Após sete meses de indefinição sobre qual o lugar da Fundação Nacional do Índio (Funai) dentro do governo de Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode colocar um ponto final na questão nesta quinta-feira.
A Corte analisará se o órgão deve ser mantido no Ministério da Justiça, onde esteve por décadas, ou se pode ser desmembrado e alocado nas pastas da Agricultura e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, como quer o presidente Bolsonaro.
No momento, a Funai está numa espécie de limbo administrativo, depois de uma série de decisões do Planalto, do Congresso Nacional e do STF.
Em junho, o ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendeu em decisão liminar (provisória) nova tentativa do presidente de remeter à pasta da Agricultura a demarcação de terras indígenas por meio de medida provisória. Na ocasião, foi amplamente noticiado pela imprensa brasileira que a decisão mantinha a Funai integralmente no Ministério da Justiça.
No entanto, a pasta comandada por Sergio Moro considerou que a liminar de Barroso não foi suficientemente clara – um parecer da Advocacia Geral da União recomendou então que não fosse tomada qualquer medida do Ministério da Justiça sobre a questão por enquanto. Questionada pela BBC News Brasil se isso de fato ocorreu, a pasta não respondeu.
“O que me parece é que o governo conseguiu o que ele queria: criar um cenário de tanta incerteza que de fato não tem como um procedimento de demarcação de terra indígena prosseguir nesse cenário”, defende a advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana Batista. “É necessário um pronunciamento (do STF) para conferir segurança jurídica para as demarcações e para a localização da Funai.”
Ainda que o STF decida em definitivo manter a Funai no Ministério da Justiça, no entanto, indigenistas temem que o órgão continue fragilizado no seu trabalho de atendimento aos índios.
A preocupação é reflexo da nomeação do novo presidente da Funai – Bolsonaro acaba de colocar no cargo o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, que tem relação muito próxima com ruralistas, em especial o pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual secretário de política fundiária do Ministério da Agricultura (Mapa) e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR).
“Nós consideramos uma vitória tática a manutenção da Funai no Ministério da Justiça com todas as suas atribuições, mas temos preocupação de que o governo seguirá desrespeitando a Constituição, não dando seguimento à demarcação, o que pode perpetuar conflitos e situações de vulnerabilidade de povos indígenas”, ressalta o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cleber Buzatto
Por que Bolsonaro quer parar demarcações?
Durante a campanha eleitoral e após sua vitória, Bolsonaro disse diversas vezes que em seu governo não daria “nem um centímetro a mais para terras indígenas”. Na visão do presidente, a demarcação de terras indígenas “inviabiliza” o agronegócio e o desenvolvimento da Amazônia.
“O Brasil vive de commodities, daqui a pouco o homem do campo vai perder a paciência e vai cuidar da vida dele. Vai vender a terra, aplicar aqui ou lá fora, e cuidar da vida dele. A gente vai viver do quê? O que nós temos aqui além de commodities?”, questionou na segunda-feira, a comentar mais uma vez o tema.
Para Juliana Batista, do ISA, o argumento é uma “falácia”, pois há áreas disponíveis para expansão da agricultura, independentemente das demarcações.
Segundo o estudo “Projeções do Agronegócio”, divulgado pelo próprio Ministério da Agricultura na semana passada, a área plantada de lavouras no Brasil crescerá nos próximos dez anos de 75,4 milhões de hectares para 85,68 milhões (alta de 14%) “principalmente sobre pastagens naturais e áreas degradadas”.
“As terras indígenas cumprem uma função essencial de preservação da biodiversidade e de regulação climática. Essa fala de Bolsonaro é muito mais um ataque às minorias, uma política de discriminação, do que um argumento técnico que demonstre que não existe mais área para o agronegócio”, afirma Batista.
A postura de Bolsonaro gera também questionamentos jurídicos, porque a Constituição Federal de 1988 determinou a demarcação de indígenas e estabeleceu um prazo de cinco anos, o que não foi cumprido.
O artigo 231 explica ainda que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
O site da Funai informa que existem 462 terras indígenas demarcadas, ocupando 12,2% do território brasileiro.
