Na onda mortal de outono da pandemia de gripe espanhola de 1918, milhões de pessoas foram condenadas porque não sabiam o que agora entendemos sobre como os vírus e as doenças respiratórias se espalham.
Podemos enfrentar um destino semelhante se algumas pessoas continuarem a ignorar o que um século de progresso científico e análise retrospectiva da história nos ensinou sobre como acabar com as pandemias.
A pandemia de 1918 ocorreu em três ondas, da primavera (no hemisfério norte) de 1918 ao inverno de 1919, matando de 50 milhões a 100 milhões de pessoas em todo o mundo. A primeira onda de março a junho de 1918 foi relativamente amena. A maioria das mortes ocorreu a partir de setembro de 1918, na segunda e pior onda da gripe de 1918.
Segundo reportagem da CNN, diversos especialistas em saúde esperam que as infecções por Covid-19 aumentem neste inverno do hemisfério norte porque o vírus que causa a Covid-19 é um coronavírus, e outros coronavírus se espalham mais durante a estação mais fria. Na atmosfera invernal, menos úmida, as partículas portadoras de vírus podem permanecer no ar por mais tempo.
Além disso, nossas membranas nasais são mais secas e mais vulneráveis a infecções no inverno. Além disso, à medida que o clima fica mais frio, passamos mais tempo em ambientes fechados sem ventilação suficiente, o que significa que o vírus tem maior probabilidade de se espalhar.
A Covid-19 ainda não “ceifou tantas vidas quanto a gripe espanhola. Cerca de 675 mil pessoas morreram nos Estados Unidos até o final da pandemia de 1918”, disse o doutor Jeremy Brown, médico de emergência e autor de “Influenza: The Hundred-Year Hunt to Cure the Deadliest Disease in History” (“Gripe: A caça de cem anos para curar a doença mais mortal da história”, sem edição no Brasil).
“Isso seria, proporcionalmente hoje, cerca de 3 milhões de pessoas nos EUA. A boa notícia é que não vimos esses números. É claro que os números são realmente assustadores. Mas a história de que estamos falando ainda não acabou”, continuou Brown.
Por que a segunda onda foi tão mortal
Existem várias possibilidades do porquê da segunda onda de 1918 ter sido tão terrível, incluindo a teoria de um vírus que possivelmente sofreu mutação e a dos padrões de movimento e comportamento humano na época. O inverno significou que a gripe também se espalhou mais, e as pessoas ficavam dentro de casa com mais frequência.
“Meu palpite é que o vírus não se saiu tão bem para infectar pessoas na primavera e teve que se adaptar”, disse John M. Barry, autor de “A Grande Gripe: A história da pandemia mais mortal da história”. “Então, uma mutação que era melhor para infectar pessoas e também mais virulenta assumiu o controle”.
Nos pacientes da gripe de 1918, a pneumonia frequentemente se desenvolvia e matava já no segundo dia de infecção. Os esforços para a Primeira Guerra Mundial ainda estavam ativos, portanto, a disseminação desenfreada foi facilitada por movimentos de tropas e acampamentos militares lotados.
Para onde os militares viajavam, o vírus também ia com eles, resultando no adoecimento por gripe e pneumonia de 20% a 40% do pessoal do Exército e da Marinha dos EUA no outono, interferindo nos treinamentos e na eficácia dos militares. “A gripe e a pneumonia mataram mais soldados e marinheiros norte-americanos durante a guerra do que as armas inimigas”, relatou um estudo de 2010.
Seis dias após o primeiro caso de gripe ser relatado em Camp Devens, Massachusetts, os casos haviam se multiplicado para 6.674. Quando o coronel Victor C. Vaughan se lembrou de Camp Devens, “foi chocante”, escreveu Gina Kolata, uma repórter de ciência e medicina do “The New York Times”, em seu livro “Flu: The Story of the Great Influenza Pandemic of 1918 and the Search for the Virus That Caused It” (“Gripe: A história da grande pandemia de gripe de 1918 e a busca pelo vírus que a causou”, sem edição no Brasil).
“Ali estava Vaughan, no meio da primeira guerra a usar armas modernas, uma guerra que estava derrubando jovens com metralhadoras e gás, mas que não era nada comparado a esta doença”, escreveu Kolata.
