. Como responder a essa crítica?
É o que tentam criar por conta das disputas políticas e das narrativas. De maneira nenhuma há qualquer tipo de ação do governo que tolere a degradação ambiental em favor de promover o crescimento econômico.
Houve autorização para construção de barragens em áreas de preservação…
Isso é permitido no Brasil todo desde que não haja a possibilidade de fazer o barramento de outra forma. A legislação federal estabelece essa possibilidade para a geração de energia elétrica e para consumo humano. Uma prova disso é a autorização da União para a usina de Belo Monte.
Seu governo também criou um autolicenciamento ambiental em que o empresário apenas preenche uma declaração em que assegura atender os requisitos ambientais…
É a LAC,a Licença por Adesão e Compromisso. De mais de 500 atividades que são licenciadas, apenas 48 são possíveis de ser feitas assim. E, desde que ela existe, de 20 mil documentos licenciatórios, apenas 150 foram por LAC. Mais burocracia não significa proteção ao meio ambiente.