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quinta-feira 4 de abril de 2024 às 16:27h

O que é songbun, o modelo que determina a vida dos cidadãos da Coreia do Norte de acordo com sua lealdade

NOTÍCIAS, POLÍTICA


O que seus avós ou bisavós fizeram na década de 1940? Qual era a sua filiação política?

Estes dados podem ser considerados irrelevantes para quase qualquer pessoa no mundo, mas, na Coreia do Norte, elas são determinantes para a vida dos cidadãos.

O rígido modelo de classificação social que rege o país coloca as pessoas em diferentes categorias: as leais ao regime da família Kim, as hostis e as que ficam em um nível intermediário, entre esses dois extremos.

O sistema conhecido como songbun – palavra que significa origem ou ingrediente em coreano e faz parte da expressão “chulsin songbun” ou “origem familiar” – condiciona todos os aspectos da vida de um norte-coreano: como o seu local de nascimento, as regiões que pode visitar, o seu acesso a alimentos e remédios, as suas possibilidades de estudar ou o trabalho que lhes é atribuído pelo Estado.

“Songbun é o sistema no qual o seu valor é medido pelos méritos ou falhas de seus ancestrais e parentes”, explica à BBC a ativista e acadêmica Yeonmi Park, autora do livro autobiográfico Escapar para Viver: A Viagem de uma Jovem Norte-Coreana Rumo à Liberdade.

A Coreia do Norte nega a existência do songbun e garante que todos os seus cidadãos desfrutam de oportunidades iguais sob o Estado socialista.

No entanto, norte-coreanos que fugiram do país e especialistas com acesso a documentos do governo compilam testemunhos e provas deste sistema de classificação social ao longo dos anos.

Entenda nesta reportagem as origens do songbun e como ele funciona.

A origem

Na primeira metade do século 20, a Coreia era um país sujeito ao domínio colonial japonês, herdeiro de uma sociedade feudal confucionista (que dava extrema importância às hierarquias) com quatro classes: nobres, técnicos qualificados, pessoas comuns e párias.

Após a Segunda Guerra Mundial, a península passou do domínio colonial japonês para uma divisão entre o Norte comunista, influenciado pela União Soviética de Josef Stalin, e o Sul capitalista, na esfera dos Estados Unidos.

A Guerra da Coreia (1950-1953) consolidou esta divisão e gerou uma fronteira quase intransponível entre os dois Estados antagônicos.

O fundador e primeiro presidente da Coreia do Norte, Kim Il-sung – avô do atual líder Kim Jong-un – consolidou a ditadura do proletariado sob um sistema de forte influência stalinista, com intensa vigilância ideológica e frequentes expurgos.

Algumas pessoas e famílias eram mais desconfiadas do que outras.

Ex-combatentes que lutaram contra o Japão ou contra o Sul, membros do Partido Comunista, ex-trabalhadores temporários e trabalhadores sem terra, entre outros, passaram a formar a liderança e a classe privilegiada do país.

Grandes e pequenos proprietários de terras, comerciantes, religiosos, pessoas com parentes sul-coreanos ou que lutaram do outro lado da guerra foram identificados como possíveis traidores.

À sua maneira, Kim Il-sung adaptou ao comunismo o sistema de castas confucionista da antiga Joseon — como era conhecida a Coreia entre o século 14 e o final do século 19. Oficialmente, a Coreia do Norte adota esse mesmo nome até hoje: República Popular Democrática de Joseon.

Foi na década de 1960 que, segundo especialistas, o governo norte-coreano completou os enormes registros que classificam cada cidadão em seu lugar correspondente de acordo com seu histórico familiar.

Os leais — ou haeksim

A maioria dos acadêmicos e norte-coreanos que conseguiram fugir do país distinguem três categorias dentro do songbun, enquanto outros reconhecem duas categorias adicionais dentro dessa mesma classificação, ela própria dividida em cerca de cinquenta subcategorias.

Os norte-coreanos de “casta” superior são classificados como haeksim – que significa “núcleo” – e são considerados cidadãos de confiança e leais aos Kim.

Eles são descendentes dos que lutaram contra a colonização japonesa e depois contra o Sul na Guerra da Coreia, membros ou autoridades do partido único e famílias de origem operária ou camponesa com uma história de lealdade impecável durante décadas.

Esses cidadãos gozam dos maiores privilégios da sociedade norte-coreana: vivem nos municípios mais desenvolvidos, estudam na universidade, recebem os melhores empregos e são tratados nos principais hospitais.

Outra vantagem importante para a classe alta é residir na capital, Pyongyang, cujos 3 milhões de habitantes (aproximadamente 12% da população norte-coreana) pertencem em sua grande maioria à classe haeksim, segundo especialistas.

“Pyongyang é o único lugar na Coreia do Norte onde o socialismo é realmente praticado e as pessoas recebem serviços do Estado”, diz Yeonmi Park.