Um imenso obstáculo na época foi a falta de conhecimento das características, do comportamento e da gravidade do vírus. A pandemia veio antes da consciência de como era um vírus e de como isolá-lo. A violência da segunda onda levou algumas pessoas (incluindo médicos) a pensar que estavam lidando com uma doença diferente daquela da primavera.
As mortes por gripe atingiram o pico em novembro de 1918, que foi possivelmente o mês mais mortal da pandemia. Um desfile na Filadélfia realizado no Dia do Armistício em 11 de novembro infectou milhares de participantes.
O impacto social
A gripe de 1918 atingiu toda a sociedade. Aproximadamente metade das mortes aconteceu entre jovens adultos de 20 a 40 anos, em contraste com a pandemia atual, com adultos mais velhos mais propensos a sofrer doenças graves e morte por Covid-19.
Muitos eventos, escolas e espaços públicos foram cancelados e fechados. “O fantasma do medo caminhava por toda parte, fazendo com que muitos círculos familiares se reunissem porque os diferentes membros não tinham mais nada para fazer a não ser ficar em casa”, escreveu Kolata, citando um jornal do Arizona.
As autoridades impuseram o uso de máscara e leis anticusparadas. As autoridades municipais infligiram medidas punitivas, incluindo multas contra pessoas que infringiram as regras. O marechal-geral do Exército dos EUA cancelou em outubro uma chamada para exercício de 142 mil homens, apesar de eles serem necessários na Europa.
O impacto sobre os adultos no auge significa que muitas crianças perderam um ou ambos os pais. O mundo perdeu gerações de jovens, e para eles a pandemia e a Primeira Guerra Mundial tornaram-se as experiências centrais de suas vidas.
Vantagem dos dias modernos
Agora, vamos avançar para o ano de 2020. Vários avanços científicos nos deram uma pequena vantagem na mitigação da disseminação e dos efeitos de doenças respiratórias como a gripe e a Covid-19. Melhorias tecnológicas têm permitido aos pesquisadores visualizar células e vírus usando microscópios eletrônicos e cristalografia de raios-X, o que também permite capturar milhões de imagens deles. Microbiologistas agora podem isolar, identificar e descrever a estrutura dos vírus.
Para Kolata, embora tenhamos testes de coronavírus, uma lacuna é “que não temos capacidade de teste suficiente e os testes demoram muito”. Ela continua: “quando algo como o coronavírus começa a se espalhar, com sintomas que podem imitar os da gripe (febre alta, calafrios), o sistema de testes pode se sobrecarregar com facilidade quando começa a temporada de gripe”.
Felizmente, não estamos em uma guerra global. O olhar retrospectivo e anos de progresso científico nos ensinaram como as doenças respiratórias se espalham – ou seja, por encontros com gotículas respiratórias facilitadas pelo contato próximo e pela higiene insuficiente. No entanto, para serem eficazes, essas vantagens científicas e médicas requerem conformidade pública.
O que podemos fazer
Embora os casos de Covid-19 estejam aumentando e possam aumentar neste inverno do hemisfério norte, existem coisas que podemos fazer para conter a disseminação. Precauções como distanciamento físico, evitar encontros e viagens desnecessárias, lavar as mãos e usar máscara ainda são importantes.
Estocar alimentos, itens médicos e de preparação para emergências – com responsabilidade e de uma maneira que seja justo para todos – pode ajudar a limitar as idas às lojas, diminuindo assim as chances de propagação.
Em 1918, não havia uma vacina aprovada e regulamentada. Desta vez, com o coronavírus, a Operação Warp Speed nos Estados Unidos e outros programas estão testando vacinas para serem capazes de inocular o povo possivelmente na primavera de 2021.
O que também tem imenso valor é dar atenção às atualizações e orientações das autoridades locais de saúde pública e ao conhecimento científico de pesquisadores e organizações como a Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA e a Organização Mundial de Saúde.
“Se todos os distanciamentos sociais e máscaras forem eficazes contra o coronavírus, se tivermos sorte, eles podem ser eficazes contra a gripe também”, disse Kolata. “Espero que as pessoas tomem as vacinas contra a gripe, que não 100% eficazes, mas certamente são melhores do que nada”.