Segundo posicionamento de fevereiro da associação que representa servidores do órgão, a Indigenistas Associados (INA), “ainda hoje persiste um passivo de centenas de casos (de demarcação), que dificulta a reprodução física e cultural de grupos indígenas, muitas vezes de forma dramática, além de favorecer a tensão e o conflito pela posse da terra em diversas regiões do país e de gerar insegurança jurídica”.
O documento intitulado “Funai inteira e não pela metade” defende que o órgão seja mantido no Ministério da Justiça, destacado que os direitos indígenas são competência da pasta desde o governo de Fernando Collor (1990-1992).
Entenda o vai e vem da Funai
Logo após assumir o governo, Bolsonaro editou em janeiro uma medida provisória (norma que tem força temporária de lei, até apreciação do Congresso) dividindo as atribuições da Funai.
A MP 870 direcionou a parte de demarcação de terras indígenas para a pasta da Agricultura, comandada por Teresa Cristina, e atribuiu o restante do órgão ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
Com isso, a demarcação de terras ficou subordinada a um ministério alinhado aos interesses do agronegócio, que frequentemente estão em choque com as reivindicações de povos indígenas. Enquanto os demais direitos dos índios foram colocados sob gestão de uma ministra que se diz “terrivelmente evangélica” e tem ligação com entidades religiosas que são vistas com desconfiança por indigenistas ao buscarem a conversão de indígenas.
No entanto, o Congresso aprovou em maio a lei 13.844, rejeitando a mudança da Funai proposta por Bolsonaro e devolvendo o órgão integralmente para o Ministério da Justiça.
O presidente, então, editou outra medida provisória (MP 886) dando novamente à pasta da Agricultura a responsabilidade pelas demarcações de terras indígenas.
Para aumentar a confusão, vetou trecho da lei 13.844 que atribuía à pasta de Sergio Moro o cuidado com os direitos dos índios, ao mesmo tempo que lhe dava essa atribuição na nova medida provisória, excluindo a parte de demarcação.
Foi quando o ministro do STF Luís Roberto Barroso deu uma liminar (decisão provisória) suspendendo artigos da MP 886 que atribuíam a demarcação à pasta da ministra Teresa Cristina. Como a decisão atingiu também o artigo que dava ao Ministério da Justiça a questão de direitos indígenas com a exclusão expressa da questão de terras, criou-se a indefinição jurídica.
Barroso suspendeu os artigos da MP 886 porque a Constituição impede que o presidente edite, no mesmo ano, medida provisória sobre tema já rejeitado pelo Congresso.
O que o STF pode decidir?
Caso a maioria do Supremo, corte formada por mais dez ministros, apoie a decisão de Barroso, Bolsonaro poderá editar nova medida provisória mudando a demarcação de terras indígenas a partir de 2020.
Os ministros, porém, devem analisar no julgamento argumentos para que a transferência seja definitivamente vetada.
O STF analisará cinco ações sobre o tema propostas por partidos políticos – PSB, PT, PDT, PPS e Rede.
A primeira delas, apresentada em janeiro pelo PSB, argumenta que mudança da Funai proposta por Bolsonaro representa “desvio de finalidade”, na medida que não buscou aperfeiçoar a demarcação de terras indígenas, mas paralisá-la.
Além disso, a ação sustenta que tal mudança teria que passar pela consulta dos povos indígenas, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
O artigo 6º da convenção obriga o governo a “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.
Já o artigo 14 reconhece “aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
“É muito importante, nesse momento de ataque aos direitos fundamentais, que o Supremo mostre que (o governo) não pode tudo, que continua valendo o Estado de Direito no Brasil”, defende o professor de direito constitucional da UERJ Daniel Sarmento, advogado do PSB na ação.
“Há uma oportunidade histórica do Supremo colocar um freio. Quando o governo desmonta demarcação, manda parar a Funai, implicitamente ele dá um recado que legitima coisas muito mais graves como atentado à própria vida dos indígenas como estamos vendo”, acrescentou.
Sarmento se refere a morte do líder indígena Emyra Waiãpi, denunciada pelos índios no sábado como um assassinato cometido por garimpeiros que invadiram as terras waiãpi, no oeste do Amapá. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal.
Para o professor da Uerj, caso o novo presidente da Funai atue para bloquear as demarcações, contrariando orientações técnicas de servidores do órgão, é possível que isso gere novas ações no STF.