quarta-feira 3 de julho de 2024
Um mês antes do lançamento, o ministro Rubens Ricupero apresenta a família de cédulas do real — Foto: Ailton de Freitas / Agência O Globo - 01/06/1994
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segunda-feira 1 de julho de 2024 às 06:07h

O que o Plano Real deixou de legado – e o que não entregou

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Fim da hiperinflação mudou o cotidiano de famílias e empresas e trouxe à tona outros problemas estruturais. Formuladores enfrentaram a oposição do PT, mas aproveitaram bons ventos internacionais. Para os brasileiros com mais de 35 anos, é comum ter cenas como estas na memória: a família indo ao supermercado fazer a compra do mês inteiro assim que recebia o salário. Usar cédulas de uma moeda que já não existia mais, carimbadas com o novo nome e o valor com três zeros a menos. Funcionários de lojas sempre com maquininhas em punho remarcando os preços.

Tudo isso ficou para trás com o lançamento do real, em 1º de julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era o ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco. A moeda debelou a hiperinflação, após uma série de planos fracassados, e lançou as bases de um sistema macroeconômico finalizado nos anos seguintes e que perdura até hoje, baseado em metas de inflação e fiscais, além de câmbio flutuante.

A chegada da nova moeda deixou legados positivos para famílias e empresas. A estabilidade deu maior previsibilidade sobre os preços, favorecendo decisões sobre o quanto poupar e onde investir, e reduziu a pobreza no curto prazo. O plano também deu maior peso à responsabilidade fiscal e foi acompanhado de outras mudanças, como a privatização de estatais.

Mas a promessa de que a estabilidade monetária levaria a um crescimento sustentado e a queda da desigualdade no longo prazo não se confirmou – devido a outros obstáculos estruturais, que ficaram mais evidentes após o fim da inflação alta.

Planejamento de longo prazo

O Brasil registra no momento uma inflação de cerca de 4% por ano. Nas décadas de 1980 e 1990, antes do real, ela costumava superar os 10% por mês – e atingiu picos de até 80% por mês, como em março de 1990. Numa realidade dessas, é muito difícil para as famílias e as empresas planejarem seus gastos de forma equilibrada.

Para as famílias, o importante passa a ser comprar o necessário o mais rápido possível depois de receber o salário, pois dali a um mês tudo estará mais caro. É preciso sempre estar pensando em como proteger seu dinheiro da perda de valor – uma tarefa ainda mais difícil para as milhões de pessoas que não tinham contas bancárias corrigidas pela inflação. E os traumas de seguidos planos econômicos com tabelamento de preços ou congelamento de contas levavam a decisões que nem sempre eram as mais eficientes.

“As pessoas trabalhavam com os nervos à flor da pele e um horizonte supercurto, e passavam a maior parte do tempo tentando proteger seu patrimônio”, afirma à DW o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.

Para as empresas, esse cenário provocava ineficiência. Uma decisão importante passa a ser quando comprar os produtos e insumos, já que a cada dia eles ficam mais caros. Aquelas que revendem produtos físicos são incentivadas a manter grandes áreas de estoque, e as envolvidas em cadeias complexas de fornecimento precisam lidar com preços de cada item subindo em momentos diferentes.

Na época da hiperinflação, a cientista política Daniela Campello, professora associada da FGV EBAPE, trabalhava como engenheira de produção, e relata à DW que lidava diretamente com o problema das empresas que buscam manter grandes estoques. “Era péssimo do ponto de vista da otimização da produção, mas uma necessidade por conta da economia”, diz.

Desde a adoção da nova moeda, exceto no primeiro ano do governo FHC, quando o real ainda dava seus primeiros passos, a inflação anual nunca ficou acima de 13%.

Redução da pobreza no curto prazo

Outro efeito positivo do real, registrado no primeiro ano da sua adoção, foi a redução da proporção de pobres no Brasil, associada ao fim da hiperinflação e a reajustes do salário mínimo.

Segundo a Pesquisa Mensal do Emprego do IBGE, que mede a renda do trabalho nas maiores regiões metropolitanas do país, em junho de 1994 cerca de 34% dessa população estava abaixo da linha de pobreza. Em setembro de 1995, eram cerca de 25,5%.

A hiperinflação era especialmente danosa aos mais pobres porque, excluídos do sistema bancário, eles sofriam mais com a perda constante de poder aquisitivo. “Naquela época, os pobres não tinham condição nenhuma de proteger a renda de uma inflação avassaladora”, diz Mendes.

Outro fator que pesou para a redução da pobreza foi o reajuste do valor do salário mínimo. Em 1995, no seu primeiro ano no Planalto, FHC concedeu um reajuste de 42,9% – o maior em seus oito anos de governo. Segundo um estudo do Ipea, isso respondeu por 60% da redução da pobreza no período mencionado.