Dentro dos haeksim, explica Park, há uma camada superior composta por famílias próximas dos círculos de poder de Pyongyang que podem até viajar para o exterior e enviar os seus filhos para estudar na China, na Rússia ou na Europa.

Os ‘hostis’ — ou choktae

A antítese da classe privilegiada são os cidadãos considerados “hostis”, chamados choktae.

O seu sangue é considerado “contaminado” porque são descendentes de proprietários de terras, comerciantes, cristãos ou colaboradores do império japonês durante a ocupação ou do Sul na Guerra da Coreia. Ou seja: os inimigos tradicionais do regime comunista norte-coreano.

Estas pessoas – que são frequentemente comparadas aos “intocáveis” no sistema de castas da Índia – enfrentam discriminação sistemática, vivem nos locais mais remotos onde o acesso a alimentos e eletricidade é limitado, não têm oportunidades de educação e realizam os trabalhos mais difíceis.

“Os filhos desta casta vão à escola no período da manhã, principalmente para doutrinação ideológica, mas depois são usados para trabalhar nos campos e nas minas. Eles geralmente têm vida curta e estão sujeitos a vigilância quase permanente por parte das autoridades”, afirma Yeonmi Park.

Segundo ela, é extremamente raro que uma pessoa classificada como choktae viva em Pyongyang ou mesmo obtenha permissão para visitar a capital.

Intermediários — ou dongyo

Entre as classes mais altas e mais baixas existe um meio termo: o dongyo.

Estas são famílias não consideradas hostis, mas cuja história familiar também não é completamente limpa. Sua lealdade ao regime é vista como ambígua ou questionável.

Suas oportunidades são limitadas, mas dentro deste grupo existem subclassificações.

Por exemplo, um dongyo com ficha limpa poderia viver perto de Pyongyang, frequentar uma universidade de segunda categoria ou ocupar empregos administrativos ou intermediários.

Isto seria inconcebível para outra pessoa da mesma “casta” classificada na parte inferior — perto do limite da “hostilidade”.

A maioria dos especialistas estima que os dongyo são os mais numerosos, representando aproximadamente 40% da população, enquanto os haeksim e choktae chegariam a cerca de 30% cada um.

De qualquer forma, não se sabe qual é a proporção real, já que os arquivos de classificação social – como quase todos os documentos oficiais da Coreia do Norte – são mantidos sob o mais estrito sigilo.

Como funciona na prática

Onde exatamente o songbun é registrado? É um tema de conversa entre os norte-coreanos? Como alguém pode saber seu status? Isso pode ser alterado? Pessoas com songbun diferentes podem se casar?

As informações sobre o songbun de cada norte-coreano são armazenadas em documentos confidenciais do Estado, das administrações locais e da polícia.

Songbun, explica Yeonmi Park, é algo que está na mente de todos os norte-coreanos no seu dia a dia, pois ele determina completamente as suas vidas.

Em geral, as famílias conhecem ou intuem a posição social que ocupam no sistema com base no local onde vivem, no acesso ao ensino superior e à saúde ou nos empregos que exercem.

No entanto, às vezes alguém pode precisar acessar arquivos confidenciais para descobrir o songbun de uma pessoa.

“Os norte-coreanos costumam subornar um oficial ou policial para descobrir o songbun da outra parte antes de arranjar um casamento”, diz Park.

Eles fazem isso para garantir que o nível de ambos seja semelhante: “No songbun não há promoções, apenas rebaixamentos, então se um deles tivesse um status superior, quando se casarem serão automaticamente iguais ao do cônjuge ‘mais baixo'”, diz Park.

Por isso, diz ela, na Coreia do Norte o casamento entre uma pessoa “de confiança” e outra de nível intermédio, ou entre intermédio e “hostil”, é extremamente raro, pois pioraria as condições de vida da família das seguintes gerações.

Perguntamos a Yeonmi Park se é possível alterar o songbun através de subornos, já que durante anos alguns norte-coreanos com diploma médio ou baixo acumularam alguma riqueza fazendo negócios no mercado negro, especialmente em áreas próximas à fronteira com a China, onde relegam muitas pessoas “hostis” e de classe média.

Mas ela diz que isso seria praticamente impossível, pois implicaria a falsificação de documentos em diferentes instâncias e, mesmo que isso fosse conseguido, o novo estatuto da pessoa não corresponderia ao dos seus familiares próximos e antepassados, o que poderia levantar suspeitas.

“Não há nada que você possa fazer para mudar seu destino, porque você não pode escolher seus antepassados”, diz ela.

E o que o regime de Kim consegue com o songbun? O controle social exaustivo.

“Isso reforça a ideia de que se alguém faz algo errado na sua família, todos são responsáveis. Não se é responsável por si mesmo, pelo próprio comportamento, mas sim pelo grupo.”

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