Mas a tendência de redução da pobreza não se manteve no longo prazo. Após a queda em 1995, a proporção de pobres se manteve relativamente estável até o final do governo FHC, e voltou a cair significativamente somente a partir de 2003, com a introdução do programa Bolsa Família no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Responsabilidade fiscal e privatizações

Um dos pontos centrais do programa de estabilização da moeda foi comprometer-se com o equilíbrio nas contas públicas. Em âmbito federal, isso se traduziu na adoção de metas de superávit primário, que orientam o governo a gastar menos do que arrecada, excluído o pagamento de juros – com o objetivo de manter a dívida pública sob controle ou reduzi-la.

Um dos argumentos para a privatização de grandes estatais no governo FHC, como o Sistema Telebrás, também era obter receitas extraordinárias para equilibrar as contas públicas e consolidar o real. Ampliar a eficiência dessas empresas era outro argumento.

A busca por responsabilidade fiscal também se refletiu nos estados. Os bancos públicos estaduais, que atuavam como financiadores dos governos estaduais, revelaram grandes desequilíbrios estruturais após o fim da hiperinflação, e o primeiro governo FHC promoveu em 1997 a renegociação das dívidas dos estados.

Nesse processo, a União assumiu as dívidas dos estados, que deveriam ser pagas em condições vantajosas, e em contrapartida exigiu que eles fizessem ajustes fiscais e privatizassem estatais, inclusive os bancos estaduais. Segundo Mendes, esse mecanismo teve efeitos positivos para o equilíbrio das contas estaduais por cerca de dez anos, mas perdeu força após a flexibilização das regras no governo Lula e pelo boom de commodities, que incentivou o aumento das despesas sem que houvesse um aumento sustentável de receitas.

Em um evento na semana passada na Fundação FHC, em São Paulo, sobre os 30 anos do real, Rubens Ricupero, que sucedeu FHC no Ministério da Fazenda, afirmou que a responsabilidade fiscal foi o elemento que “menos pegou” do real, e que o Brasil, após uma fase inicial de melhora, está agora piorando nesse aspecto.

Crescimento baixo e juros altos

A ideia de que a estabilidade monetária estimularia investimentos privados e levaria ao crescimento da economia não produziu resultados de longo prazo, e as razões para isso são variadas e alvo de debate entre especialistas.

Mendes aponta, entre os motivos, que o Brasil segue tendo um setor público grande e com mais estatais do que precisaria, o que segundo ele trava o aumento da produtividade. Outras razões, diz, são uma economia pouco aberta à competição internacional e lobbies de setores específicos que conseguem manter subsídios públicos ineficientes.

Após a estabilização promovida pelo real, o Brasil também se manteve entre os países com maior taxa de juro real do mundo. As explicações para isso também são controversas. Mendes aponta para o desequilíbrio crônico do setor público, que força o governo a contrair mais empréstimos para financiar seu débito e pressiona as taxas de juros para cima.

Para Campello, o tamanho da dívida pública de fato tem impacto na rentabilidade de quem empresta ao governo, mas ela menciona outros possíveis motivos, como um aspecto inercial do mercado financeiro e pouca competição bancária.

Oposição do PT

Lula encontrou-se com FHC na última segunda-feira, no dia em que a Fundação FHC fazia seu evento para comemorar os 30 anos do real. Mas, em 1994, o plano de estabilização enfrentou forte oposição do PT, que então preparava a segunda candidatura de Lula ao Planalto.

O argumento do PT era que o Plano Real seria feito às custas dos mais pobres – Lula disse que a iniciativa era um “estelionato eleitoral” e que iria “apenas congelar a miséria”. Quatro anos depois, após o sucesso do real, o petista reconheceu que a estabilidade monetária trazida pelo plano era positiva e tinha um efeito relevante para o poder aquisitivo dos mais pobres – e fez sua campanha naquele ano baseada em críticas ao baixo crescimento e à falta de programas sociais para as classes mais baixas.

O tucano venceu aquela reeleição no primeiro turno. Campello, que elaborou uma pesquisa analisando como a variação do preço das commodities e da taxa de juros nos Estados Unidos impacta a popularidade de governos brasileiros, disse que o apoio ao presidente se descolou da prevista por seu modelo em dois momentos da história, sendo um deles o período sob FHC após a estabilização da moeda.

Jabuticaba brasileira?

O debate sobre os 30 anos do real, na opinião de Campello, ganha em precisão se for acompanhado do contexto internacional. Ela ressalta que o plano foi “muito engenhoso” e trouxe uma mudança estrutural para o Brasil – mas cita que diversos países da América Latina conseguiram estabilizar suas moedas na mesma época.

Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, entre outros, também conseguiram debelar a inflação alta na década de 1990 – assim como a Argentina, esta de forma insustentável. “O mundo estava favorável naquele momento para esse tipo de programa de estabilização, e foi ótimo que se aproveitou”, diz.

Em uma pesquisa realizada em 2003, ela concluiu que o sucesso do real teve a ajuda da dinâmica do mercado financeiro internacional, que incluía a queda da taxa de juros nos Estados Unidos e o Plano Brady, lançado pelo Tesouro americano para reestruturar a dívida externa de países em desenvolvimento.

Campello argumenta que o Plano Real representou o “grande momento do neoliberalismo” na América do Sul, que produziu alguns bens públicos como a estabilidade monetária, mas cujo modelo foi insuficiente para enfrentar a desigualdade e a pobreza.

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